Era um homem taciturno, calado, que parecia sempre mergulhado em profundos pensamentos. Viam-no muitas vezes passar pelas ruas, de cabeça curvada e uma crispação nos lábios. Quando chegava ao «saloon», pedia um copo de uísque que bebia devagar, encostado ao balcão.
— Bons-dias, John Pistol. Que tal vão as experiências com o milho híbrido. E os cavalos mestiços? Já os cruzaste com as éguas de Gales?
John Pistol ajeitou o lenço cor de tabaco, que levava ao pescoço. Bebeu o último gole de uísque.
— Vai tudo bem.
Não disse mais. Voltou as costas ao homem do bar e encaminhou-se para a porta, sem olhar para trás. Era um homem novo e forte, de ombros ligeiramente curvados, olhos azuis que por vezes as pálpebras escondiam.
O homem do bar ficou onde estava, a coçar o queixo e a olhar as coronhas brancas dos dois revólveres que oscilavam nos coldres, ao ritmo do andar de John Pistol.
— John Pistol era um tipo curioso, mas não sei por que raio lhe puseram a alcunha. Poucas vezes o vi servir-se das armas. É um homem tranquilo.
Um bebedor de nome Liberman, que dormitava sentado a uma das mesas, levantou a cabeça, com um ar desinteressado. Mas comentou:
— Hum! É verdade que parece um ermitão, mas não esqueças que esteve vários anos longe de San Ângelo... Pesa uma sombra sobre ele.
— Já pensei nisso. Dantes era falador e gostava de gracejar. Agora é uma múmia.
— Um morto-vivo... Sabes onde esteve?
— Foi correr aventuras pelo Oeste. Dizem que chegou à Califórnia.
— Em busca de oiro?
— Isso não sei. Pergunta-lho.
— Uma sombra... E aposto que é a sombra de uma mulher. Vá lá alguém saber o que fez. Trouxe uma sombra... mas também trouxe oiro.
— É um homem que aprecia a aventura. Deve ter ganho bem o seu oiro.
O bebedor limpou a boca com as costas da mão e olhou para o copo vazio. Levantou-se, pagou o copo e aproximou-se do balcão.
— Encha isto outra vez. Não sei o que seria dos homens, sem uísque e sem mulheres. Tenho a garganta seca como um pedaço de lixa. Não compreendo como John se satisfaz só de molhar a boca.
— É surpreendente ver, por terras do Oeste, um vaqueiro tão moderado. Vive satisfeito e bebe como um pássaro.
— Eu, pelo contrário, parece que tenho um bicho no estômago, que absorve tudo o que bebo.
Esvaziou o copo, de um trago.
— Encha outro, até cima. Dirigiu-se para a porta, de copo na mão.
— Eh!... — exclamou, chamando o «barman». — O John está a conversar com a Nancy Niemes. Que dizes àquilo?
— O quê?... — surpreendeu-se o outro. — Está a fazer-lhe namoro?
— Assim parece, Catey.
O «barman» saltou por cima do balcão, derrubou uma cadeira, caiu, levantou-se e correu para a porta. Quando chegou ao limiar, olhou na direção que Liberman indicava, e fez uma expressão de assombro.
— Incrível.
Catey ficou ainda mais surpreendido ao ouvir as risadas alegres de Nancy. John ria também, e a certa altura fez uma festa na cara da rapariga.
— Não é caso para tanto pasmo, Catey... — disse Liberman.
O «barman» não respondeu. Continuava a fitar os dois jovens que conversavam e riam. Sorriu enigmaticamente quando Nancy se despediu do rapaz e continuou o seu caminho, que a levaria a passar em frente do saloon.
— Então, Nancy? São noivos? Nunca te tinha visto falar com John. Foi uma surpresa, para mim.
Nancy fez um trejeito evasivo.
— Gosto dos homens estranhos, como John. Agradar-me-ia falar com ele, com tempo bastante para que me contasse as suas aventuras.
— Mas são noivos?
Nancy torceu o nariz, sem dúvida ofendida pelo excesso de curiosidade.
— Que te importa? És como as bisbilhoteiras de Trinity Street.
Catey corou, envergonhado, enquanto Liberman soltava uma ruidosa gargalhada. O «barman» olhou para todos os lados e balbuciou, atarantado.
— Não fales assim, Nancy. Não sou um murmurador, nem gosto de bisbilhotices. Mas o facto de esse rapaz ter falado contigo, demonstra que lhe agradas.
Liberman piscou um olho, divertido e declarou:
— E a quem não agradaria Nancy, homem? É uma das raparigas mais bonitas da terra. Cá por mim, deixava-me matar por ela.
Nancy sorriu, agradecendo o cumprimento, e seguiu o seu caminho, lesta e garrida.
— Claro... — acrescentou Liberman... — que Nancy é capaz de impressionar qualquer. Não me admira que esse tipo lhe faça a corte.
Catey, que limpava as mãos ao avental, assentiu com um movimento de cabeça. Mal prestou ao olhar de cobiça que Liberman dirigia à jovem. Pensava em John Pistol, que era a sua preocupação principal.
— Dá-me mais um copo de uísque, Catey... — disse ainda Liberman. — Tenho alguém à minha espera.
— Duvido. Tu nasceste para viver dentro de um barril de uísque. Devem esperar-te num bar, hem?
— E por que não há-de ser noutro lugar mais íntimo? Em casa de uma mulher, por exemplo...
— Ora! Não tenhas ilusões. Onde quer que estejas, empestas o ar. Não sei quem quererá conversar contigo, a não ser eu.
— Porque te deixo bons dólares.
— Sim, porque é esse o meu negócio... vender bebidas.
— E para que queres ganhar dinheiro? Compreenderia se fosse para conquistar alguma mulher bonita, mas és um solteirão empedernido.
— Ainda não encontrei a minha outra metade, mas bem podia ser Nancy Niemes.
