Estava de novo ali, depois de quinze dias desesperantes num hospital de Santa Fé, para tentar convencer todos do seu erro ao julgarem-no, ainda que fosse a última coisa que fizesse na vida, sem se importar com o preço nem com as dificuldades.
Quando terminara a operação de Dick Duff e verificara o seu êxito, sentira qualquer coisa difícil de esquecer. Sentira outra vez confiança em si mesmo. Sentira de novo vontade de viver, de ser uma pessoa como as demais, e não um descarrilado, um inútil, um bêbedo.
Semelhante desejo merecia todos os sacrifícios, e para o tornar realidade não tinha outro remédio senão demonstrar a todos que não se embebedara, que Dick Duff fora salvo pelas suas mãos, que um indivíduo misterioso aparecera em cena para destruir todas as suas esperanças de resgate.
Compreendia que lhe ia ser muito difícil, quase impossível, pois não tinha por onde principiar. Como havia de demonstrar o que se passara naquela noite em sua casa? Encontrando o mascarado?... Mas como? E, entretanto, fora do quarto, na escada, na rua, as pessoas reuniam-se outra vez, como duas semanas antes, para o expulsarem da povoação, para lhe partirem outros ossos, se lhes caísse nas mãos.
John Frey sentiu um nó angustioso no estômago. Era um preço terrível o que se lhe exigia que pagasse pela sua reabilitação, mas estava disposto a pagá-lo. Na rua, no vestíbulo, continuavam a ouvir-se vozes e correrias. A indignação do povo subia de tom.
Mas desta vez não estava bêbedo; desta vez não se deixaria apedrejar como um cão vadio. Ia demonstrar-lhes que também tinha dentes... embora a sua perna não lhe fosse ainda muito útil. Tinham-lha partido em dois sítios e a soldagem era lenta. De súbito, ouviram-se passos firmes na escada. John destravou o revólver e soergueu-se. Uma voz disse junto da porta:
— Abra, Frey. Sou Bill Daniels.
John continuou deitado, mas perguntou:
— Que deseja, xerife? Estou a descansar.
Bill ordenou:
— Abra, por favor.
Frey acabou por se levantar. Não estava ninguém com Daniels, lá fora, e o médico fechou a porta assim que entrou o xerife. Este vinha sério e nervoso.
— Avisei-o — resmungou. — Se insiste em ficar, vamos ter sarilhos.
— Não será por minha culpa. Que me deixem em paz e eu não me meterei com eles.
— Isso não está na minha mão.
— Então, lamento-o. Mas não sei porque vem acusar-me, a mim, quando sou precisamente eu quem os podia processar.
— Você?
— Admira-se, xerife? Esqueceu-se, porventura, que passei quinze dias num hospital, por ter sido agredido pelos seus concidadãos? Esqueceu também que a minha casa foi queimada intencionalmente?
Daniels resmungou:
— Não se lembre de processar ninguém por isso, Frey. Só conseguiria complicar ainda mais as coisas.
— Não sei... Você parece esquecer que há autoridades superiores a si e ao juiz Boone. Mas não tenha medo; não me vou lamentar perante ninguém. Só desejo... — fez uma pausa nervosa e acrescentou: — Você não compreende porque regressei, pois não?
— Para ser sincero, não — confessou Daniels. — E estou intrigado, porque desconfio que tem qualquer coisa em vista. Não o julgo tão inocente que esperasse ser recebido de braços abertos, depois de o povo perder quinze mil dólares por sua culpa.
John perguntou:
— Por minha culpa? Tem a certeza de que foi por minha culpa, Daniels?
O xerife olhou-o sem compreender. Frey insistiu:
— Creio que chegou o momento de falar claro. Para que andarmos com rodeios? Naquela noite apresentou-se alguém em minha casa, quando Dick Duff já estava a salvo. Depois da operação, havia muitas esperanças de que se salvasse.
— De que está a falar? — resmungou Daniels.
