A passagem entre as colinas surgiu ante os olhos de Frank Daly. Olhou em torno. Não se via vivalma. Era muito experiente em lutas para se deixar cair numa emboscada. Frank apeou-se dum salto, despediu o seu cavalo com uma palmada afetuosa, sacou um dos seus revólveres e seguiu avançando lenta e silenciosamente, quase rastejando entre as altas ervas.
O silêncio que se fizera depois do grito de Niky e da anterior detonação, só lhe confirmava o facto de que ela estava em perigo… ou já deixara de estar por a sua vida ter sido também sacrificada àquela orgia de crimes e de sangue.
Uma cólera surda, fria, se apoderou dele. Se isso se verificasse, Frank Daly ia ser muito mais cruel e vingativo do que anteriormente. Compreendeu que amava aquela rapariga loira.
Avançou deste modo até à estreita boca da garganta. De ambos os lados elevavam-se as duas colinas, suavemente, contra o céu estrelado. Frank sorriu para si. Então, pegou numa pedra e atirou-a para a entrada da estreita abertura entre as duas vertentes. Não sucedeu mais nada a não ser o ruído da pedra a rebolar. Frank, de resto, não esperava outra coisa. Se Marcus O'Malley ou Nino Saphiro estavam ali não iam agir como mova-tos. Mas era isso, precisamente, o que confirmava a ideia de Daly. Eles estavam emboscados, à sua espera. O facto de nem um leve rumor se seguir ao ruído seco da pedra, demonstrou-lhe que eles estavam já de sobreaviso.
Frank redobrou de precauções. Só, frente a qualquer um dos seus dois inimigos, as suas forças seriam iguais. Mas teve a intuição de que eram mais os seus adversários. E nesse caso, Daly estava em inferioridade. Não esquecia a fama e categoria de Nino Saphiro, o bandoleiro do Sudoeste. Gente daquela une-se facilmente tipos como Marcus O'Malley.
Desfez-se do seu chapéu branco, que atirou para cima duns arbustos, e baixou as dobras das suas velhas calças negras. Sabia que aquele era o ponto de referência de que os inimigos estavam à espera. Então, estendendo-se sobre a erva, deslizou para a colina da direita, foi rastejando, silenciosamente, lento mas seguro como índio experiente. Cerca de cinco minutos depois, atingia o sopé da colina. Uma vez aí, apertou o revólver que nunca largara da mão direita, aproximou-se com cuidado do extremo da colina e saltou para trás surpreendido quando viu a cena que as estrelas debilmente iluminavam.
Niky estava amarrada no chão, com correias que pareciam de coiro, amordaçada com um trapo. Ao pé dela, ajoelhado, de revólver na mão, estava Marcus O'Malley. Mais adiante, detrás dumas pedras, estendido, Nino Saphiro esperava o aparecimento do adversário.
Frank sorriu duramente. Tinha repentinamente conseguido alguma vantagem se bem que, evidentemente, se impusesse liquidar antes Saphiro. Se abatia primeiro Marcus, Nino acabava com ele sem dificuldade. Era dos homens a quem não se pode conceder qualquer oportunidade. Quanto a Marcus, se atirasse primeiro sobre Saphiro, aproveitaria o momento para matar antes Niky, sabedor de que era o maior dano que lhe podia fazer. A sua própria posição demonstrava-lho assim. Com os trunfos na mão, tinha que escolher. Instintivamente, com a mão esquerda procurou também o outro revólver acariciando-o. Urna ideia lhe germinou no cérebro. E se experimentasse com os dóis ao mesmo tempo ?
Era uma pontaria dupla, completamente impossível. Só se pode fazer pontaria a um só sítio, porque a vista não abrange os dois. A luz débil, esmorecida, da noite, dificultava a operação. No entanto, era a única hipótese.
