domingo, 2 de julho de 2023

ARZ138.05 Uma flor no seio da quadrilha

Provavelmente, nenhum dos presentes, incluindo Paul, teria sido capaz de reagir tão depressa como Hank.

O gigante não perdeu tempo com lamentações nem pragas. A sua mão direita agarrou a asa do garrafão e a vasilha foi projetada para diante com terrível violência e bateu no rosto de Leland com tremendo estrondo.

O revólver do bandido disparou-se inofensivamente para o tecto. Paul tirou o seu, mas depressa verificou que não precisava de o utilizar.

A língua de Hank soltou-se, assim como a sua cólera. Cego de furor, saltou para Leland com ímpeto assassino. Este caíra no chão em consequência da fenomenal pancada. Cego pelo álcool, com a cara a escorrer, ao mesmo tempo, sangue e uísque, proferia palavras ininteligíveis, enquanto procurava o revólver que lhe fugira dos dedos ao cair ao solo. Chegou ainda a tocar-lhe, mas não teve tempo de o empunhar. Hank estava já junto dele.

Paul assistiu à cena como hipnotizado, O gigante parecia ter perdido o domínio dos nervos. Hank moveu o pé direito com tremenda força. A biqueira da sua bota enterrou-se literalmente no rosto de Leland, que tentava levantar-se, e fê-lo soltar um uivo de fera.

Leland caiu para trás e deu uns saltos que não tinham nada de humanos.

O pé de Hank levantou-se de novo. Paul fechou os olhos. Não viu nada, não quis ver, mas não pôde evitar que lhe chegasse aos ouvidos o aterrador estalido de ossos fraturados.

Os bramidos de Leland cessaram acto continuo. Paul descobriu de súbito que tinha as unhas cravadas na mesa. Em que covil de bestas selvagens fora cair? Abriu os olhos e respirou profundamente. Hank estava inclinado sobre o corpo de Leland.

— Está morto — decretou por fim. Virou-se para o interior da cabana. — Vá, levem-no para longe daqui. Vamos, estúpidos, porque esperam?

Entrou na cabana.

— Espero — disse— que isto lhes tenha servido de lição. Não tolerarei que ninguém se meta com o meu amigo Paul, ouviram?

Stormer e Duke levantaram-se e, em silêncio, levaram o cadáver de Leland. Flatsholt começou a deitar terra, para tapar o sangue que havia diante da porta da cabana.

— Tragam outro garrafão! — resmungou Hank. — Maldito Leland! Tirou-me a vontade de comer. E, a propósito, onde demónio está a pequena?

— A fazer o almoço — disse Hobbins, ao mesmo tempo que entregava um novo garrafão ao gigante.

— Pois dize-lhe que já é tempo de o servir! — Hank bebeu um fenomenal golo de uísque e depois passou a vasilha ao jovem. — Toma, bebe.

Paul obedeceu. O uísque era fortíssimo, mas soube não dar parte de fraco. Passado um bocado entrou uma mulher com uma bandeja carregada de pratos, que começou a distribuir pela mesa.

Hank soltou uma gargalhada feroz.

— Olá, pequena! Como passaste na minha ausência? Sabes que senti a tua falta, Susan?

Paul olhou a mulher, que era quase uma criança, pois, na sua opinião, ainda não devia ter feito vinte anos.

Era de estatura mediana, delgada e esbelta, e tinha os cabelos de um louro-pálido muito atraente. Os seus olhos azuis eram enormes, mas exprimiam constantemente o temor e a apreensão que sentia por se encontrar no meio daquela quadrilha de bandidos.

Paul perguntou a si mesmo que podia fazer uma rapariga como aquela em semelhante lugar, pois o ambiente que a rodeava, o cenário em que vivia, não lhe quadrava de modo nenhum, e muito menos os atores. Adivinhava-se que era fina e muito distinta e para o jovem tornavam-se absolutamente incompreensível os motivos pelos quais estava em companhia de semelhante gente.

A rapariga saiu da cabana tão silenciosamente como entrara. Voltou depois com uma grande panela cheia de batatas guisadas com carne e um caço, o qual começou a distribuir as rações.