— Estou a contar-lhe o que se passou, xerife... Como dizia, apresentou-se um homem em minha casa. Trazia a cara tapada com um lenço, obrigou-me a beber mais de meia garrafa de uísque e asfixiou Dick Duff com a almofada. Assassinou-o depois de eu o salvar!
Daniels fez um gesto de ceticismo e Frey apressou-se a explicar: '
— Previno-o de que não lhe conto isto para que me acredite, mas sim porque você me perguntou porque voltei a Los Alamos. Pois bem: vim para encontrar esse homem e obrigá-lo a confessar tudo, e para dizer também umas quantas verdades a vocês.
— Ouça — redarguiu o xerife —, aconselho-o a deixar-se de tolices. Ninguém acreditará nisso. Madge deixou-o antes de começar a operação, porque você principiou a beber. Ou é capaz de negar?
— Não.
— Então, a que vem essa história do mascarado e da bebedeira obrigada?
Frey suspirou longamente. Irritava-o descobrir que não o podiam acreditar, que as coisas estavam tão absurdamente complicadas que era inútil tentar justificar-se.
— Dê-me tempo. Talvez a sorte me ajude — disse.
Mas Daniels abanou a cabeça como um pêndulo.
— Não há sorte que lhe valha, doutor... Perdão, quis dizer senhor Frey. Você, já lho disse antes, pode ficar em Los Amos. Entrou neste quarto à força, mas não lhe negarei o direito de permanecer nele enquanto pagar. Bateu em dois homens, mas não o censuro, porque imagino que o provocaram primeiro... Ora bem: lá fora estão à sua espera, e eu não posso ficar aqui a guardar-lhe as costas. Não me pagam para isso, tenho mais que fazer. Portanto, antes que seja demasiado tarde, vá-se embora. E a última vez que o aconselho. Se resolver retirar-se, protegê-lo-ei até sair da povoação; de contrário...
— Prefiro arriscar-me. No entanto, obrigado pelo seu interesse.
Bill Daniels fez um gesto de resignação com ambos os braços.
— Como quiser. Eu já cumpri o meu dever.
— Durma descansado.
O xerife dirigiu-se para a porta. Quando já a abrira, virou-se para John e comentou:
— Se um mascarado veio matar Dick Duff, é de supor que fosse um dos da sua quadrilha, para evitar que ele desse à língua, não?
— Parece o mais lógico — redarguiu o «Doutor Uísque», com firmeza.
— Nesse caso, como é que o quer encontrar em Los Alamos? Julga que os assaltantes são de cá?
— Não sei, mas aqui sucederam as coisas e por aqui começarei. Quando descobrir alguma coisa, irei dizer-lha, xerife.
Havia ironia na sua voz. Bill Daniels notou-a e resolveu retirar-se sem fazer mais comentários: John Frey fechou a porta à chave e deitou-se. Necessitava de descansar. Além disso resolvera pôr à prova a paciência dos que o esperavam lá fora. Decerto, passado o primeiro rompante, acabariam por o deixar em paz.
Não se enganou. Na manhã seguinte, quando saiu do hotel para arranjar de comer, encontrou deserto o vestíbulo e ninguém, o esperava 'no passeio. Tal facto fê-lo sentir-se mais animado.
Se os habitantes de Los Alamos renunciassem a persegui-lo, teria muito mais liberdade de movimentos. Não era que tivesse muitas esperanças de conseguir averiguar a identidade do misterioso mascarado que matara Dick Duff, mas sempre lhe restava uma probabilidade.
Não hesitou no caminho a seguir. Estava certo de que em nenhum estabelecimento da povoação lhe serviriam comida, exceto em casa de Madge. Ela não lha recusaria. E como estava perto do hotel e havia pouca gente àquela hora na rua, conseguiu lá chegar sem ter maus encontros.
Madge e o avô estavam afadigados na cozinha, a tratar das refeições do dia. Na sala, um só cliente saciava o seu apetite, comendo ovos estrelados com presunto. John dirigiu-se diretamente para a porta da cozinha e encostou-se à ombreira.