Não ter piedade. Era uma luta entre seres implacáveis, duros e cruéis. Não pretendia ser melhor do que os lá debaixo que lutavam por uma causa torpe. Ele lutava por um motivo mais elevado, capaz de redimir o seu passado. Já não era a vingança, nem o ódio, nem rancor algum. Porque se bem que Marcus fosse o culpado de tudo, Ben tinha pago o seu delito. Porventura também Luke, com as feridas daquela noite. Agora tratava-se de Niky, de salvá-la a ela e, com ela, «Cuenca» inteira. Ainda que isso significasse a sua definitiva perdição, o seu regresso à senda de proscrito. Sem provas da culpabilidade de Marcus, sem um único indício para demonstrar, se triunfasse na luta, que o homem morto era bem mais do que homem jovem cheio de simpatia...
Não pesou mais os prós e os contra. Levantou os dois revólveres que cintilavam luz dos astros. Se disparava assim, o êxito era muito mais seguro. Mas o seu instinto nobre, de homem leal, rebelou-se, ainda que estivesse perante o grave risco de perder a última cartada, e com ela a vida. Não podia ser tão implacável, como uns assassinos...
— Eh! — gritou violentamente. — Aqui Saphiro!
Nino Saphiro e Marcas O'Malley, violentamente sobressaltados, levantaram a cabeça. Frank viu também os seus revólveres apontarem para ele, rápidos, precisos. Não davam quartel nem oportunidade. Daly decidiu-se pela salvação de Niky; à custa de si mesmo. Ela pareceu compreendê-lo, abriu muito os olhos, olhou para o alto, acenou vivamente que não com a cabecita dourada, indefesa...
Frank Daly fez o melhor tiro de toda a sua vida, com o revólver esquerdo, precisamente. Com a primeira bala viu saltar a arma das mãos de Marcus. A segunda do mesmo revólver desfez-lhe a cabeça em pequenos fragmentos de ossos e massa encefálica. Marcus O'Malley deixou de existir, transformado no cadáver horripilante que caiu sobre a assustadora Niky.
Ao mesmo tempo, o chumbo rápido e preciso de Saphiro penetrou na carne de Daly. Este cambaleou na borda da crista. Sentiu estalar nos seus ouvidos o riso agudo e violento de Nino Saphiro, cujas mãos ensanguentadas voltavam a alçar os percutores em frações de segundo, enquanto o chumbo disparado lhe perfurava as entranhas com dor lancinante.
Frank Daly sorriu triunfante. Saphiro não o tinha matado. Alguma coisa lhe falhou, porventura o inesperado do ataque, e o tiro saíra-lhe demasiado alto. Estavam duas peças de chumbo alojadas no seu corpo, mas longe do coração e dos pulmões. Assim, Frank Daly repetiu o tiro, centrando o fogo de ambos os revólveres no homem do chapéu mexicano sobre quem os seus olhos gelados se fixavam, implacáveis.
Foram dois sulcos de fogo vermelho que perfuraram o azul da noite, tendo o mesmo alvo: o peito de Nino Saphiro. O bandoleiro disparou, quando já a sua pontaria infalível tinha sido afetada pela morte. As balas perderam-se no firmamento. Saphiro ergueu-se, deixando cair o chapéu por terra e cambaleou como um bêbedo, levando as mãos ao peito. As luvas cinzentas tornaram-se vermelhas com o sangue que saía tumultuosamente.
Caminhou exatamente cinco passos antes de dirigir um último olhar, vidrado já, para o pico da encosta, ao seu vencedor, e sem compreender exatamente o que tinha acontecido. O bandoleiro do Sudoeste rolou entre pedras e arbustos, até se deter, não longe donde jaziam Niky e Marcus, este rígido e imóvel.
Frank também largou as armas. «O Abutre», pensou, fora ferido em pleno voo. Mas ainda tinha força para intentar a descida. Desceu cambaleando, tão violentamente como Saphiro ao morrer, rolou duas ou três vezes pela ladeira da encosta e teve que recuperar dificilmente o equilíbrio, para não voltar a cair, desta vez de cabeça.