— Hum! Não lhe serves. Procura uma velhota. És um urso feio e gordo. Faltam-te dois dentes e um dedo da mão, que cortaste quando eras empregado do carniceiro. Não penses em Nancy!
— Cala-te, estúpido!... — exclamou Catey, indignado. — Estou farto de te aturar. Ouviste? Põe-te ao largo!
Liberman franziu o sobrolho.
— Eu estou onde me apetece! Não saio daqui!
— Não? Pois vais ver!
Tentou expulsá-lo aos empurrões, mas o bebedor resistiu. Liberman agarrou-o pelo peitilho da camisa e, rapidamente, deu-lhe dois socos na cara, fazendo-o sangrar, Catey recebeu um segundo soco no estômago, encolheu-se com um gemido de dor, e apanhou um último soco em pleno queixo. Rolou no chão e ficou caído, de boca para baixo, imóvel.
O bêbedo fez uma careta desdenhosa. Olhou para os nós dos dedos da mão direita, doloridos, esfregou de leve com a palma da mão esquerda e encaminhou-se para o balcão. Pegou numa garrafa de uísque, mas não perdeu tempo a encher um copo. Bebeu pelo gargalo, largamente.
— Este uísque é bom... — comentou a meia voz. —Deve ser escocês. Voltou para junto do dono do «saloon», que continuava estendido e imóvel.
— Acorda, Catey. Eu não queria bater-te tanto... Toma o dinheiro que te devo pela bebida... e daqui em diante trata-me como deve ser...
Saiu do «saloon». Cheirava tremendamente a licor.
Atravessou a rua. Subiu para o passeio em frente, para o que teve de agarrar-se a um poste, e olhou em volta. Avançou uns passos, em ziguezague. A sua embriaguez acentuava-se cada vez mais. Chegou a altura em que ficou com a cara colada à vidraça de outro «saloon». Quando viu que tiravam cerveja, deu a volta e entrou.
— Dá-me uísque. Tenho sede.
O «barman» sorriu, divertido.
— Se pagares adiantado. Não estás em estado de saber o que fazes.
— Não?... — exclamou o bêbedo, levantando muito a cabeça. — Quem julgas tu que eu sou. Ninguém pode chamar-me trapalhão...
— Falo do teu estado, amigo. Como queres meter mais licor no estômago? Não cabe nem um dedal...
— Um balde... Sim, foi o que eu disse... Serve-me, que eu pago já. Aqui tens dinheiro.
O «barman» encolheu os ombros, trocando um olhar com os outros clientes.
— O homem já pagou, serve-o... — disse um vaqueiro alto, de costas largas e ombros fortes.
— Dá-lhe uma garrafa inteira e deixa-o.
— Vou servir-lhe, Buck.
Serviu a garrafa e Liberman foi-a esvaziando em longos tragos. Depois começou a contar coisas incoerentes e absurdas. Ria como um tolo, babava-se, tinha os olhos vermelhos e sentia a cabeça andar à roda. Falava muito, entre soluços espasmódicos provocados pela bebedeira.
— Este tipo aborrece-me... — disse Buck. — Estou a falar de coisas sérias, com Sloan, e esse bêbedo irrita--me. Põe-no na rua.
Ao ouvi aquilo. Liberman aproximou-se de Buck e replicou, em atitude de desafio:
— Não estou bêbedo, vaqueiro... Estou só um pouco tonto, sabes?
— Desaparece daqui, imbecil.
— Estou bem aqui. Se não te sentes bem, sai tu.
— Uf! Este tipo é insuportável! Não posso com ele.
— Não saio daqui, Buck! Já disse que não saio...
Liberman poisou as mãos nos ombros de Buck, envolvendo-o no seu hálito pestilento. Buck, com uma carre-ta de repugnância, sacudiu-o e aplicou-lhe duas bofetadas na cara. O bêbedo tentou resistir mas não teve tempo para isso.
Buck dobrou-o pela cintura e pô-lo ao ombro, como se fosse um saco de luzerna. Atravessou o «saloon», abriu uma porta interior que dava para um alpendre cheio de molhos de feno, e atirou para lá o bêbedo. Depois fechou a porta, correndo o fecho exterior.
— Fica ali a curtir a bebedeira... — disse, voltando à mesa de onde se levantara. — Está bem?
O «barman» concordou, com um aceno.
— Está muito bem. Ao menos ali não incomoda.
Buck disse qualquer coisa em voz baixa, ao ouvido de Sloan. Com um volver de olhos, apontou para a porta. Sloan voltou a cara e deu um estalo com a língua.
— Que mulher, hem? É maravilhosa!
Buck voltou a levantar-se e encaminhou-se para a porta. Ficou a seguir com o olhar a rapariga que se afastava, muito cingida no seu vestido.
— Nunca houve em San Ângelo uma rapariga tão bonita como Nancy Niemes... — comentou Sloan.
— Não há dúvida. Por mim, nunca vi outra como ela.
Demoraram-se ainda a ver Nancy, até que a jovem desapareceu por detrás de uns carros. Então voltaram para a mesa, continuando a conversa interrompida, que se prolongou até mais de meio da tarde. Anoiteceu.
O saloon foi-se enchendo de vaqueiros, que bebiam e falavam de gado e de pastagens. San Ângelo, povoação antiga e de origem espanhola, começava por então a crescer e a prosperar com o negócio e a criação das grandes manadas.
Colocada a sudoeste do Texas, via passar de perto o pequeno rio Colorado — um rio que nada tem de comum com o enorme curso de água do mesmo nome, que atravessa três Estados do distante Oeste e forma, no Arizona, uma das maravilhas maiores criadas pela natureza, o Grande Desfiladeiro. Havia intenso movimento na rua principal de San Ângelo.
