Pierce tinha chegado àquele ponto de conhecimento que lutar com cavalos ou com domadores de cavalos era a última coisa que um homem inteligente devia fazer na vida.
Tão-pouco se convenceu a lutar com jogadores profissionais, a maioria dos quais era de batoteiros, vantagistas ou bêbados.
Com os revólveres deu-se um pouco melhor, pois que conseguira impor-se em Nova Orléans, Natchez, Baton Rouge e outras grandes cidades de Louisiana.
Mas um dia, apesar de conseguir matar quatro adversários, foi lançado à rua em Natchez, considerando-se já morto. Aos 36 anos de idade — estando já no Oeste — não se considerou humilhado quando um jovem de 25 anos lhe disse com toda a calma de um grande senhor francês ou de um fidalgo espanhol, na noite em que quis «sacar» para lhe passar o mau humor de ter perdido todo o seu dinheiro numa partida de cartas:
— Preciso de um criado.
Segundo lhe disseram horas mais tarde, aquela personagem de corpo um pouco mais alto que o normal, elegantíssimo, que tinha estudado para advogado, que decidiu guardar a toga no seu variadíssimo guarda-fato do seu palácio, era o senhor Dester Bon.
Pierce, filho de pai irlandês e mãe francesa, considerou o oferecimento, guardou o revólver no coldre respetivo, juntou os calcanhares e inclinou a cabeça.
— Eu serei seu criado, senhor — disse aceitando o novo emprego.
Passaram dois anos. Pierce abençoava ter aceitado o cargo de criado do aristocrata senhor Dester. Naquele momento examinava Absalon, que vestia como um vulgar vaqueiro, e teve um estremecimento ao ver que os olhos do negro eram negríssimos, mas careciam de branco: este era substituído por um amarelo opaco.
— Que desejas, bom homem? — interrogou.
— O seu amo disse-me para vir para o pé de si, amigo.
— Amigo... — replicou com asco. — Desde quando um branco pode ser amigo de um negro?
— Desde que Deus criou os homens. Ele é o Deus do brancos e pretos e não faz distinções. — Absalon prosseguiu depois de fazer uma breve pausa: — Para Pie só existem homens bons e homens maus.
Com toda a sua inteligência, o branco não encontrou resposta para replicar ao dito do humilde negro. Este, por sua vez, pôde comprovar que aquele homem não era mau, pois que apontou para uma caixa hermeticamente fechada:
— Come uns biscoitos — e apontou para um armário, — tira uma garrafa de «whisky» e serve-te de um copo, negro.
A entrada de uma criada, jovem e roliça, assinalou a discórdia entre os dois servidores.
—Oh!
A recém-chegada deu um grito quando entrou na cozinha, que era onde Absalon e Pierce mantinham este diálogo, e agarrando-se a um braço do seu companheiro voltou a gritar.
—Um fantasma! Meu Deus, Pierce!
—Não te assustes, Susan, é somente um negro. Quando viste ou ouviste dizer que havia fantasmas pretos?
O criado pensou que abrandaria o duro coração da sua companheira de trabalho, baixa, mas bem feita, da qual se encontrava enamorado; aproximou-se do negro e obrigou-o a voltar, agarrando-o pela camisa com força.
— Viste o que fizeste, maldito preto? Assustaste uma jovem branca. Fora da cozinha, preto.
Absalon era a bondade com figura humana, paciente, espiritual, mas também era homem; e demonstrou-o.
Voltou-se ao mesmo tempo que o seu punho direito, não muito grande, mas contundente, procurava e encontrava o queixo do majestoso Pierce. Este deu uma cambalhota e caiu ficando sentado no chão, mas levantou-se como se fosse impulsionado por uma mola e investiu contra o negro, seis ou sete anos mais novo do que ele.
Pela segunda vez naquele dia, Absalon lutava com um branco e em ambas as vezes por causa de uma jovem da mesma cor.
Entretanto, no interior da casa, Dester e Katie mantinham um diálogo inquietante, definitivo, devido ao qual a vida do primeiro mudaria radicalmente e os baixos sentimentos de muitos homens iriam sofrer um rude golpe.
— Ninguém me enviou — começou por dizer a jovem. — Julguei chegado o momento de que alguém teria de lhe contar toda a verdade.
— E qual é a verdade, menina Katie?
— Chame-me Katie, Dester. Eu penso chamá-lo pelo seu nome, ainda que o seu criado rebente o peito de tanto tossir e você carregue o sobrolho como está fazendo agora.