O cozinhado tinha aspeto de estar muito saboroso. Paul procurou esquecer a cena desagradável que presenciara momentos antes e aplicou-se a comer com bom apetite. De súbito, a mão de Hank bateu-lhe nas costas.

— Eh, tu, não dizes nada à nossa cozinheira? Susan, aproxima-te, para que te veja o nosso novo companheiro.

A rapariga obedeceu em silêncio. Vestia muito pobremente, embora se visse que se esforçava por manter as suas roupas no melhor estado possível, dadas as circunstâncias.

— Paul, olha que pequena tão linda temos como cozinheira. Chama-se Susan, este é Paul. Ela cumprimentou-o timidamente, quase sem se atrever a olhá-lo.

Pela sua parte, Paul sentiu que lhe faltava a respiração.

Susan Hayes!

A contrassenha.

«Se necessitar de comunicar rapidamente comigo, vá a qualquer estação de telégrafos e pronuncie estas duas palavras: Susan Hayes.»

Era a prima de Raymond.

Verdadeiramente, seria parente do polícia? Não, não se podia tratar de uma casualidade. Mas, porque estava a mulher ali, no meio daquela quadrilha de bandidos e assassinos sem consciência?

— Olá, Susan — disse, por fim, com grande esforço.

— Olá, Paul — respondeu ela, e de repente, deu meia-volta e retirou-se.

— Um pouco esquiva, a pequena — riu Hank, sonoramente. — Ainda não conseguiu habituar-se a nós, sabes?

— É vossa prisioneira? — perguntou Paul, procurando mostrar indiferença, embora sentisse o coração galopar-lhe no peito.

—Prisioneira? Diabo, não! Encontrámo-la um dia no meio do caminho e veio connosco. Disse que não sabia para onde ir nem a quem recorrer. Necessitávamos de uma mulher que cuidasse de nós... e trouxemo-la, mais nada.

— Mais nada? — perguntou Paul, intencionalmente.

— Ouve, porque dizes isso? — resmungou o gigante.

— Nada, nada. Apenas queria saber se algum de vocês... Bom, percebes-me, não é verdade?

Hank soltou uma estrondosa gargalhada.

— Sim, percebo-te, percebo-te. Mas não te preocupes, Paul; a pequena é decente. Não é nenhuma dessas perdidas que frequentam os «saloons». Nenhum de nós se atreveria a tocar-lhe num só cabelo... e pobre do que o tentasse. Teria a mesma sorte de Leland. Estará aqui connosco até que... Bom, um dia levará a sua parte, porque a ela também reservamos um pouco dos assaltos, e procurará um homem decente, e não um patife como nós.

Paul distinguiu uma vaga nota de melancolia nas últimas palavras do gigante. Talvez fosse como ele, um homem arrastado pelas circunstâncias para aquela vida de depredações e correrias sem freio.

Acabou de comer, conversando de coisas sem importância e procurando mostrar-se conciliador com os restantes membros da quadrilha.

Quando lhe propuseram jogar às cartas, alegou que não tinha dinheiro, mas Hank emprestou-lhe um punhado de notas.

— Toma — disse — por conta. Depois do assalto receberás mais.

O resto do dia passou rapidamente. Ao chegar a noite, estendeu-se num dos beliches e enrolou-se numa manta. Tardou a adormecer. Agora não lhe restava qualquer dúvida de que estava metido em cheio na quadrilha de Cochrane.

Mas quem era Cochrane e onde se escondia?

Estas eram perguntas às quais não podia responder, de momento. Devia ter paciência e deixar o tempo correr. Se Raymond esperara cinco anos, porque não havia ele de esperar, ao menos, a décima parte?

Sobretudo, disse para consigo, devia andar com muito cuidado, Ralmond informara-o com toda a clareza: dois agentes secretos tinham já sido mortos. Se os bandidos descobrissem a sua identidade, a sua vida não valeria dois cêntimos. Esperar, repetiu. Até quando? Quando poderia reunir-se de novo com Linda? Evocou a imagem da noiva. Mas, por um curioso efeito, o rosto de Linda, belo, apesar de enérgico, foi substituído pelo mais suave e agradável de Susan. Adormeceu a pensar na rapariga e não em Linda.