Os carros de cavalos cruzavam-se, com os animais marchando a passo e quase sem barulho. Alguns vaqueiros faziam ressoar as guitarras, uma mestiça cantava em espanhol no «saloon» de Catey, um rapaz de safões pretos instrumentava música estranha num acordeão, um grupo de mexicanos fazia ouvir uma velha canção. San Ângelo vivia em paz naquela noite branda e serena do Verão de 1897.
John Pistol também se encontrava aparentemente em paz, na sua casa fora da povoação, no caminho de Álamo. Sobre a porta havia uma lanterna acesa. A janela que dava para o caminho, estava aberta e deixava passar a luz interior. No entanto, um observador atento notaria em John um certo nervosismo. Passeava de um lado para o outro, no andar superior da casa.
Os móveis, todos de boa madeira rija, tinham sido feitos por ele. Não havia luxo na casa, apesar de ter dois andares. Viam-se ali coisas sóbrias e simples, o indispensável para viver. Nada de supérfluo.
John vivia quase como tinham vivido os pioneiros, os homens que haviam conquistado o Oeste tendo por armas a sua faca, o seu rifle e a sua coragem indomável. Vestia uma camisa cinzenta, calças justas, botins, o indispensável lenço em volta do pescoço, e do cinturão pendiam-lhe as suas duas armas, com coronhas brancas.
Parecia esperar alguém, De súbito parou, atento, arqueando as sobrancelhas. Ouviu o ruído das patas de um cavalo, ruído que parecia aproximar-se. John abriu a porta e saiu para a varanda.
—És tu, Nancy?
Era de facto Nancy. Devia ser magnifica amazona, porque saltou agilmente do cavalo. Subiu os degraus que conduzia à varanda.
— Olá, Johnny!... — disse, com o seu luminoso sorriso. — Tinha pressa de estar a teu lado. Tu também?
— Eu também, Nancy.
— O tempo, o que o tempo fez, nada significa para nós. Ansiava por ver-te, Johnny.
— Obrigado, Nancy. Entra. Tenho bolos e chá. Vamos tomá-lo juntos.
— Que bem soa a palavra «juntos», Johnny... — murmurou ela, parando diante do rapaz e fitando-o nos olhos.
John poisou-lhe as mãos nos ombros. Parecia ir beijá-la, mas conteve-se. Baixou a cabeça. Um estranho pensamento lhe passara pela mente.
— Entra, Nancy.
Entraram. Nancy, sem deixar de o fitar, tirou o chapéu de vaqueiro mexicano, poisando-o sobre a mesa.
— Que pensas, Johnny?
— Nada... isto é, recordava coisas desagradáveis.
— Esquece-as. Eu farei o mesmo. Gostaria de ficar aqui contigo, Johnny. Que dizes?
— Sim, creio que sim... — murmurou ele, deitando a chá nas chávenas. Entregou uma das chávenas à rapariga.
Esta recostou-se na mesa, voltada para a janela aberta. John estava diante dela, um pouco do lado esquerdo.
— John Pistol... Quase ninguém se lembra do teu nome, todos te tratam assim. Mas não gosto da alcunha. Quem a inventou?
— Bah! Não sei... A gente da terra, creio eu, há anos, quando eu era um rapazola sempre pronto a bater--me e a puxar pelas armas. Por sorte, as voltas da existência tornaram-me mais calmo.
— Eu sei, Johnny. Já não te gabas da tua rapidez de pistoleiro... embora continues a usar as armas como dantes.
—É perigoso não as usar, no Oeste, e em San Ângelo talvez mais perigoso ainda. Pergunta a Bertin que artigo vende mais na sua loja. Dir-te-á que são as balas.
— Malditas balas!... — exclamou Nancy. — Sonho uma vida em paz, nos teus braços, sem o constante pesadelo das balas.
Agarrou-o pelas costas, atraiu-o a si e tentou beijá-lo. Não o conseguiu porque ele se afastou ligeiramente, voltando-se. Aninhou a cabeça no peito de John. Ficaram assim durante momentos. Depois, John moveu-se e Nancy, levantando a cabeça, viu que ele tinha empunhado um dos Colts.
— Preciso disto... — murmurou o rapaz. — Tu bem sabes que sim, Nancy. Se eu pudesse esquecer tudo...
— Oh! Sempre o passado a erguer-se entre nós, Johnny... — protestou ela, abanando a cabeça. — Julguei que tinhas mudado, durante os dois anos em que te não vi. De que tens receio?
— Do meu passado.
— Não é tão negro como pensas. Esquece-o e vivamos juntos, em paz. Queres?
John deixou passar alguns segundos, antes de responder. Olhava para a arma que tinha na mão, e a sua testa franzida indicava que hesitava na resposta.
— És demasiadamente bonita para mim, Nancy. Não te mereço. Há homens importantes que dariam tudo para casar contigo.
— Mas eu só te quero a ti.
— És demasiado boa, Nancy. Bem sabes que eu... que nós... O passado tem muita força...
Continuava com o revólver na mão. Na verdade não sabia por que motivo o empunhara. Sabia que não tinha qualquer necessidade da arma, naquele momento. Estavam sós, Nancy e ele, e havia entre ambos amor, não ódio. Mas continuava a segurar a arma. E continuava a hesitar na resposta.
Nancy olhava-o, como à espera de que ele a apertasse nos braços. E nesse momento estalou uma detonação. Johnny levantou a cabeça, surpreendido, e sentiu que Nancy se dobrava para trás, ferida no peito. Voltou-se para a janela e saltou para fora, num só impulso. A noite estava escura, e mal podia ver a um palmo de distância. Ao fundo, para além das árvores, havia uma vaga claridade, das luzes de San Ângelo. Voltou a entrar. Abriu a boca, espantado, petrificado no limiar da porta. Depois ajoelhou-se junto de Nancy, que estava caída no chão.
— Nancy! Querida!
Tomou-a nos braços, acariciou-lhe a face, ternamente, e fez o que não quisera fazer antes... beijou-a. Havia lágrimas nos seus olhos.