— Bons-dias — cumprimentou, tentando adotar um tom despreocupado. — Podem dar de comer a um esfomeado?
Madge admirou-se de o ver, mas não pôde dissimular que a alegrava a visita. O avô, homem mais prático, torceu o nariz.
— John! — murmurou ela, correndo ao seu encontro. — Estava muito preocupada contigo. Ontem à noite soube o que se passara no hotel. O povo estava irritado...
— Também me pareceu — comentou ele, sorrindo —, mas passou-lhes depressa.
— Acha? — resmungou o velho. — Pois não esteja tão certo. As pessoas não esquecem tão facilmente.
Madge apressou-se a pôr termo à conversa. Segurou John por um braço e levou-o para uma mesa da sala de jantar.
— Vem — disse-lhe. — Vou servir-te imediatamente o pequeno-almoço. E não faças muito caso do avô. Eu também acredito que deixarão de se meter contigo.
-- Pois eu, não, Madge — redarguiu ele, sentando-se à mesa. — Mas já me contento com que me deixem alguns momentos sossegado, como agora. Portanto, antes que termine a trégua, dá-me qualquer coisa de comer. Tenho o estômago vazio.
— Sim.
Dirigiu-se para a cozinha.
John observou o homem que limpava a gordura do prato, com tanta energia que parecia querer levá-lo agarrado ao pão. Era um tipo gordo, baixote, de olhos bovinos. Não o perdia de vista e não havia precisamente simpatia na sua observação. Mas Frey, embora o conhecesse de vista, embora notasse a sua descarada animosidade, fez-se desentendido.
Madge regressou pouco depois com um prato de ovos com presunto, que lhe pôs diante.
— Vou buscar o café — disse-lhe. — Queres mais alguma coisa?
— Não. Creio que basta. Obrigado.
Quando ela voltava para a cozinha, e antes de o «Doutor Uísque» ter tempo de começar a comer, abriu-se a porta e entraram dois homens. Um deles era muito novo -- teria apenas vinte e dois ou vinte e três anos —, de estatura mediana e ombros largos. Vestia um blusão de couro preto, desabotoado, que lhe chegava um pouco abaixo da cintura, decerto para deixar livres as coronhas dos dois «Colts» que saíam dos coldres compridos. Tinha um rosto vivo e atraente. Não trazia chapéu e os cabelos escuros cobriam-lhe parte da testa. O outro era um tipo alto, desengonçado, de costas demasiado amplas para as suas pernas. Tinha os ombros puxados para cima, bicudos, e dava a impressão de não ter pescoço. A sua cara era tão comprida como a cabeça de um cavalo, e pouco mais humana.
John não os conhecia. Observou-os atentamente e não se admirou muito quando viu o rapazinho dirigir-se diretamente para ele e fitá-lo com insistência. Só lamentou que não o tivessem deixado comer tranquilo. Aqueles homens queriam luta.
No entanto, pegou num bocado de pão e começou a molhá-lo na gema dos ovos estrelados, sem fazer caso do que se aproximava. O do blusão de couro movia-se com grande à-vontade. Chegou à mesa e sentou-se defronte de John, como a coisa mais natural do mundo. O outro, o da cara de cavalo, ficara em pé, junto da porta, e não perdia ninguém de vista.
— Olá, doutor — disse o jovem.
Frey levantou a cabeça e viu-se verrumado por uns olhos penetrantes, inquietos.
— Não se esforce — disse-lhe o seu improvisado companheiro, com um sorriso irónico. — Não me conhece. Nunca nos vimos, até agora. Claro que talvez tenha ouvido o meu nome em qualquer lado. Chamo-me Dean Kennedy.
John não se lembrava dele e assim o deixou transparecer a sua expressão.
— Que quer? — perguntou, sem deixar de comer. --Armar zaragata?
— Não — riu-se o chamado Kennedy. — Prefiro que falemos sem nos zangarmos.