O sorriso do jovem teve o significado de uma aprovação.
— De acordo. Agora fale-me dessa verdade que veio contar-me, Katie.
— Já lhe disse que meu pai é o dono de um terço de «Breed», gado, pastos, barracões, de tudo menos da casa de pedra. Compreendeu?
— Sim, já o disse. Que mais?
— O «Breed» produz muito, graças a meu pai e ao tio Marvis — a jovem não fez caso do novo sorriso brincalhão que viu nos lábios do seu interlocutor. —Dizia que graças ao tio Marvis e a meu pai o nosso rancho dá muito dinheiro.
Dester esteve quase a dizer à sua visitante que se repetia as palavras, aquela conversa duraria uma eternidade, mas também pensou que aqueles olhos cinzentos, mas ao mesmo tempo dourados, eram os mais belos que tinha visto na sua vida.
— Mas, conseguir isso sai-nos muito caro a todos -- acrescentou Katie, interrompendo e olhando em redor.
— A todos? Não a compreendo, Katie.
— Vejamos se entendo isto: O tio Marvis está-se matando. É o último a deitar-se à noite e o primeiro a levantar-se de manhã, o único veterinário do «Breed», o encarregado de vender as crias, o guarda-livros e administrador... E faz tudo isso para que a si não lhe falte nada neste palácio de mármore.
Dester cruzou a perna direita sobre a esquerda e mexeu-se no sofá. Katie julgou observar nos seus olhos pálidos um lampejo de interesse.
— O meu pai — disse ele aclarando a garganta —esteve aqui há três semanas e não me disse uma só palavra de tudo isso.
A jovem levantou-se, irritada.
— O tio Marvis fez testamento, separando a parte de meu pai, Dester. — Acrescentou com raiva: — Arruinar-se-á antes de lhe contar toda a verdade.
—E toda a verdade, toda a definitiva verdade é...?
A jovem olhou sem pestanejar o semblante inexpressivo da fleumática personagem.
— Marvis Bon era um rancheiro muito rico e gastou todo o seu dinheiro... Você saberá como. Presentemente só lhe restam dois terços do «Breed», e não estou muito certa de não estar já hipotecada a parte que lhe corresponde. Há uma... mulher que lhe emprestou dinheiro e deseja tirar-lhe o rancho.
Dester também se levantou, cruzou as mãos atrás das costas, e começou a andar de um lado para o outro, detendo-se de repente em frente da jovem.
— Você quer muito ao seu pai, não é verdade?
— E ao seu também, Dester. O tio Marvis é o melhor homem que conheço.
A réplica do jovem era a última coisa que esperava ouvir dos seus lábios.
— Devia ter vindo mais cedo ver-me, Katie. Eu ignorava tudo o que acaba de me contar. Faz onze anos que abandonei Concho. Então eu era um estudante bastante bom e nunca pensei no dinheiro.
— O meu pai e eu há dez anos que estamos em Concho.
Dester pensou na sua pequena terra natal. Concho, segundo o espanhol que falavam os americanos do Sul e os Mexicanos, quer dizer final de alguma coisa: de um banquete, de uma corrida... do mundo. Com efeito, Concho era, juntamente com St. Johns, a última cidade do Arizona, na linha fronteiriça do Novo México.
Enquanto Dester refletia, Katie sentiu que a angústia se apoderava dela ao ver que a porta por onde tinham saído os dois irmãos Leroy e Elinor se abria lentamente, como se quem pretendesse entrar tivesse modo de o fazer.
— Cuidado, Dester! — gritou.
A jovem não teve outro remédio senão convencer-se de que o filho do tio Marvis era um bloco de gelo e ao mesmo tempo um relâmpago de reflexo quando tinha que actuar. E o caso requeria-o naquele momento.
A porta abriu-se por fim de todo, embora de momento ninguém entrasse para a sala, cujas paredes estavam ricamente adornadas por estatuetas de mármore representando cavalos em posição de galope, trote, passo e lançados em corrida e sobre peanhas de madeira lavrada.
— Não se detenha, amigo — disse Dester ao seu invisível visitante.
Katie notou que aquela voz continuava a ser a mesma que a saudou quando entrou naquela casa.
— Vamos — disse Dester. — Que faz aí fora?
Três homens entraram na sala lentamente, colocando-se um à direita, outro à esquerda e outro em frente da porta. Este último fechou a porta com o pé e apontou para a mancha de sangue na alcatifa.