— Mataram-na... — murmurou.
Continuou a acariciá-la, maquinalmente, Sentindo-se vazio de pensamento. Estava morta, aquela bela rapariga que segundos antes pedia o seu amor. Alguém a ferira cobardemente, atravessando-lhe o coração.
Levantou o corpo dela, amorosamente, com infinito cuidado, e estendeu-o sobre uma espécie de tosco divã. Com as costas da mão, limpou o suor gelado que lhe molhava a testa. Depois, ainda maquinalmente, fez girar o tambor do revólver. Viu que lhe faltava uma bala e franziu o sobro-lho, sem compreender. Não se lembrava de ter disparado a arma, durante os últimos dias, e no entanto a cápsula vazia desaparecera também.
Deixou cair a arma no coldre e afundou-se numa cadeira, em frente da porta. Continuava sob os efeitos do tremendo choque sofrido, e não sabia o que fazer, nem sequer sabia pensar.
Tinha de avisar o xerife... Sim, era isso. Mas alguém o acreditaria? Estavam ali ambos, Nancy e ele, e de repente... Alguém acreditaria? Sentia vagamente que o seu carácter estranho, de misantropo, não lhe ganhara simpatias na povoação. Talvez o acusassem, a ele...
E Nancy estava morta...
A porta abriu-se, devagar, e no limiar surgiu a figura de um homem. O recém-chegado apontava um revólver à cabeça de John, e este compreendeu que, ao menor gesto, o outro dispararia. O pesadelo continuava, sob outro aspeto.
— Quieto, John Pistol! Se te mexes és um homem morto!... — fez uma pausa curta e concluiu: — A ninguém mataria com maior satisfação, patife!
John ficou imóvel, na mesma posição, sem falar. Apenas uma certa crispação na sua atitude traía a tensão dos músculos e dos nervos. Não o surpreendeu ver que, atrás do primeiro homem, estava outro. Assim como não ficou surpreendido ao reconhecer Buck e Sloan.
— Mataste-a, miserável assassino!... — disse Buck, com as feições contraídas. — Por que a mataste? Di-lo-ás ao xerife, e amanhã serás enforcado!
John olhou para o corpo sem vida de Nancy, como a despedir-se. Depois voltou a fitar Buck.
— Que fazias perto da minha casa, Buck?... — perguntou.
— Ouvimos o tiro quando passávamos perto, e viemos ver.
— Sabiam que Nancy tinha uma bala no coração, hem?
— Que insinuas? — Cala-te!... — bradou Sloan. — És um miserável! Mataste-a, e vamos entregar-te ao xerife.
— Não a matei...
John teve a súbita compreensão de que alguém cometera o crime para se desembaraçar ao mesmo tempo Nancy e dele. Compreendeu que nada do que dissesse poderia convencer o xerife. Era preciso fazer alguma coisa, naquele mesmo instante. Entregar-se seria morrer... e ele queria viver para se vingar.
— Não te mexas, John!... — gritou Buck.
Mas John entrou em ação nesse mesmo instante. Rápido como um raio, moveu o corpo, agarrou na cadeira e lançou-a contra Buck.
Este disparou ao mesmo tempo. Tinha-se afastado da porta quando foi atingido pela cadeira. A pancada e o movimento fizeram com que a bala se perdesse. John apenas tinha querido ganhar tempo, e conseguira-o.
— Quieto, assassino!... — rugiu Sloan.
Johnny continuou em ação. Voltou-se para Buck, curvando-se, mas não a tempo de evitar que a bala disparada por Sloan o ferisse de raspão. O seu punho esquerdo atingiu Buck na ponta do queixo. O vaqueiro tropeçou na cadeira e caiu, como um fardo, gritando:
— Mata-o, Sloan!
Na ordem de Buck havia um furioso desejo de morte. Sloan dispôs-se a obedecer, mas não contou com a rapidez de John. Este foi mais rápido. Quando Sloan, com os braços curvados, apoiados às ilhargas, ia disparar sobre ele, empunhou os seus dois Colts e começou a fazer fogo.
Justificava assim a sua alcunha.
John Pistol utilizava as armas com uma velocidade e uma precisão incríveis. Nunca saberia quantas balas disparou naquele instante. Muitas, decerto. O peito de Sloan cobriu-se de sangue, em menos de um segundo. Caiu junto de Buck, morto antes de tocar no chão. John podia ter abatido Buck, na mesma ocasião. Mas olhou-o com desprezo, dizendo:
— Não matei Nancy. Não poderia matá-la, nunca. Há todas as probabilidades do que tu sejas o assassino, mas não tenho provas. Parto, agora, mas voltarei. Havemos de ver-nos.
Curvou-se, ante o espanto de Buck a quem o medo paralisava, e acariciou pela última vez a face de Nancy. Depois, saltando pela janela, desapareceu.
— Assassino!... — exclamou Buck, dominando finalmente o seu medo. — Não poderás escapar, miserável!
Mas John já ia a distância, a galope. Afastava-se de Buck, de San Ângelo, de mais uma negra recordação a juntar às outras que sombriamente teciam o seu passado.
Ia sem rumo, à deriva, uma vez mais cortadas as raízes que o prendiam a um sítio definido. Seria perseguido, acossado como uma fera. Seria outra vez o solitário John Pistol, e de novo teria de abrir caminho a tiros.
Não podia provar que não havia assassinado Nancy. Tinha apenas uma certeza, a de que um dia voltaria ali para vingar aquela que tinha trazido à sua vida a única claridade de que podia recordar-se. Mas não seria melhor tentar descobrir imediatamente o verdadeiro criminoso, em vez de se deixar acusar e perseguir sem culpas? Talvez, mas John não se sentia em condições de refletir. Deixava-se arrastar por uma espécie de instinto. Sabia apenas que voltaria mais tarde, mais tarde...