John disse:
— Muito bem. Nesse caso, comece.
O jovem olhou de soslaio para o outro comensal e viu que estava a estender a orelha para ouvir a conversa. Fez um sinal ao da cara de cavalo.
— Se já acabou de comer — disse, referindo-se ao gordo —, que pague e saia.
Antes de o visado poder protestar, já tinha a seu lado o dos ombros bicudos.
-- Bem ouviu — disse-lhe. — Não coma mais, pois já está demasiado godo. E melhor ir dar um passeio, para fazer a digestão.
Madge voltou naquele momento com a chávena de café. Ficou indecisa, alarmada, ao ver John acompanhado. Mas Frey dirigiu-lhe um sorriso animador, enquanto comentava:
— Obrigado, Madge. Se este cavalheiro quer tomar alguma coisa...
Dean Kennedy negou com a cabeça. Estava a olhar para a rapariga com visível entusiasmo e sorria zombeteiramente.
— Não me apetece comer -- respondeu. E acrescentou, indicando o gordo: — Receba essa conta. Depois talvez lhe peça qualquer coisa.
Madge, inquieta, encaminhou-se para a outra mesa, onde o comensal estava a tirar o dinheiro da algibeira. Um momento depois, o gordo saiu para a rua, e Madge, a um sinal de John, voltou para a cozinha. O homem da cara de cavalo continuava perto da porta, como se se aborrecesse. Foi então que Dean Kennedy começou:
— Vim para lhe pedir que me conte como foi a morte do meu amigo Dick Duff, doutor.
Naturalmente, John deixou de comer para fitar espantado o seu companheiro de mesa.
— Seu amigo? — perguntou.
O outro assentiu com um aceno de cabeça.
— Tanta complicação para si, não é verdade? Primeiro, os da povoação; agora, eu...
— Desculpe, mas não compreendo.
— Por favor... não se faça de novas. Sabe perfeitamente o que vim fazer a Los Alamos, doutor... Precisamente o mesmo que o senhor.
— O mesmo que eu?
— Exato: buscar os quinze mil dólares!
Quando terminara a operação de Dick Duff e verificara o seu êxito, sentira qualquer coisa difícil de esquecer. Sentira outra vez confiança em si mesmo. Sentira de novo vontade de viver, de ser uma pessoa como as demais, e não um descarrilado, um inútil, um bêbedo.
Semelhante desejo merecia todos os sacrifícios, e para o tornar realidade não tinha outro remédio senão demonstrar a todos que não se embebedara, que Dick Duff fora salvo pelas suas mãos, que um indivíduo misterioso aparecera em cena para destruir todas as suas esperanças de resgate.
Compreendia que lhe ia ser muito difícil, quase impossível, pois não tinha por onde principiar. Como havia de demonstrar o que se passara naquela noite em sua casa? Encontrando o mascarado?... Mas como? E, entretanto, fora do quarto, na escada, na rua, as pessoas reuniam-se outra vez, como duas semanas antes, para o expulsarem da povoação, para lhe partirem outros ossos, se lhes caísse nas mãos.
John Frey sentiu um nó angustioso no estômago. Era um preço terrível o que se lhe exigia que pagasse pela sua reabilitação, mas estava disposto a pagá-lo. Na rua, no vestíbulo, continuavam a ouvir-se vozes e correrias. A indignação do povo subia de tom.
Mas desta vez não estava bêbedo; desta vez não se deixaria apedrejar como um cão vadio. Ia demonstrar-lhes que também tinha dentes... embora a sua perna não lhe fosse ainda muito útil. Tinham-lha partido em dois sítios e a soldagem era lenta. De súbito, ouviram-se passos firmes na escada. John destravou o revólver e soergueu-se. Uma voz disse junto da porta:
— Abra, Frey. Sou Bill Daniels.
John continuou deitado, mas perguntou:
— Que deseja, xerife? Estou a descansar.
Bill ordenou:
— Abra, por favor.
