Ao terminar a Guerra da Secessão, o Presidente Abraão Lincoln procurou por todos os meios apagar as marcas da sangrenta contenda, nas terras e nos lares da jovem nação. Esforçou-se por que as divergências entre vencedores e vencidos fossem mínimas e que os políticos do Sul, que após quatro anos de louca aventura tinham levado o seu país à mais espantosa ruína, não perdessem nenhum dos seus direitos, chamando alguns a formarem parte dos órgãos legislativos e executivos do Governo. Esta sábia política evitou que o país ficasse dividido em dois, no terreno das ideias, talvez para sempre, mas não pôde evitar que entre os homens perdurasse o ódio.
O que as leis olvidam não o esquecem os corações. E assim, meio ano depois de concluída a sangrenta guerra, ainda se matava ou se morria em nome do Norte ou do Sul. E dispostos a matar ou a morrer estavam Bud Sherman e Reginald Spencer.
Os dois homens tinham aspeto idêntico, o mesmo curso e uma educação semelhante. Ambos haviam estudado Leis em Boston e trabalhado nas cidades da costa Atlântica até que a guerra separou os seus destinos.
E agora, haviam-se encontrado outra vez.
A fortuna tinha sido muito distinta para eles, pois enquanto Bud Sherman se vestia ricamente, Reginald Spencer cobria-se de andrajos. Enquanto um acariciava a coronha de um revólver de prata lavrada, o outro tocava apenas com os seus dedos um «Colt» cuja coronha estava presa ao corpo do revólver por meio de um arame. E também a expressão dos seus olhos era muito distinta: de frio ódio, em Bud; de impotente desespero, em Reginald.
— Alegro-me em te encontrar, cão sulista — disse Bud —. E alegro-me em te poder dizer que esta noite deixarás de ladrar para sempre.
Reginald baixou a cabeça. A sua atitude tanto podia ser de dor como de impotência. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo.
— Bud... — murmurou — não há razão para que um deseje a morte do outro. Lutámos em diferentes campos, bem sei, e vocês foram os vencedores. Sou o primeiro a reconhecer que não tinha razão. Mas que queres? Eu nasci no Texas. Eu queria lutar sob a bandeira do Texas; era o que me pedia o meu coração. Ninguém pode ser culpado por lutar sob a bandeira da terra em que nasceu. Os dois estudámos na mesma Universidade, aprendemos nos mesmos livros, e creio que esse é um motivo suficiente para nos unirmos e esquecermos os lamentáveis acontecimentos que nos separaram. Deixemos os revólveres e sigamos em paz.
Bud Sherman apertou os maxilares. No silêncio do entardecer ouviu-se o ranger dos seus dentes.
— De modo — disse— além de seres um cão sulista, também és um cobarde.
— Sim. Reconheço que tenho medo — murmurou Reginald.
— Medo? E de quê?
— De te matar, Sherman.
O nortista estremeceu.
— Essas palavras seriam o suficiente para que não tivesse piedade. Mas sou homem de leis, e procuro sempre um motivo para agir. E tenho-o: fui teu prisioneiro em Abilene, durante cerca de meio ano até que consegui fugir. Quando escapava, disparaste contra mim e desde então não ando bem. Sou quase um aleijado, Spencer. Por isso te quero matar, por isso te quero ver cair de joelhos perante mim, com a cabeça atravessada por uma bala.
O jovem levantou um pouco a cabeça, para olhar profundamente o seu inimigo.
— Foste meu prisioneiro por um azar da guerra, Sherman, e podia ter-te morto quando te alvejei. Esse era o meu dever. Procurei impedir que pudesses ir mais longe, mas sobrepuseste-te aos ferimentos e conseguiste escapar. Sempre considerei isso como uma façanha da tua parte. Se eu fosse teu prisioneiro também teria tentado fugir.
— Feriste-me numa perna! Converteste-me num aleijado! — repetiu Sherman, com voz baixa e densa, como obcecado.
— Foi um azar da guerra. Tu ter-me-ias feito o mesmo em condições idênticas. E de resto, Sherman, não deves dramatizar. Vi-te chegar aqui, desmontar e avançar até este lugar. Mal se nota que coxeias. Há milhares de homens que gostariam de chegar ao fim da guerra com um ferimento como o teu.
— Puxa pelo revólver, Spencer!
Os dois homens tinham-se encontrado casualmente naquele lugar do Texas, perto da fronteira, enquanto Sherman experimentava um cavalo que desejava comprar e Reginald Spencer se dispunha a tomar o seu último descanso antes de atravessar a fronteira do México. Naturalmente, podia ter-se ocultado ao ver avançar aquele homem, mas não lhe agradava andar escondido como uma serpente. E Sherman tinha sido seu companheiro noutros tempos e sentiu que o coração quase lhe saltava do peito ao vê-lo avançar para ele.
No fundo, sempre tinha desejado pedir-lhe perdão por aquela bala. E ao levantar a mão para que ele o visse nunca pensara que as coisas pudessem chegar àquele ponto. Não podia imaginar que o ódio daquele homem chegasse a tal extremo, depois de quase três anos.
No fundo, sempre tinha desejado pedir-lhe perdão por aquela bala. E ao levantar a mão para que ele o visse nunca pensara que as coisas pudessem chegar àquele ponto. Não podia imaginar que o ódio daquele homem chegasse a tal extremo, depois de quase três anos.
— Aquilo foi há muito tempo — murmurou —. Caíste prisioneiro quase ao princípio da guerra, e já parece que decorreram séculos desde aqueles dias. Sherman. Peço-te, por favor, que não cometamos uma loucura.
— Não passas de um cobarde, Spencer! Puxa pela tua arma ou terei que te matar como a um cão!
A frase desagradou a Reginald Spencer. Nunca tinha gostado que o insultassem, e menos ainda depois de empregar todos os recursos para apaziguar a situação. Naquele momento, no fundo do seu coração, sentiu que desejava matar Bud Sherman.
— Está bem. Tu é que quiseste.
Inclinaram-se um pouco para diante e puxaram pelas armas. O revólver de prata de Sherman brilhou à luz, enquanto os arames do de Spencer rangiam. Os dois homens eram excelentes atiradores e tinham aprendido na guerra coisas que jamais deveriam saber. Lançaram-se em terra quase ao mesmo tempo, enquanto as armas disparavam. Reginald Spencer foi mais certeiro e quando a bala do seu inimigo roçou por ele, a sua atravessara-lhe o coração.
Tinha atirado a matar. Mas assim que viu cair o ex-amigo, tudo aquilo cessou.
Pareceu-lhe impossível que tivesse podido matar Sherman. Que tivesse podido premir o gatilho sabendo conscientemente que lhe enviava uma bala certeira ao coração. Correu para ele, depois de ter largado o revólver, e viu que ainda fazia desesperados esforços para manter a cabeça erguida.
Foi então que os olhos de Sherman procuraram os seus.
-- Maldito! — disse, lançando uma golfada de sangue. E caiu de costas, morto, com a boca entreaberta, vermelha de sangue, e os olhos espantosamente brancos.
Isto ocorria cerca de Shafter, nas proximidades do Rio Grande. Vejamos agora outro duelo, este na cidade fronteiriça de El Paso.
(Coleção Califórnia, nº 1)
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