sexta-feira, 20 de junho de 2014

PAS326. Fuga a lobos famintos


Irina Wells tateou a lima, acariciou-a como a um ser vivo. Alguém a tinha atirado pela janela, pouco antes, valendo-se de um laço a cujo extremo a tinham ligado. Esse alguém devia ter uma invejável habilidade, porque conseguiu fazer penetrar a lima por entre as grades sem fazer qualquer ruído. Não a acompanhava nenhuma mensagem, mas um instrumento assim e nas condições de Irina não necessita qualquer classe de explicações. Imediatamente, e aproveitando a hora do crepúsculo, quando os guardas se dispunham a começar a sua inacabável série de partidas de cartas, começou a trabalhar.
Enquanto limava incansavelmente, com ágeis movimentos dos braços, não deixava de pensar em quem lhe poderia ter proporcionado aquela inestimável ajuda. E embora lhe parecesse absurdo e impossível, um só nome vinha à sua memória: Bud Sherman, o promotor implacável e sanguinário a quem, no entanto, segundo via agora, guiava uma verdadeira ânsia de justiça!
Irina chegou a convencer-se de que tinha de ser ele. Ninguém mais tinha demonstrado interesse em a ajudar. Proporcionar uma fuga não era um processo muito de acordo com as atribuições de um promotor, mas...
Era o coração de Irina que falava, não o seu cérebro. O coração dizia-lhe que só esse homem a poderia ter ajudado. Limou insensível à fadiga e ao sangue que escorria dos seus próprios dedos, até que conseguiu uma abertura suficiente para poder passar o seu corpo. Deviam ser nove horas da noite, segundo pôde calcular pela posição das estrelas no firmamento.
Aproximou-se da porta na ponta dos pés e escutou. Não se ouvia nada, sinal infalível de que os três guardas deviam estar reunidos na divisão ao fundo, bebendo e jogando. Comprovado isto, Irina dirigiu-se para a janela e saiu através da abertura que tinha conseguido fazer...
Entre a obscuridade ouviu a respiração de um cavalo. Alguém o tinha deixado ali sabendo infalivelmente que ela se dirigiria para aquele sítio. A fuga tinha sido bem planeada. Desamarrou o cavalo, que estava preso a uma pequena árvore e montou-o agilmente. Apenas tinha trotado umas jardas quando notou que aquele cavalo era muito velho e que não poderia obter dele nenhuma velocidade. Dez minutos depois, notou que era seguida.
Eram dois homens. Ambos montavam bons corcéis e não teriam dificuldade em a alcançar. A horrível verdade abriu então caminho no cérebro de Trina. Não tinha pensado naquilo até então, porque lhe parecia incrível que uma coisa assim pudesse voltar a acontecer. Mas, horrível ou não, a verdade é que quem a tinha novamente ajudado a escapar eram... os Golbert.
Os dois eram hábeis atiradores de laço. E Irina reconheceu-os facilmente pelo modo peculiar como iam inclinados sobre o pescoço das suas montadas. Tinham-lhe proporcionado aquele cavalo para a poderem alcançar facilmente, assim que se tivesse afastado convenientemente da prisão. Dominada pelo terror, Trina excitou a sua montada, mas não pôde obter muito mais velocidade de um cavalo que já tinha direito a estar na cavalariça rodeado pelos seus netos. Viu os corcéis dos seus inimigos aproximarem-se de um modo fatal e compreendeu que dentro de cinco minutos seria alcançada se não conseguisse desorientá-los.