Desapareceu, na escuridão da noite. A sua única ideia era afastar-se, ir para longe dali. Nunca esqueceria a imagem de Nancy, velada a luz maravilhosa dos seus olhos. Não, nunca a esqueceria...
— Bons-dias, John Pistol. Que tal vão as experiências com o milho híbrido. E os cavalos mestiços? Já os cruzaste com as éguas de Gales?
John Pistol ajeitou o lenço cor de tabaco, que levava ao pescoço. Bebeu o último gole de uísque.
— Vai tudo bem.
Não disse mais. Voltou as costas ao homem do bar e encaminhou-se para a porta, sem olhar para trás. Era um homem novo e forte, de ombros ligeiramente curvados, olhos azuis que por vezes as pálpebras escondiam.
O homem do bar ficou onde estava, a coçar o queixo e a olhar as coronhas brancas dos dois revólveres que oscilavam nos coldres, ao ritmo do andar de John Pistol.
— John Pistol era um tipo curioso, mas não sei por que raio lhe puseram a alcunha. Poucas vezes o vi servir-se das armas. É um homem tranquilo.
Um bebedor de nome Liberman, que dormitava sentado a uma das mesas, levantou a cabeça, com um ar desinteressado. Mas comentou:
— Hum! É verdade que parece um ermitão, mas não esqueças que esteve vários anos longe de San Ângelo... Pesa uma sombra sobre ele.
— Já pensei nisso. Dantes era falador e gostava de gracejar. Agora é uma múmia.
— Um morto-vivo... Sabes onde esteve?
— Foi correr aventuras pelo Oeste. Dizem que chegou à Califórnia.
— Em busca de oiro?
— Isso não sei. Pergunta-lho.
— Uma sombra... E aposto que é a sombra de uma mulher. Vá lá alguém saber o que fez. Trouxe uma sombra... mas também trouxe oiro.
— É um homem que aprecia a aventura. Deve ter ganho bem o seu oiro.
O bebedor limpou a boca com as costas da mão e olhou para o copo vazio. Levantou-se, pagou o copo e aproximou-se do balcão.
— Encha isto outra vez. Não sei o que seria dos homens, sem uísque e sem mulheres. Tenho a garganta seca como um pedaço de lixa. Não compreendo como John se satisfaz só de molhar a boca.
— É surpreendente ver, por terras do Oeste, um vaqueiro tão moderado. Vive satisfeito e bebe como um pássaro.
— Eu, pelo contrário, parece que tenho um bicho no estômago, que absorve tudo o que bebo.
Esvaziou o copo, de um trago.
— Encha outro, até cima. Dirigiu-se para a porta, de copo na mão.
— Eh!... — exclamou, chamando o «barman». — O John está a conversar com a Nancy Niemes. Que dizes àquilo?
— O quê?... — surpreendeu-se o outro. — Está a fazer-lhe namoro?
— Assim parece, Catey.
O «barman» saltou por cima do balcão, derrubou uma cadeira, caiu, levantou-se e correu para a porta. Quando chegou ao limiar, olhou na direção que Liberman indicava, e fez uma expressão de assombro.
— Incrível.
Catey ficou ainda mais surpreendido ao ouvir as risadas alegres de Nancy. John ria também, e a certa altura fez uma festa na cara da rapariga.
— Não é caso para tanto pasmo, Catey... — disse Liberman.
O «barman» não respondeu. Continuava a fitar os dois jovens que conversavam e riam. Sorriu enigmaticamente quando Nancy se despediu do rapaz e continuou o seu caminho, que a levaria a passar em frente do saloon.
— Então, Nancy? São noivos? Nunca te tinha visto falar com John. Foi uma surpresa, para mim.
Nancy fez um trejeito evasivo.
— Gosto dos homens estranhos, como John. Agradar-me-ia falar com ele, com tempo bastante para que me contasse as suas aventuras.
— Mas são noivos?
Nancy torceu o nariz, sem dúvida ofendida pelo excesso de curiosidade.
— Que te importa? És como as bisbilhoteiras de Trinity Street.
Catey corou, envergonhado, enquanto Liberman soltava uma ruidosa gargalhada. O «barman» olhou para todos os lados e balbuciou, atarantado.
— Não fales assim, Nancy. Não sou um murmurador, nem gosto de bisbilhotices. Mas o facto de esse rapaz ter falado contigo, demonstra que lhe agradas.
Liberman piscou um olho, divertido e declarou:
— E a quem não agradaria Nancy, homem? É uma das raparigas mais bonitas da terra. Cá por mim, deixava-me matar por ela.
Nancy sorriu, agradecendo o cumprimento, e seguiu o seu caminho, lesta e garrida.
— Claro... — acrescentou Liberman... — que Nancy é capaz de impressionar qualquer. Não me admira que esse tipo lhe faça a corte.
Catey, que limpava as mãos ao avental, assentiu com um movimento de cabeça. Mal prestou ao olhar de cobiça que Liberman dirigia à jovem. Pensava em John Pistol, que era a sua preocupação principal.
— Dá-me mais um copo de uísque, Catey... — disse ainda Liberman. — Tenho alguém à minha espera.
— Duvido. Tu nasceste para viver dentro de um barril de uísque. Devem esperar-te num bar, hem?
— E por que não há-de ser noutro lugar mais íntimo? Em casa de uma mulher, por exemplo...
— Ora! Não tenhas ilusões. Onde quer que estejas, empestas o ar. Não sei quem quererá conversar contigo, a não ser eu.
— Porque te deixo bons dólares.
— Sim, porque é esse o meu negócio... vender bebidas.
— E para que queres ganhar dinheiro? Compreenderia se fosse para conquistar alguma mulher bonita, mas és um solteirão empedernido.
— Ainda não encontrei a minha outra metade, mas bem podia ser Nancy Niemes.
— Hum! Não lhe serves. Procura uma velhota. És um urso feio e gordo. Faltam-te dois dentes e um dedo da mão, que cortaste quando eras empregado do carniceiro. Não penses em Nancy!
