terça-feira, 28 de março de 2023

6BL007.11 Nem a bela Maria o conseguiu reter


Porfírio convalesceu rapidamente. A sua forte e jovem constituição conseguiu um verdadeiro milagre. Quinze dias depois de ser ferido, já conseguia montar.

Profunda transformação se operara em Barreal. O medo passara para sempre e os habitantes da povoação, libertos do peso de Carbajal, eram, agora, um grupo de mexicanos alegre e feliz.

Silver, à janela do quarto, contemplava o pátio do convento. Porfírio, na cama, descansava.

De súbito, uns passos soaram no corredor. Segundos depois, a bela Maria de Camporreal entrava no quarto.

— Há rurais na povoação — disse, excitada. — São três e dirigem-se precisamente para cá.

— Já os esperava — sorriu Silver. — Sempre que cruzo a fronteira, acabo por encontrá-los.

— As mãos para cima! — a voz chegou da porta, autoritária.

Silver limitou-se a olhá-los. Três rurais, com os alegres uniformes característicos, avançaram para o americano, com excessiva precaução.

Um deles empunhava uma espingarda de grande calibre. Os outros dois usavam as regulamentares pistolas.

Silver não esboçou qualquer defesa. Deixou-se desarmar. Depois, ante o assombrado olhar de Porfírio, um dos rurais, baixo e forte, colocou um par de algemas nos pulsos de Silver e retrocedeu um passo.

— Enfim! — disse. — Já não era sem tempo!

Silver deixou escapar um dos seus melhores sorrisos. Apesar de ter os pulsos presos, conseguiu extrair habilmente a bolsa de tabaco e começou a enrolar um cigarro.

— Aposto — observou tranquilamente, -- como esperava receber uma bala na cabeça ao passar a porta.

— E verdade, senhor! — o sorriso do mexicano era expressivo. — Mas nem por isso deixei de entrar. Agora... — interrompeu-se, levantando um braço.

Um rumor semelhante ao de um enorme enxame aproximava-se deles.

Um grupo de habitantes de Barreal apareceu à porta. Eram morenos, magros, mostrando umas alvas dentaduras.

— Para trás! — rugiu o gordo rural. — Ao primeiro que tentar...!

Tentaram-no todos ao mesmo tempo. Entraram de roldão pelo quarto, desarmaram os três surpreendidos rurais, devolveram os revólveres a Silver e levaram os agentes da Lei em bolandas.

— Estes rurais são muito impulsivos — filosofou Silver, carregando a Winchester e a espingarda de dois canos.

Depois, com um sorriso, abandonou também o quarto.

— Para que levará as armas? — perguntou Porfírio, levantando-se da cama e aproximando-se da janela.

— Vai-se embora — respondeu Maria, tristemente.

Minutos depois, o cavalo negro, oferta das gentes do povoado, estava no pátio, ajaezado já. Silver ajeitava os alforges, preparado, na realidade, para partir. Um dos rurais apareceu então, caminhando lentamente para ele.

— Venho em paz, senhor. Compreendo perfeitamente que toda a povoação esteja do seu lado, depois do que ouvi contar. No entanto, já sabe, senhor, a Lei é a Lei. Mas, de momento; nada farremos contra si. E sabe porquê? Porque o senhor voltará. Há algo no México que o atrai e que o perderá, senhor.

Silver viu aproximar-se o padre Alberto e o seu rosto fechou-se.

— Vai-se já embora, meu filho?

— Sim. Agora mesmo.

O padre nada disse, estendeu-lhe a mão, que Silver estreitou vigorosamente. Então, ante os olhares de Maria e Porfírio à janela, e ante o assombro do rural, Silver, o aventureiro que parecia forjado do mais duro aço, tirou o chapéu e pôs um joelho em terra.

— Dê-me a sua bênção, padre.

O padre Alberto fez o sinal da cruz sobre a sua cabeça e Silver levantou-se rapidamente, montando se um salto.

Levantou a mão para saudar Porfírio e Maria. Depois, esporeou ó cavalo e saiu pela grande porta, envolto numa nuvem de poeira. O sol, lá ao longe, vivia os seus últimos momentos daquele dia...

 

 

FIM

segunda-feira, 27 de março de 2023

6BL007.10 O último acto


Carbajal estava sumido nas suas reflexões. Pensava em Colorado Silver, isto é, em Gringo Sonora? Porque tentaria dar cabo dele?