Frey acabou por se levantar. Não estava ninguém com Daniels, lá fora, e o médico fechou a porta assim que entrou o xerife. Este vinha sério e nervoso.
— Avisei-o — resmungou. — Se insiste em ficar, vamos ter sarilhos.
— Não será por minha culpa. Que me deixem em paz e eu não me meterei com eles.
— Isso não está na minha mão.
— Então, lamento-o. Mas não sei porque vem acusar-me, a mim, quando sou precisamente eu quem os podia processar.
— Você?
— Admira-se, xerife? Esqueceu-se, porventura, que passei quinze dias num hospital, por ter sido agredido pelos seus concidadãos? Esqueceu também que a minha casa foi queimada intencionalmente?
Daniels resmungou:
— Não se lembre de processar ninguém por isso, Frey. Só conseguiria complicar ainda mais as coisas.
— Não sei... Você parece esquecer que há autoridades superiores a si e ao juiz Boone. Mas não tenha medo; não me vou lamentar perante ninguém. Só desejo... — fez uma pausa nervosa e acrescentou: — Você não compreende porque regressei, pois não?
— Para ser sincero, não — confessou Daniels. — E estou intrigado, porque desconfio que tem qualquer coisa em vista. Não o julgo tão inocente que esperasse ser recebido de braços abertos, depois de o povo perder quinze mil dólares por sua culpa.
John perguntou:
— Por minha culpa? Tem a certeza de que foi por minha culpa, Daniels?
O xerife olhou-o sem compreender. Frey insistiu:
— Creio que chegou o momento de falar claro. Para que andarmos com rodeios? Naquela noite apresentou-se alguém em minha casa, quando Dick Duff já estava a salvo. Depois da operação, havia muitas esperanças de que se salvasse.
— De que está a falar? — resmungou Daniels.
— Estou a contar-lhe o que se passou, xerife... Como dizia, apresentou-se um homem em minha casa. Trazia a cara tapada com um lenço, obrigou-me a beber mais de meia garrafa de uísque e asfixiou Dick Duff com a almofada. Assassinou-o depois de eu o salvar!
Daniels fez um gesto de ceticismo e Frey apressou-se a explicar: '
— Previno-o de que não lhe conto isto para que me acredite, mas sim porque você me perguntou porque voltei a Los Alamos. Pois bem: vim para encontrar esse homem e obrigá-lo a confessar tudo, e para dizer também umas quantas verdades a vocês.
— Ouça — redarguiu o xerife —, aconselho-o a deixar-se de tolices. Ninguém acreditará nisso. Madge deixou-o antes de começar a operação, porque você principiou a beber. Ou é capaz de negar?
— Não.
— Então, a que vem essa história do mascarado e da bebedeira obrigada?
Frey suspirou longamente. Irritava-o descobrir que não o podiam acreditar, que as coisas estavam tão absurdamente complicadas que era inútil tentar justificar-se.
— Dê-me tempo. Talvez a sorte me ajude — disse.
Mas Daniels abanou a cabeça como um pêndulo.
— Não há sorte que lhe valha, doutor... Perdão, quis dizer senhor Frey. Você, já lho disse antes, pode ficar em Los Amos. Entrou neste quarto à força, mas não lhe negarei o direito de permanecer nele enquanto pagar. Bateu em dois homens, mas não o censuro, porque imagino que o provocaram primeiro... Ora bem: lá fora estão à sua espera, e eu não posso ficar aqui a guardar-lhe as costas. Não me pagam para isso, tenho mais que fazer. Portanto, antes que seja demasiado tarde, vá-se embora. E a última vez que o aconselho. Se resolver retirar-se, protegê-lo-ei até sair da povoação; de contrário...
— Prefiro arriscar-me. No entanto, obrigado pelo seu interesse.
Bill Daniels fez um gesto de resignação com ambos os braços.
— Como quiser. Eu já cumpri o meu dever.
— Durma descansado.