Passaram vários dias. A vida no refúgio dos criminosos era monótona. Dormir, comer e jogar às cartas, eram os principais entretenimentos. Não se podia fazer outra coisa, exceto, muito de longe em longe, dar um ligeiro passeio a cavalo pelo próprio desfiladeiro.

A barba cresceu-lhe mais ainda e teve de alargar o cinturão dois furos, sinal de que começava a recuperar as carnes perdidas durante aquele mês e meio passado nas montanhas.

Um dia, aborrecido, sem vontade de jogar às cartas, dirigiu-se para a fonte e sentou-se a um lado do tanque. Acendeu um cigarro e encostou-se à parede rochosa. Permaneceu assim durante muito tempo. De repente, divisou Susan, que se aproximava com um balde nas mãos, para o encher de água. Atirou fora o cigarro e pós-se em pé.

— Dê-me o balde, Susan.

— Obrigada - murmurou ela.

Podia-se dizer que era a segunda vez que se falavam.

Encheu o balde. Antes de lho entregar, olhou-a fixamente.

— Susan — disse— admira-me que uma mulher tão nova e bonita como você queira permanecer num sítio como este.

Ela fez um gesto de indiferença.

—Para onde ir? — perguntou. — Não tenho família, nem fortuna, nem amigos... Aqui, ao menos, vivo, o que não é pouco.

— Mas em companhia de uma quadrilha de ladrões e bandidos — observou ele, intencionalmente.

—Bem sei.

— E não tem medo de nós?

— Porque havia de ter? Todos me respeitam e, conforme podem, apreciam-me. Estou melhor aqui do que numa cidade, acredite, Paul.

O jovem abanou a cabeça.

— Permita-me que duvide, Susan. Mas, enfim, suponho que sabe o que faz.

Ela estendeu a mão.

— Sim, sei, Paul — respondeu. — Dê-me o balde; tenho de fazer a comida.

Paul notou que o tom de voz de Susan se tornara de súbito seco e cortante. Olhando por cima do ombro dela, viu Hank, que estava à porta de uma das cabanas.

— Tome — disse, e Susan pegou no balde e afastou-se.

Dois dias depois voltaram a encontrar-se.

— Susan — disse Paul — pensei muito em si.

—Não venha dizer-me agora que se apaixonou por mim — respondeu a rapariga, com certo sarcasmo.

—Não, não é isso. Pensava no género de vida que leva, Susan. Você é mulher. Um dia deverá casar, fundar um lar, ter marido e filhos... Julga que conseguirá isso se continuar na nossa companhia?

— Por favor — respondeu Susan, com secura — isso é comigo.

— Está bem, não se zangue. Apenas procurava fazer-lhe algumas considerações sobre o futuro que a espera se persistir em continuar aqui.

— Porque não me deixa ser eu própria a decidir o meu futuro, Paul?

E retirou-se. Paul notara que Susan ia à fonte a horas determinadas. Procurou esperá-la e conseguiu falar com ela no dia seguinte, aproveitando o momento de encher o balde. Mas em lugar de insistir sobre um tema que parecia desagradável, decidiu agir com mais cautela.

Parecia-lhe muito improvável que o nome de Susan Hayes fosse apenas uma coincidência.

Claro que tinha de contar com a possibilidade de que, efetivamente, não fosse, mas ainda assim estava certo de que Raymond sabia que a prima se encontrava com os bandidos. Agora, na sua opinião, o importante era fazer saber a Susan que ele agia por conta de Ralmond. Como consegui-lo?

Pela primeira vez, Susan sorriu palidamente ao vê-lo. Até o cumprimentou sem dificuldade.

— Olá, Paul.

— Como está, Susan?

— Não joga às cartas com os outros?

— Já não suporto as cartas, digo-lhe com franqueza.

— Em contrapartida, aos outros parece que os encantam. Passam o dia a jogar.

— Questão de gosto, suponho. Eu tinha um amigo que também gostava muito das cartas. Chamava-se... Bom, suponho que continua a chamar-se ainda, Mark Raymond.