Duas perguntas sem respostas... pelo menos de momento.

Soaram uns tiros no exterior. Carbajal não se moveu. Limitou-se a continuar com o olhar fixo num ponto indefinido do "saloon”. Encheu outro copo de tequila. Bebeu-o muito lentamente. Gringo Sonora aproximava-se. Matá-lo-ia como a um cão. Mas, consegui-lo-ia? Limpou algumas gotas de suor que lhe perlavam a testa. A ansiedade fazia-lhe bater o coração descompassadamente. Seria aquilo medo?

O relógio da Junta descarregou uma única badalada. Dez e um quarto.

Carbajal sobressaltou--se. Quase se levantou da cadeira. E, de súbito, rebentou o inferno.

Os batentes abriram-se violentamente, dando entrada a Colorado Silver, uma espingarda de dois canos na mão.

Simultaneamente, a porta das traseiras também se abriu, e Porfírio entrou a disparar o seu rev6lver, como um diabo.

Os bandidos tiveram um momento de hesitação, não sabendo a qual dos dois enfrentar primeiro. Mas não havia tempo para reflexões. Silver, espingarda à altura da anca, fez alguns disparos.

Os dois homens, que estavam ao balcão caíram, mortalmente atingidos. Carbajal terminou o seu movimento, começado inconscientemente. Derrubou a mesa e entrincheirou-se atrás dela, sacando rapidamente o seu enorme "Colt".

Da galeria sobranceira ao salão, um dos pistoleiros abriu fogo sobre Silvei., atravessando-lhe a copa do chapéu com um tiro.

Silver levantou cano da espingarda e voltou a disparar, acabando com a vida de mais um foragido. Depois, deixou cair a espingarda e sacou os seus dois 45, com uma velocidade impossível de seguir com a vista. O da sua mão direita varreu o balcão. Um dos bandidos que bebiam levou as mãos à garganta, deixando cair o copo, num último intento de deter a morte.

Um outro atirou-se ao chão, salvando-se. Os que, sentados numa mesa, jogavam às cartas, levantaram-se bruscamente e as bocas dos revólveres procuraram o corpo de Silver.

Porfírio, avançou pelo outro lado, encarregando-se deles

Os dois amigos encontraram-se a meio do "saloon". Os bandidos que não tinham caído até aí procuraram refúgio atrás das mesas que derrubavam, preparando-se para passar ao ataque.

Silver compreendeu que a momentânea surpresa desaparecera já. Por isso, com um gesto, ordenou a Porfírio que saísse, correndo também ele para a porta, disparando para proteger a retirada.

O tiroteio na pousada atraiu as hostes dispersas pelo povoado. Aproximaram-se a correr, convencidos de que a sua vigilância fora inútil.

Gringo Sonora conseguira chegar ao "saloon". Colorado ouviu-os chegar. E, imediatamente, pensou outro plano de ataque. Correu, seguido por Porfírio, para a corda que pendia da chaminé. Num segundo, estavam, de novo, no telhado, enquanto os bandidos se reuniam no "saloon".

Silver puxou a corda e deixou-a junto à chaminé, sem a desamarrar, já que pensava utilizá-la mais tarde. No entanto, sem que se apercebessem do facto, o rolo de corda voltou a escorregar pelo telhado, caindo ao chão. Lentamente, acercaram-se da claraboia. O cheiro a índio era mais intenso agora.

— Vou descer. — sussurrou Silver. —A ordem de cegar os cavalos foi de Carbajal, mas estes índios levaram-na a cabo. Os animais tinham o seu pestilento cheiro. Espera aqui. Se algo me acontecer, fuja.

Tirou do bolso a sua navalha. Abriu-a e, depois, descalçou as botas e deixou cair o cinturão.

Sem o menor ruido, deixou-se deslizar pela claraboia. Calculou que os dois índios estariam colados parede, evitando, assim, atacarem-se um ao outro na escuridão.

Apesar de não fazer qualquer barulho, sabia que os índios, com o seu apurado ouvido, tinham captado a sua entrada. Respirou pela boca para não delatar a sua presença e esperou.

Silêncio, calor e tensão naquele ambiente. E de súbito...

Algo se aproximava dele, sentia-o, ainda que não pudesse vê-lo nem ouvi-lo. Inesperadamente, um corpo entrou em contacto com a sua mão esquerda, estendida. Era a ocasião! Sentiu a navalha entrar na carne do adversário. O índio gritou. Foi um grito mais de surpresa do que de dor.