— Este sangue há apenas meia hora que corria das veias do patrão — disse como apresentação.
Era um vaqueiro ou domador, loiro, mal feito, de movimentos lentos e torpes. O que se encontrava do lado direito da sala, que era pequeno, de tez queimada pelo sol, soltou um grunhido.
O terceiro personagem que era sardento, de cabelo ruivo, feio, nervoso replicou desabridamente:
— Cash, que é um bom rapaz, fechou os criados na cozinha; mas disse que devíamos terminar o trabalho rapidamente.
O que permanecia de costas para a porta começou a aludir aos tipos sem princípios — aludiu ao de cabelo ruivo — que não sabiam comportar-se devidamente num palácio como aquele, mas calou-se, mudou de lugar e fitou o dono da casa:
— Senhor Bon: já ouviu falar das orações dos mortos?
— Sim. Orar é um belo costume, ainda que seja entre os vivos.
—É o que eu digo. Bem, vá rezando as suas orações agora que está vivo. Dentro de dois minutos estará morto.
O de cabelo ruivo aprovou o dito do seu companheiro:
—Isso é que é falar.
O pequeno demonstrou que além de grunhir também sabia falar.
— Isso é a única coisa decente que dissemos desde que aqui entrámos, rapazes.
Dester voltou a dar ação àquela mão branca, de dedos compridos e afiados que tanto desagradavam a Katie.
— Recue, minha amiga.
— Vamos indo — murmurou ela para si. — Faze-mos progressos. Primeiro, chamou-me jovem; depois, menina Katie; a seguir, Katie; e agora, minha amiga.
Era com efeito um cavalheiro.
A jovem não julgava possível que o filho do rancheiro Marvis se atrevesse a enfrentar-se com aqueles vaqueiros ou pistoleiros com o revólver na mão. Meneou a cabeça e recuou enquanto fixava a vista no sítio onde terminava o ondulado, loiro e brilhante cabelo de Dester.
Se este tivesse podido interpretar a mensagem enviada pelo cérebro feminino sem necessidade de palavras, teria ouvido dizer: «E agora, orgulhoso Dester? Como vais dar réplica a três homens que têm seis mãos, seis revólveres e de certeza um rosário de más intenções?»
O que dirigia o trio voltou a falar:
—O patrão é um homem de palavra, senhor Bon. Disse-me que antes de apertar os gatilhos lhe repetisse as suas palavras: «Diz a esse ricaço do Bon, que se julga um grande senhor, que só escapa à morte casando-se hoje mesmo com a minha irmã Elinor».
— Deus queira que não aceite — exclamou o de cabelo ruivo.
— Isso — resmungou o pequeno. — Deus queira que não aceite.
Dester olhou para o que falava quase junto da porta.
— E você que diz, jovem?
— Digo o mesmo que estes. Deus queira que não aceite casar-se com a menina Elinor.
— Estou de acordo com vocês. Não casarei com Elinor.
Aquelas palavras do jovem iam muito mais longe do que Katie tinha suspeitado. Fechou os olhos, tapou os ouvidos e o seu coração deixou de bater por alguns segundos.
Bastou este tempo para soarem três disparos seguidos, um quarto, um quinto e em seguida o ruído de dois corpos contra a porta da cozinha da rica mansão, até ao ruído desta a ceder e Absalon e Pierce caírem sobre a porta estilhaçada, que ao abrir-se arrastou o pistoleiro Cash, que ficou sem sentidos.
Os dois criados sangravam pela boca e nariz quando penetraram na sala de estar da casa e ficaram mudos de espanto ao ver o fumegante cano do pequeno revólver de Dester voltar-se para eles, se bem que em seguida apontou para o sofá e introduzia a mão no bolso e tirava algumas balas e carregava o tambor do «Colt».
— Caíste abaixo de algum cavalo, Pierce? — examinou o criado, e olhando em seguida para as roupas destroçadas.
Do resultado da luta, a cara e as roupas de Absalon não tinham melhor aspeto que o delgado Pierce, por isso inclinou a cabeça ao ver fixado em si aquelas pupilas semelhantes a dardos.
O criado desculpou-se, sem conseguir afastar o olhar dos três corpos estendidos sobre a carpete.
— Tirem-nos daqui os dois — ordenou a Pierce. —E tu, Pierce, depois de te teres lavado e mudado de roupa, vai avisar o «sheriff» Peterson. Eu não sairei daqui e assim demonstrarei que atuei em legítima defesa ao matar estes homens.
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