O xerife dirigiu-se para a porta. Quando já a abrira, virou-se para John e comentou:
— Se um mascarado veio matar Dick Duff, é de supor que fosse um dos da sua quadrilha, para evitar que ele desse à língua, não?
— Parece o mais lógico — redarguiu o «Doutor Uísque», com firmeza.
— Nesse caso, como é que o quer encontrar em Los Alamos? Julga que os assaltantes são de cá?
— Não sei, mas aqui sucederam as coisas e por aqui começarei. Quando descobrir alguma coisa, irei dizer-lha, xerife.
Havia ironia na sua voz. Bill Daniels notou-a e resolveu retirar-se sem fazer mais comentários: John Frey fechou a porta à chave e deitou-se. Necessitava de descansar. Além disso resolvera pôr à prova a paciência dos que o esperavam lá fora. Decerto, passado o primeiro rompante, acabariam por o deixar em paz.
Não se enganou. Na manhã seguinte, quando saiu do hotel para arranjar de comer, encontrou deserto o vestíbulo e ninguém, o esperava 'no passeio. Tal facto fê-lo sentir-se mais animado.
Se os habitantes de Los Alamos renunciassem a persegui-lo, teria muito mais liberdade de movimentos. Não era que tivesse muitas esperanças de conseguir averiguar a identidade do misterioso mascarado que matara Dick Duff, mas sempre lhe restava uma probabilidade.
Não hesitou no caminho a seguir. Estava certo de que em nenhum estabelecimento da povoação lhe serviriam comida, exceto em casa de Madge. Ela não lha recusaria. E como estava perto do hotel e havia pouca gente àquela hora na rua, conseguiu lá chegar sem ter maus encontros.
Madge e o avô estavam afadigados na cozinha, a tratar das refeições do dia. Na sala, um só cliente saciava o seu apetite, comendo ovos estrelados com presunto. John dirigiu-se diretamente para a porta da cozinha e encostou-se à ombreira.
— Bons-dias — cumprimentou, tentando adotar um tom despreocupado. — Podem dar de comer a um esfomeado?
Madge admirou-se de o ver, mas não pôde dissimular que a alegrava a visita. O avô, homem mais prático, torceu o nariz.
— John! — murmurou ela, correndo ao seu encontro. — Estava muito preocupada contigo. Ontem à noite soube o que se passara no hotel. O povo estava irritado...
— Também me pareceu — comentou ele, sorrindo —, mas passou-lhes depressa.
— Acha? — resmungou o velho. — Pois não esteja tão certo. As pessoas não esquecem tão facilmente.
Madge apressou-se a pôr termo à conversa. Segurou John por um braço e levou-o para uma mesa da sala de jantar.
— Vem — disse-lhe. — Vou servir-te imediatamente o pequeno-almoço. E não faças muito caso do avô. Eu também acredito que deixarão de se meter contigo.
-- Pois eu, não, Madge — redarguiu ele, sentando-se à mesa. — Mas já me contento com que me deixem alguns momentos sossegado, como agora. Portanto, antes que termine a trégua, dá-me qualquer coisa de comer. Tenho o estômago vazio.
— Sim.
Dirigiu-se para a cozinha.
John observou o homem que limpava a gordura do prato, com tanta energia que parecia querer levá-lo agarrado ao pão. Era um tipo gordo, baixote, de olhos bovinos. Não o perdia de vista e não havia precisamente simpatia na sua observação. Mas Frey, embora o conhecesse de vista, embora notasse a sua descarada animosidade, fez-se desentendido.
Madge regressou pouco depois com um prato de ovos com presunto, que lhe pôs diante.
— Vou buscar o café — disse-lhe. — Queres mais alguma coisa?
— Não. Creio que basta. Obrigado.