— Cala-te, estúpido!... — exclamou Catey, indignado. — Estou farto de te aturar. Ouviste? Põe-te ao largo!
Liberman franziu o sobrolho.
— Eu estou onde me apetece! Não saio daqui!
— Não? Pois vais ver!
Tentou expulsá-lo aos empurrões, mas o bebedor resistiu. Liberman agarrou-o pelo peitilho da camisa e, rapidamente, deu-lhe dois socos na cara, fazendo-o sangrar, Catey recebeu um segundo soco no estômago, encolheu-se com um gemido de dor, e apanhou um último soco em pleno queixo. Rolou no chão e ficou caído, de boca para baixo, imóvel.
O bêbedo fez uma careta desdenhosa. Olhou para os nós dos dedos da mão direita, doloridos, esfregou de leve com a palma da mão esquerda e encaminhou-se para o balcão. Pegou numa garrafa de uísque, mas não perdeu tempo a encher um copo. Bebeu pelo gargalo, largamente.
— Este uísque é bom... — comentou a meia voz. —Deve ser escocês. Voltou para junto do dono do «saloon», que continuava estendido e imóvel.
— Acorda, Catey. Eu não queria bater-te tanto... Toma o dinheiro que te devo pela bebida... e daqui em diante trata-me como deve ser...
Saiu do «saloon». Cheirava tremendamente a licor.
Atravessou a rua. Subiu para o passeio em frente, para o que teve de agarrar-se a um poste, e olhou em volta. Avançou uns passos, em ziguezague. A sua embriaguez acentuava-se cada vez mais. Chegou a altura em que ficou com a cara colada à vidraça de outro «saloon». Quando viu que tiravam cerveja, deu a volta e entrou.
— Dá-me uísque. Tenho sede.
O «barman» sorriu, divertido.
— Se pagares adiantado. Não estás em estado de saber o que fazes.
— Não?... — exclamou o bêbedo, levantando muito a cabeça. — Quem julgas tu que eu sou. Ninguém pode chamar-me trapalhão...
— Falo do teu estado, amigo. Como queres meter mais licor no estômago? Não cabe nem um dedal...
— Um balde... Sim, foi o que eu disse... Serve-me, que eu pago já. Aqui tens dinheiro.
O «barman» encolheu os ombros, trocando um olhar com os outros clientes.
— O homem já pagou, serve-o... — disse um vaqueiro alto, de costas largas e ombros fortes.
— Dá-lhe uma garrafa inteira e deixa-o.
— Vou servir-lhe, Buck.
Serviu a garrafa e Liberman foi-a esvaziando em longos tragos. Depois começou a contar coisas incoerentes e absurdas. Ria como um tolo, babava-se, tinha os olhos vermelhos e sentia a cabeça andar à roda. Falava muito, entre soluços espasmódicos provocados pela bebedeira.
— Este tipo aborrece-me... — disse Buck. — Estou a falar de coisas sérias, com Sloan, e esse bêbedo irrita--me. Põe-no na rua.
Ao ouvi aquilo. Liberman aproximou-se de Buck e replicou, em atitude de desafio:
— Não estou bêbedo, vaqueiro... Estou só um pouco tonto, sabes?
— Desaparece daqui, imbecil.
— Estou bem aqui. Se não te sentes bem, sai tu.
— Uf! Este tipo é insuportável! Não posso com ele.
— Não saio daqui, Buck! Já disse que não saio...
Liberman poisou as mãos nos ombros de Buck, envolvendo-o no seu hálito pestilento. Buck, com uma carre-ta de repugnância, sacudiu-o e aplicou-lhe duas bofetadas na cara. O bêbedo tentou resistir mas não teve tempo para isso.
Buck dobrou-o pela cintura e pô-lo ao ombro, como se fosse um saco de luzerna. Atravessou o «saloon», abriu uma porta interior que dava para um alpendre cheio de molhos de feno, e atirou para lá o bêbedo. Depois fechou a porta, correndo o fecho exterior.
— Fica ali a curtir a bebedeira... — disse, voltando à mesa de onde se levantara. — Está bem?
O «barman» concordou, com um aceno.
— Está muito bem. Ao menos ali não incomoda.
Buck disse qualquer coisa em voz baixa, ao ouvido de Sloan. Com um volver de olhos, apontou para a porta. Sloan voltou a cara e deu um estalo com a língua.
— Que mulher, hem? É maravilhosa!
Buck voltou a levantar-se e encaminhou-se para a porta. Ficou a seguir com o olhar a rapariga que se afastava, muito cingida no seu vestido.
— Nunca houve em San Ângelo uma rapariga tão bonita como Nancy Niemes... — comentou Sloan.
— Não há dúvida. Por mim, nunca vi outra como ela.
Demoraram-se ainda a ver Nancy, até que a jovem desapareceu por detrás de uns carros. Então voltaram para a mesa, continuando a conversa interrompida, que se prolongou até mais de meio da tarde. Anoiteceu.
O saloon foi-se enchendo de vaqueiros, que bebiam e falavam de gado e de pastagens. San Ângelo, povoação antiga e de origem espanhola, começava por então a crescer e a prosperar com o negócio e a criação das grandes manadas.
Colocada a sudoeste do Texas, via passar de perto o pequeno rio Colorado — um rio que nada tem de comum com o enorme curso de água do mesmo nome, que atravessa três Estados do distante Oeste e forma, no Arizona, uma das maravilhas maiores criadas pela natureza, o Grande Desfiladeiro. Havia intenso movimento na rua principal de San Ângelo.
Os carros de cavalos cruzavam-se, com os animais marchando a passo e quase sem barulho. Alguns vaqueiros faziam ressoar as guitarras, uma mestiça cantava em espanhol no «saloon» de Catey, um rapaz de safões pretos instrumentava música estranha num acordeão, um grupo de mexicanos fazia ouvir uma velha canção. San Ângelo vivia em paz naquela noite branda e serena do Verão de 1897.