Introduziu-se por um atalho de solo arenoso, e os Globert seguiram-na. Conheciam demasiado bem a comarca para que alguém os pudesse iludir. A marcha do cavalo que a rapariga montava tornou-se ainda mais difícil sobre a areia, e as patas do animal não tardaram a dobrar-se. Para evitar que as partisse numa queda, Trina saltou para o solo e começou a correr por entre uns canaviais. Ali, perto de um pequeno arroio, o solo também era arenoso. Deixou de ouvir os seus perseguidores e por um instante julgou tê-los desorientado. Mas quando mais começava a acreditar nesta esperança, uma garra apareceu pelas suas costas e rasgou-lhe o vestido, com um puxão. As quatro manápulas dos Globert caíram sobre a sua boca e a sua cintura, reduzindo-a à imobilidade. Em confuso montão rodaram pelo solo, sobre a areia. Irina lançou um grito enquanto um dos Globert lhe atava um pé ao tronco de uma pequena árvore muito próxima da água. A rapariga ficou de costas para terra, indefesa como um pobre animal prestes a ser sacrificado. Tentou libertar-se, mas um dos Globert impediu-a com um bofetão na boca. Trina caiu outra vez de costas, sem sequer chorar, pois sabia-se irremediavelmente perdida.
Os Globert colocaram-se um de cada lado. Com olhos febris foram percorrendo as curvas perfeitas e sedutoras do seu corpo.
— Julgaste que era outro quem te salvava, não? — perguntou Isaias, o mais velho — . Estúpida! Que outra pessoa julgas que poderá sentir interesse por ti?
-- Sentem, sim — riu Jacob, o mais novo—, mas por te verem morta. Escusamos de te negar, preciosidade, que nos pagaram por te fazer isto.
Irina tentou erguer-se novamente. Com olhos febris fitou os dois homens.
— Quem vos pagou? Por conta de quem trabalhais, malandros?
— Pschiu... Isso que importa? E olha, menina, tens um aspeto de potra selvagem que nos incendeia aos dois. Há muito tempo que esperamos uma oportunidade como esta. De modo que antes de te matarmos, vamos fazer-te rabiar um pouco.
O peito de Irina subiu e baixou espasmodicamente. Via os rostos suarentos e os olhos brilhantes de Isaías e Jacob, acocorados cada um a seu lado, como feras dispostas a saltar. A lua apareceu límpida e pura entre os canaviais e arrancou chispas aos olhos dos homens. Essa luz branca da lua pareceu sujar-se ao tocar aqueles rostos. Jacob foi estendendo a mão.
— Quereis conseguir agora aquilo que não conseguistes da outra vez? — sussurrou Trina com voz febril — . Sim? Lamento-o... porque antes tereis que me matar!
Os dois riram como ratos, silenciosamente...
— Não tem importância. Sabemos como tratar com raparigas... Os dois lançaram-se contra ela quase ao mesmo tempo, agarrando-lhe as mãos, e atando-as brutalmente às costas. Irina gemeu, impotente, mas o ruído do canavial tragou os seus gemidos. Aqueles homens iam providos de tudo: cordas, armas e até um pano limpo com que se dispuseram a amordaçá-la. Uma vez que o conseguiram, e vendo-a completamente indefesa, esfregaram as mãos de contentes.
Foi nesse momento que ouviram um ruído muito suave nas suas costas.
As canas tinham-se movido. Oscilavam como se a brisa as movesse, mas não fazia vento. Os Globert levaram instintivamente as mãos às suas armas.
A lua, cada vez mais alta, iluminava tudo. E foi o luar que lhes permitiu ver claramente aquele homem.
Estava bem vestido, pois levava uma levita de autêntico cavaleiro. Os Globert notaram outra vez aquele detalhe que já lhes tinha chamado a atenção no julgamento, e que era o cerzido que se via no fraque, à altura do coração. Como se o seu dono tivesse tempo atrás recebido uma bala naquele lugar. Mas de qualquer maneira o fraque era elegante. Dois revólveres descansavam nos coldres daquele homem, e aqui também havia que destacar um contraste: porque um desses revólveres era de fina prata lavrada, e o outro, pelo contrário, era um velho «Colt» com a coronha sujeita por arames. Mas a atenção dos Globert passou rapidamente por cima desses detalhes porque havia algo que reclamava mais o seu interesse: os olhos daquele homem, os olhos de quem eles julgavam ser o promotor Bud Sherman, e onde leram uma fria e impiedosa sentença de morte.
(Coleção Califórnia, nº 1)

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