Quando ela voltava para a cozinha, e antes de o «Doutor Uísque» ter tempo de começar a comer, abriu-se a porta e entraram dois homens. Um deles era muito novo -- teria apenas vinte e dois ou vinte e três anos —, de estatura mediana e ombros largos. Vestia um blusão de couro preto, desabotoado, que lhe chegava um pouco abaixo da cintura, decerto para deixar livres as coronhas dos dois «Colts» que saíam dos coldres compridos. Tinha um rosto vivo e atraente. Não trazia chapéu e os cabelos escuros cobriam-lhe parte da testa. O outro era um tipo alto, desengonçado, de costas demasiado amplas para as suas pernas. Tinha os ombros puxados para cima, bicudos, e dava a impressão de não ter pescoço. A sua cara era tão comprida como a cabeça de um cavalo, e pouco mais humana.
John não os conhecia. Observou-os atentamente e não se admirou muito quando viu o rapazinho dirigir-se diretamente para ele e fitá-lo com insistência. Só lamentou que não o tivessem deixado comer tranquilo. Aqueles homens queriam luta.
No entanto, pegou num bocado de pão e começou a molhá-lo na gema dos ovos estrelados, sem fazer caso do que se aproximava. O do blusão de couro movia-se com grande à-vontade. Chegou à mesa e sentou-se defronte de John, como a coisa mais natural do mundo. O outro, o da cara de cavalo, ficara em pé, junto da porta, e não perdia ninguém de vista.
— Olá, doutor — disse o jovem.
Frey levantou a cabeça e viu-se verrumado por uns olhos penetrantes, inquietos.
— Não se esforce — disse-lhe o seu improvisado companheiro, com um sorriso irónico. — Não me conhece. Nunca nos vimos, até agora. Claro que talvez tenha ouvido o meu nome em qualquer lado. Chamo-me Dean Kennedy.
John não se lembrava dele e assim o deixou transparecer a sua expressão.
— Que quer? — perguntou, sem deixar de comer. --Armar zaragata?
— Não — riu-se o chamado Kennedy. — Prefiro que falemos sem nos zangarmos.
John disse:
— Muito bem. Nesse caso, comece.
O jovem olhou de soslaio para o outro comensal e viu que estava a estender a orelha para ouvir a conversa. Fez um sinal ao da cara de cavalo.
— Se já acabou de comer — disse, referindo-se ao gordo —, que pague e saia.
Antes de o visado poder protestar, já tinha a seu lado o dos ombros bicudos.
-- Bem ouviu — disse-lhe. — Não coma mais, pois já está demasiado godo. E melhor ir dar um passeio, para fazer a digestão.
Madge voltou naquele momento com a chávena de café. Ficou indecisa, alarmada, ao ver John acompanhado. Mas Frey dirigiu-lhe um sorriso animador, enquanto comentava:
— Obrigado, Madge. Se este cavalheiro quer tomar alguma coisa...
Dean Kennedy negou com a cabeça. Estava a olhar para a rapariga com visível entusiasmo e sorria zombeteiramente.
— Não me apetece comer -- respondeu. E acrescentou, indicando o gordo: — Receba essa conta. Depois talvez lhe peça qualquer coisa.
Madge, inquieta, encaminhou-se para a outra mesa, onde o comensal estava a tirar o dinheiro da algibeira. Um momento depois, o gordo saiu para a rua, e Madge, a um sinal de John, voltou para a cozinha. O homem da cara de cavalo continuava perto da porta, como se se aborrecesse. Foi então que Dean Kennedy começou:
— Vim para lhe pedir que me conte como foi a morte do meu amigo Dick Duff, doutor.
Naturalmente, John deixou de comer para fitar espantado o seu companheiro de mesa.
— Seu amigo? — perguntou.
O outro assentiu com um aceno de cabeça.
— Tanta complicação para si, não é verdade? Primeiro, os da povoação; agora, eu...
— Desculpe, mas não compreendo.
— Por favor... não se faça de novas. Sabe perfeitamente o que vim fazer a Los Alamos, doutor... Precisamente o mesmo que o senhor.
— O mesmo que eu?
— Exato: buscar os quinze mil dólares!
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