John Pistol também se encontrava aparentemente em paz, na sua casa fora da povoação, no caminho de Álamo. Sobre a porta havia uma lanterna acesa. A janela que dava para o caminho, estava aberta e deixava passar a luz interior. No entanto, um observador atento notaria em John um certo nervosismo. Passeava de um lado para o outro, no andar superior da casa.
Os móveis, todos de boa madeira rija, tinham sido feitos por ele. Não havia luxo na casa, apesar de ter dois andares. Viam-se ali coisas sóbrias e simples, o indispensável para viver. Nada de supérfluo.
John vivia quase como tinham vivido os pioneiros, os homens que haviam conquistado o Oeste tendo por armas a sua faca, o seu rifle e a sua coragem indomável. Vestia uma camisa cinzenta, calças justas, botins, o indispensável lenço em volta do pescoço, e do cinturão pendiam-lhe as suas duas armas, com coronhas brancas.
Parecia esperar alguém, De súbito parou, atento, arqueando as sobrancelhas. Ouviu o ruído das patas de um cavalo, ruído que parecia aproximar-se. John abriu a porta e saiu para a varanda.
—És tu, Nancy?
Era de facto Nancy. Devia ser magnifica amazona, porque saltou agilmente do cavalo. Subiu os degraus que conduzia à varanda.
— Olá, Johnny!... — disse, com o seu luminoso sorriso. — Tinha pressa de estar a teu lado. Tu também?
— Eu também, Nancy.
— O tempo, o que o tempo fez, nada significa para nós. Ansiava por ver-te, Johnny.
— Obrigado, Nancy. Entra. Tenho bolos e chá. Vamos tomá-lo juntos.
— Que bem soa a palavra «juntos», Johnny... — murmurou ela, parando diante do rapaz e fitando-o nos olhos.
John poisou-lhe as mãos nos ombros. Parecia ir beijá-la, mas conteve-se. Baixou a cabeça. Um estranho pensamento lhe passara pela mente.
— Entra, Nancy.
Entraram. Nancy, sem deixar de o fitar, tirou o chapéu de vaqueiro mexicano, poisando-o sobre a mesa.
— Que pensas, Johnny?
— Nada... isto é, recordava coisas desagradáveis.
— Esquece-as. Eu farei o mesmo. Gostaria de ficar aqui contigo, Johnny. Que dizes?
— Sim, creio que sim... — murmurou ele, deitando a chá nas chávenas. Entregou uma das chávenas à rapariga.
Esta recostou-se na mesa, voltada para a janela aberta. John estava diante dela, um pouco do lado esquerdo.
— John Pistol... Quase ninguém se lembra do teu nome, todos te tratam assim. Mas não gosto da alcunha. Quem a inventou?
— Bah! Não sei... A gente da terra, creio eu, há anos, quando eu era um rapazola sempre pronto a bater--me e a puxar pelas armas. Por sorte, as voltas da existência tornaram-me mais calmo.
— Eu sei, Johnny. Já não te gabas da tua rapidez de pistoleiro... embora continues a usar as armas como dantes.
—É perigoso não as usar, no Oeste, e em San Ângelo talvez mais perigoso ainda. Pergunta a Bertin que artigo vende mais na sua loja. Dir-te-á que são as balas.
— Malditas balas!... — exclamou Nancy. — Sonho uma vida em paz, nos teus braços, sem o constante pesadelo das balas.
Agarrou-o pelas costas, atraiu-o a si e tentou beijá-lo. Não o conseguiu porque ele se afastou ligeiramente, voltando-se. Aninhou a cabeça no peito de John. Ficaram assim durante momentos. Depois, John moveu-se e Nancy, levantando a cabeça, viu que ele tinha empunhado um dos Colts.
— Preciso disto... — murmurou o rapaz. — Tu bem sabes que sim, Nancy. Se eu pudesse esquecer tudo...
— Oh! Sempre o passado a erguer-se entre nós, Johnny... — protestou ela, abanando a cabeça. — Julguei que tinhas mudado, durante os dois anos em que te não vi. De que tens receio?
— Do meu passado.
— Não é tão negro como pensas. Esquece-o e vivamos juntos, em paz. Queres?
John deixou passar alguns segundos, antes de responder. Olhava para a arma que tinha na mão, e a sua testa franzida indicava que hesitava na resposta.
— És demasiadamente bonita para mim, Nancy. Não te mereço. Há homens importantes que dariam tudo para casar contigo.
— Mas eu só te quero a ti.
— És demasiado boa, Nancy. Bem sabes que eu... que nós... O passado tem muita força...
Continuava com o revólver na mão. Na verdade não sabia por que motivo o empunhara. Sabia que não tinha qualquer necessidade da arma, naquele momento. Estavam sós, Nancy e ele, e havia entre ambos amor, não ódio. Mas continuava a segurar a arma. E continuava a hesitar na resposta.
Nancy olhava-o, como à espera de que ele a apertasse nos braços. E nesse momento estalou uma detonação. Johnny levantou a cabeça, surpreendido, e sentiu que Nancy se dobrava para trás, ferida no peito. Voltou-se para a janela e saltou para fora, num só impulso. A noite estava escura, e mal podia ver a um palmo de distância. Ao fundo, para além das árvores, havia uma vaga claridade, das luzes de San Ângelo. Voltou a entrar. Abriu a boca, espantado, petrificado no limiar da porta. Depois ajoelhou-se junto de Nancy, que estava caída no chão.
— Nancy! Querida!
Tomou-a nos braços, acariciou-lhe a face, ternamente, e fez o que não quisera fazer antes... beijou-a. Havia lágrimas nos seus olhos.
— Mataram-na... — murmurou.
Continuou a acariciá-la, maquinalmente, Sentindo-se vazio de pensamento. Estava morta, aquela bela rapariga que segundos antes pedia o seu amor. Alguém a ferira cobardemente, atravessando-lhe o coração.