Finalmente, chegou à garganta. Correu hesitante para Niky, sacou duma faca de mato, inclinou-se e cortou as correias que amarravam Niky. Este último esforço fê-lo cair de bruços, inanimado. O seu sangue confundiu-se com o de Marcus O'Malley.
Niky arrancou a mordaça, desprendeu as pernas, E lançou-se sobre Frank, ansiosamente.
— Frank, meu amor ! — gemeu suplicante. — Não pode ser... não podes morrer agora...! Quando tudo se resolveu!
Frank abriu os olhos. O seu olhar turvou-se por momentos. Sorriu com dificuldade.
— Não, Niky, não se resolveu… senão a minha estúpida vingança... Mas, isso sim, valeu a pena... porque te salvei a ti...
— Oh, Frank, não digas isso! Hás-de lutar pela tua vida! Eu amo-te, amo-te!
— Não digas isso... Matei dois dos teus irmãos...
— E que significa isso para mim? Eram maus, querido! Marcus assassinou o pai e o Luke esta noite! Ele matou-os, aos dois! Luke presenciou o seu crime... Por isso, o matou, na minha frente.
— Deveras... deveras, Niky? — pronunciou Frank, ofegante, sentindo que as forças o abandonavam.
— Claro que sim! Eu vi-o! Era uma hiena sangrenta!
— Então, eu... tinha razão. A senhora Redfem falou-me de um homem com chapéu de anta e pele de serpente. Eu tinha-o visto também... O meu atacante era o assassino de Redfem...
— Sim, Frank, sim... Era ele, Mateus.
— Mas o xerife não acredita em mim, Niky. Se sobreviver, irei para a forca.
— Frank, não! Eu... eu sou testemunha... Posso-te eu salvar... Acreditarão em mim...
-- Em ti, sim, querida. Fá-lo-ás, deveras?
— Naturalmente, meu amor. Tens que viver. Tens que viver...,
— Tenho que viver... — Frank abriu bem os olhos, observando a formosa rapariga inclinada para ele. — Sim, Niky, viverei para ti... Vai ao povoado, procura ajuda... que me venham buscar. Penso que quando se possui o desejo firme de adquirir-se vontade de não abandonar o mundo... resiste-se.
-- Oh, Frank! —beijou-o nos lábios. Com aquele doce sabor, Daly desfaleceu. O sangue corria pelas duas feridas.
Rapidamente, Niky improvisou ligaduras com tiras da sua blusa. Depois, apelando para todas as lias forças, colocou Frank num dos lados da garganta. Uma vez resguardado, comodamente colocada a cabeça do jovem atirador sobre uns arbustos, olhou-o com amor profundo.
Apesar dele não o poder ouvir, sussurrou-lhe, ofegante:
-- Espera-me, querido... Voltarei rapidamente com o xerife e todos os outros... Viverás.., para mim. Sei que desejas viver, porque me amas...
Correu para um cavalo. Encontrou o de Marcus. Montou-o. Partiu a galope rápido, espezinhando um chapéu que voou entre as, nuvens de pó. Era o de Marcus O'Malley. A anta e a pele de serpente que rodeava a sua copa, ficaram desfeitos debaixo dos cascos do animal.
Niky O'Malley partiu para o povoado, com as provas do seu testemunho, que serviriam para livrar Frank de toda a acusação. E com seu desejo de mulher enamorada, para aguardar a cura de Frank, para oferecer-lhe as profundas raízes de um lar, sem necessidade de abandonar jamais a «Cuenca de la Plata», com a certeza de que as armas voltariam a ser penduradas numa parede de sua própria fazenda... E desta vez para sempre!
Porque a luta terminara; os répteis escondidos tinham saído do seu refúgio e tinham sido esmagados pela Lei violenta, daquela que Frank Daly fizera o seu desesperado código, implacável como os mesmos inimigos a quem tinha derrotado: a Lei dos 45, forjadora da civilização e do progresso nas terras selvagens do Oeste americano.
(Coleção Califórnia, nº 5)
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