Paul espirou a reação da rapariga e notou uma leve e rápida contração do seu rosto. Mas aconteceu tudo tão velozmente, que não pôde ter a certeza se se tratava de um movimento natural ou de um gesto de surpresa ao escutar o nome do agente secreto.

— Isso acontece a muitos, Paul — comentou ela com indiferença. — Posso fazer-lhe uma pergunta?

— Claro, pequena. Todas as que quiser.

— Acho estranho que um homem como você se tenha metido a salteador de caminhos.

—E em que se baseia para fazer tal afirmação, Susan?

— Não sei, mas tenho a sensação de que você não é homem habituado a roubar, como... como os outros.

— Cada um é o que é. Ou o que as circunstâncias o obrigam a ser, Susan — disse o jovem, sentenciosamente.

— Também a si o arrastaram as circunstâncias?

— Sim. — A voz de Paul tornou-se repentinamente tensa, denunciando o seu estado de espírito. — Vi-me metido num sarilho, que não procurei, claro, e matei duas pessoas. Tive de fugir a galope e depois... puseram-me a cabeça a prémio. Em Stanton, encontrei--me com Hank, salvei-lhe a vida e, como agradecimento, trouxe-me para aqui. É tudo, Susan.

— Mas se não fosse esse sarilho, você não se teria convertido num bandido, não é verdade, Paul?

— Provavelmente — concordou ele. — Contudo, parece-me que não sou o único que se encontra nestas circunstâncias. Não sei porquê, mas tenho a sensação de que a Hank aconteceu qualquer coisa parecida.

O rosto de Susan toldou-se.

— Sim, ele também foi um homem honesto. Enganaram-no miseravelmente e matou os dois. Teve de fugir... e aqui o tem.

— Quem o enganou? -- perguntou Paul inocentemente.

— Não imagina? — replicou ela. Paul abanou a cabeça.

— Percebo. — E após um momento de pausa, acrescentou: — No fundo de todos os problemas de um homem há sempre uma mulher.

— Mas isso acontece com o que é forte e não sabe dominar-se a si mesmo, Paul — alegou a rapariga, com muito tino.

— É fácil de dizer, mas cada ser humano é uma circunstância diferente. Hank é um homem violento, de reações primitivas, capaz de amar com a mesma intensidade com que é capaz de sentir ódio. Um homem como ele não poderia dominar-se com facilidade ao ver que o enganavam.

— Você desculpa as mortes que cometeu, então?

— Não. Apenas procuro explicá-las, o que não é o mesmo.

— Nesse caso, como explica as que você cometeu, Paul?

Por um momento, o jovem ficou sem fala. Depois, meneando a cabeça, disse:

— É verdade, não tem explicação. —E com voz surda, acrescentou: — Ele podia tê-las evitado com toda a felicidade... se tivesse _sido um pouco mais forte, Susan.

— Porque não me conta em pormenor o que lhe sucedeu? — pediu a rapariga.

Paul pós-se em pé e deu alguns passos, muito nervoso. Por fim virou-se para ela e relatou-lhe a história inteira, sem omitir uma só sílaba. Susan escutou-o em silêncio. Quando Paul terminou o seu relato, refletiu uns momentos. Por fim disse:

— Sabe o que lhe digo? Essa mulher não o amava, Paul.

— Que está a dizer, Susan? íamos casar-nos muito breve; possivelmente, a estas horas, se não tivesse acontecido nada, já seriamos marido e mulher.

— O casamento significa sempre a culminação do amor entre duas pessoas, Paul? As vezes também entram em jogo outros sentimentos: a vaidade, a cobiça, a ambição... e parece-me que Linda era muito vaidosa, se não ambiciosa. Bem — acrescentou — creio que são horas de ir tratar da comida. Reflita sobre o que acabo de lhe dizer, Paul; seria muito interessante para si chegar a uma conclusão definitiva nesse assunto.

Mas, por mais que se esforçasse, Paul não pôde chegar à conclusão de que Susan lhe indicara. E o seu espírito sofreu muito nos dias que precederam o ataque ao Banco de Black Bear.

 

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