Levantou o corpo dela, amorosamente, com infinito cuidado, e estendeu-o sobre uma espécie de tosco divã. Com as costas da mão, limpou o suor gelado que lhe molhava a testa. Depois, ainda maquinalmente, fez girar o tambor do revólver. Viu que lhe faltava uma bala e franziu o sobro-lho, sem compreender. Não se lembrava de ter disparado a arma, durante os últimos dias, e no entanto a cápsula vazia desaparecera também.
Deixou cair a arma no coldre e afundou-se numa cadeira, em frente da porta. Continuava sob os efeitos do tremendo choque sofrido, e não sabia o que fazer, nem sequer sabia pensar.
Tinha de avisar o xerife... Sim, era isso. Mas alguém o acreditaria? Estavam ali ambos, Nancy e ele, e de repente... Alguém acreditaria? Sentia vagamente que o seu carácter estranho, de misantropo, não lhe ganhara simpatias na povoação. Talvez o acusassem, a ele...
E Nancy estava morta...
A porta abriu-se, devagar, e no limiar surgiu a figura de um homem. O recém-chegado apontava um revólver à cabeça de John, e este compreendeu que, ao menor gesto, o outro dispararia. O pesadelo continuava, sob outro aspeto.
— Quieto, John Pistol! Se te mexes és um homem morto!... — fez uma pausa curta e concluiu: — A ninguém mataria com maior satisfação, patife!
John ficou imóvel, na mesma posição, sem falar. Apenas uma certa crispação na sua atitude traía a tensão dos músculos e dos nervos. Não o surpreendeu ver que, atrás do primeiro homem, estava outro. Assim como não ficou surpreendido ao reconhecer Buck e Sloan.
— Mataste-a, miserável assassino!... — disse Buck, com as feições contraídas. — Por que a mataste? Di-lo-ás ao xerife, e amanhã serás enforcado!
John olhou para o corpo sem vida de Nancy, como a despedir-se. Depois voltou a fitar Buck.
— Que fazias perto da minha casa, Buck?... — perguntou.
— Ouvimos o tiro quando passávamos perto, e viemos ver.
— Sabiam que Nancy tinha uma bala no coração, hem?
— Que insinuas? — Cala-te!... — bradou Sloan. — És um miserável! Mataste-a, e vamos entregar-te ao xerife.
— Não a matei...
John teve a súbita compreensão de que alguém cometera o crime para se desembaraçar ao mesmo tempo Nancy e dele. Compreendeu que nada do que dissesse poderia convencer o xerife. Era preciso fazer alguma coisa, naquele mesmo instante. Entregar-se seria morrer... e ele queria viver para se vingar.
— Não te mexas, John!... — gritou Buck.
Mas John entrou em ação nesse mesmo instante. Rápido como um raio, moveu o corpo, agarrou na cadeira e lançou-a contra Buck.
Este disparou ao mesmo tempo. Tinha-se afastado da porta quando foi atingido pela cadeira. A pancada e o movimento fizeram com que a bala se perdesse. John apenas tinha querido ganhar tempo, e conseguira-o.
— Quieto, assassino!... — rugiu Sloan.
Johnny continuou em ação. Voltou-se para Buck, curvando-se, mas não a tempo de evitar que a bala disparada por Sloan o ferisse de raspão. O seu punho esquerdo atingiu Buck na ponta do queixo. O vaqueiro tropeçou na cadeira e caiu, como um fardo, gritando:
— Mata-o, Sloan!
Na ordem de Buck havia um furioso desejo de morte. Sloan dispôs-se a obedecer, mas não contou com a rapidez de John. Este foi mais rápido. Quando Sloan, com os braços curvados, apoiados às ilhargas, ia disparar sobre ele, empunhou os seus dois Colts e começou a fazer fogo.
Justificava assim a sua alcunha.
John Pistol utilizava as armas com uma velocidade e uma precisão incríveis. Nunca saberia quantas balas disparou naquele instante. Muitas, decerto. O peito de Sloan cobriu-se de sangue, em menos de um segundo. Caiu junto de Buck, morto antes de tocar no chão. John podia ter abatido Buck, na mesma ocasião. Mas olhou-o com desprezo, dizendo:
— Não matei Nancy. Não poderia matá-la, nunca. Há todas as probabilidades do que tu sejas o assassino, mas não tenho provas. Parto, agora, mas voltarei. Havemos de ver-nos.
Curvou-se, ante o espanto de Buck a quem o medo paralisava, e acariciou pela última vez a face de Nancy. Depois, saltando pela janela, desapareceu.
— Assassino!... — exclamou Buck, dominando finalmente o seu medo. — Não poderás escapar, miserável!
Mas John já ia a distância, a galope. Afastava-se de Buck, de San Ângelo, de mais uma negra recordação a juntar às outras que sombriamente teciam o seu passado.
Ia sem rumo, à deriva, uma vez mais cortadas as raízes que o prendiam a um sítio definido. Seria perseguido, acossado como uma fera. Seria outra vez o solitário John Pistol, e de novo teria de abrir caminho a tiros.
Não podia provar que não havia assassinado Nancy. Tinha apenas uma certeza, a de que um dia voltaria ali para vingar aquela que tinha trazido à sua vida a única claridade de que podia recordar-se. Mas não seria melhor tentar descobrir imediatamente o verdadeiro criminoso, em vez de se deixar acusar e perseguir sem culpas? Talvez, mas John não se sentia em condições de refletir. Deixava-se arrastar por uma espécie de instinto. Sabia apenas que voltaria mais tarde, mais tarde...
Desapareceu, na escuridão da noite. A sua única ideia era afastar-se, ir para longe dali. Nunca esqueceria a imagem de Nancy, velada a luz maravilhosa dos seus olhos. Não, nunca a esqueceria...
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