quarta-feira, 13 de junho de 2018

BUF166.14 Assim desapareceu o doutor "Uísque"

Trouxeram-lhe uma bacia de água quente. Em cima da mesa tinha tudo quanto precisava: ligaduras, instrumentos, pomadas...
John aproximou-se do leito e parou a olhar o rosto pálido e adormecido de Madge. As mãos tremeram-lhe ligeiramente, tão comovido se sentia. Daniels aproximou-se, pelas suas costas, e murmurou:
— Se não se sente em condições de operar, doutor...
Mas ele acenou afirmativamente com a cabeça. Tinha a testa perlada de suor frio e a boca seca. No entanto, estava firmemente decido a operar. Era a segunda vez que o destino o colocava na terrível situação de ter nas suas mãos a vida de uma mulher amada.
Da primeira vez falhara, mas agora não falharia. Tinha de salvar Madge! A bala alojara-se muito perto do coração e era perigosíssimo extrai-la; o mais pequeno erro poderia ser fatal. Era esta certeza que o torturava.
Limpou o suor da testa. A anestesia adormecera Madge, tinha de se apressar antes que o efeito passasse. Lembrou-se de Dick Duff, que conseguira salvar. Por que seria diferente agora? Mas a verdade é que era diferente, pois a vida de Madge valia para ele muito mais do que a sua própria vida. Era isso o pior.
Aproximou-se da mesa e pegou no bisturi.

— Precisa de mais alguma coisa, doutor? — perguntou-lhe Daniels. Abanou a cabeça e murmurou: — Preciso apenas que ninguém me incomode. Saiam todos.
O xerife empurrou docemente o velho Sidway, saíram e fecharam a porta. John aproximou-se, devagar, da cama, fitou de novo o rosto imóvel de Madge e murmurou:
— Tenho de conseguir. Por ti... e por mim. Que Deus me ajude!
Quando enterrou o bisturi na carne pálida de Madge teve a sensação de que o enterrava no seu próprio corpo. Do lado de fora, o velho Sidway perguntou, receoso, a Bill Daniels:
— Acha que a salvará?
E o xerife respondeu-lhe:
— Tenho a certeza de que salvará.
Duas horas depois, a porta do quarto abriu-se e John Frey apareceu no limiar. Tinha a cara completamente coberta de suor, a camisa colada ao corpo e os olhos avermelhados e brilhantes. Parecia incapaz de se manter muito mais tempo de pé. Mas havia no seu olhar e nos seus lábios lívidos algo que animou todos os outros.
O avô de Madge foi apressadamente ao seu encontro e perguntou-lhe:
— Que se passou?
No rosto extenuado de John Frey brilhou um sorriso. Como única resposta, colocou na mão do velho uma bala, um pedacinho de chumbo amachucado, informe e enegrecido. Daniels deu-lhe uma pancada amigável nas costas e estendeu-lhe uma garrafa cheia de uísque.
— Beba um golo, doutor. Merece-o.
John recusou, com um aceno de cabeça, e respondeu:
— Prefiro um copo de cerveja. Não quero que me voltem a tratar por «Doutor Uísque».
As notícias espalharam-se como um rastilho de pólvora, não só por Los Alamos como por todos os lugares situados num raio de muitos quilómetros.
A história do «Doutor Uísque» andou de boca em boca, foi aumentada e modificada, de tal modo que o médico se converteu numa espécie de herói lendário, ao qual todos se sentiam na obrigação de apresentar desculpas. Mas ele continuou fechado em casa dos Sidways, à cabeceira do leito, atento, dia e noite, à convalescença de Madge. Não recebia visitas nem falava com ninguém.
Só Bill Daniels estava autorizado a entrar naquela espécie de santuário em que John convertera o quarto de Madge.
Uma semana depois, o xerife apresentou-se, muito pálido, mas com os olhos repletos de felicidade.
— Como vai a nossa doente? — perguntou, a sorrir.
— Muito bem, xerife — respondeu-lhe a jovem. —Creio que o pior já lá vai.
— Assim parece — concordou o xerife, e tirou da algibeira um papel que estendeu a John.
— Que é isso?
— A sua licença de médico, doutor. Consegui que a devolvessem sem perda de muito tempo.
Frey comoveu-se um pouco, e Madge também.
— Obrigado. A verdade é que me sentia um pouco culpado, sem este papelinho.
— Fique sabendo que era o único a pensar assim. Ainda não foi à rua?
— Não.
— O povo está envergonhado. Não imagina quantos passaram já pelo escritório, a rogar-me que lhe peça perdão em nome da povoação. Foi uma grande lição para todos nós.
— Não quero lamentações — murmurou John. — As coisas acontecem, e isso é que importa.
— No entanto, deve concordar que é lógico se sintam envergonhados.
— Compreendo, mas não posso fazer nada para remediar.
— Pode, sim. Fique em Los Alamos como médico, e eles terão ocasião de se penitenciar.
— Já lhe disse que tenciono partir, xerife. Quando Madge estiver curada, partiremos para Santa Fé. Espero que me ofereçam o meu antigo lugar. Se continuasse aqui teria más recordações para o resto da vida.
Daniels não quis insistir. Disse, apenas:
— Compreendo, e não o obrigarei. Pedirei que nos mandem outro médico, embora o povo se vá sentir defraudado.
— Esquecerão depressa, verá.
Bill Daniels levantou-se e comentou:
— Se não sair como o doutor Griffith... Bem nos enganou a todos! Como havíamos de suspeitar...?
— Confesso que também não pensei nele, até do fim — redarguiu John. — No entanto, era lógico.
— Era lógico porquê?
— A partir do momento em que soube que alguém tinha o dinheiro, devia ter pensado nele. Primeiro, porque era lógico que Dick Duff, conhecendo a aldeia como conhecia e gravemente ferido como estava, fosse a casa do doutor Griffith. Segundo, porque qualquer leigo em medicina o teria matado, depois de lhe tirar o dinheiro. Griffith limitou-se a abandoná-lo, pois sabia que estava a morrer sem precisar de ajuda. Terceiro, porque não seria lógico uma pessoa qualquer utilizar o sistema da almofada para matar um homem. Quarto, pela sua mentira acerca do motivo que causara a morte de Duff. Julguei que aludira à perfuração intestinal para se livrar, profissionalmente, de mim; não pensei que o fizesse com a intenção de destruir a história do mascarado.
— Tem razão, Frey — concordou Daniels. — Talvez tivéssemos motivos para suspeitar dele. Mas não suspeitámos, até Thorne o desmascarar, inconscientemente. Aquela mentira da quinta e da sexta-feira...
— Griffith confiou demasiado. Devia ter calculado que tudo se descobriria. Fingiu partir na noite de quinta-feira, para se livrar de suspeitas, mas ficou por aí a rondar, inquieto, para saber se o Duff morria ou não. Quando desconfiou de que eu o salvara, decidiu intervir. Mas perdera quase um dia, que depois não pôde justificar. E Madge, por ter adivinhado algo de suspeito no caso, sofreu as consequências.
—Bem, podia ter-se passado tudo pior — comentou a jovem. — Não nos lamentamos.
Daniels viu o modo como ambos se olhavam e apressou-se a dizer:
— Deixo-os... Ainda tenho muito que fazer.
 
 
 
F I M

Sem comentários:

Enviar um comentário