A navalha escapou-se-lhe da mão, húmida como estava do suor. E ao mesmo tempo, algo frio entrava em contacto com o seu corpo.

Saltou freneticamente para a direita, enquanto a gélida folha de aço de um machado recuava para descarregar outro golpe. Mas ele não chegou a aparecer. A vida fugiu do homem que o manejava.

Uma serpente assobiou, Não! O índio que restava brandia o machado, às cegas, esperando ferir o adversário. Silver estava desarmado! Tinha de fazer qualquer coisa para sobreviver. Lenta, penosamente, arrastou-se pelo chão, numa busca interminável.

A sua mão tocou num charco viscoso. Devia estar próximo do cadáver do primeiro índio, e, consequentemente, do seu machado. Continuou a apalpar o chão, sentindo uma profunda náusea revolver-lhe o estômago.

Encontrou-o por fim. Apertou o cabo do machado: E, de súbito, ocorreu-lhe uma ideia.

Tirou da algibeira a sua caixa de fósforos. Lentamente, foi espalhando-os, um a um, num amplo semicírculo. Os índios iam calçados com sandálias. Talvez os fósforos se incendiassem em contacto com elas. Aguardou, encolhido como um tigre, na escuridão, o machado empunhado ao alto.

Ssss!

Um fósforo incendiou-se a menos de duas jardas dele. Como uma mola de aço, Silver lançou-se sobre o índio. O machado fendeu carne e ossos como se fossem de manteiga.

O atingido soltou um grito pungente, desumano, e Silver retrocedeu, espantado.

Uma sombra recortou-se na claraboia. Porfírio, sobressaltado com o grito do índio, tentava perfurar as trevas.

— Silver! — gritou. -- Está bem?

— Sim — foi a tranquila resposta. — Sinto vontade de vomitar, mas estou bem. Pode descer.

Porfírio deixou-se escorregar pelo vão. E, quando acendeu um fósforo, esteve a ponto de soltar um grito de surpresa. Havia sangue por todo o lado. Os dois índios estavam estendidos no chão. O primeiro, anavalhado, morto. O outro, gemendo desesperadamente, com o machado enterrado num ombro, recuou para a parede, retorcendo-se horrorosamente, com um terror sobrenatural nos olhos.

Uma voz, vinda do "saloon", fez-se ouvir:

— Ponk, Huitle! — Carbajal chamava os seus homens.

Silver aproximou-se da porta e abriu-a, no momento em que Porfírio deixava cair o consumido fósforo. O índio ferido arrastou-se como uma coleante serpente. O seu último desejo era sair dali, deixar de ver Silver. As escadas que conduziam ao "saloon" começavam, bruscamente, logo à saída da porta.

O índio rolou por elas e, quando chegou aos pés de Carbajal, estava morto. Os olhos dos bandidos foram repetidas vezes do índio à porta.

Silver arrastou o outro cadáver e lançou-o escadas abaixo.

Carbajal sentiu como se o coração lhe parasse. Gringo Sonora lutara com os seus índios na escuridão e vencera-os! Um dos bandidos gritou, cheio de terror:

— É o diabo em pessoa! Fujamos!

 

++++++

 

Carbajal sacou o seu pesado "Colt" e meteu uma bala nas costas do homem que fugia. Depois, soprou o cano e voltou-se para a porta de acesso à claraboia. Agora seria diferente. Não poderiam contar com a surpresa. A mais horrível morte esperaria aqueles dois homens se tentassem descer.

Paulo, o mestiço de confiança, entrou naquele momento, em rápida correria.

— Há uma corda atada â chaminé do "saloon" — disse em voz baixa. — Subi ao telhado e encontrei isto.

Estendeu-lhe um cinturão, com dois coldres; de negro couro. O de Silver. Porfírio, inexplicavelmente, esquecera-se dele quando se juntara ao amigo.

— Paulo — sorriu Carbajal, — leva Nicásio e faz com que saiam do seu esconderijo. Dentro de meia hora, Gringo Sonora não passará de um cadáver.

Silver, apesar da porta estar entreaberta, não ouviu a conversa. Mas teve como um pressentimento.

— As minhas pistolas. Deixei-as ficar no telhado.

— Vou buscá-las! — ofereceu-se Porfírio, subindo o pulso, depois de se pendurar na claraboia.

Havia uma claridade difusa, anúncio do novo dia. O mexicano, surpreso, comprovou o desaparecimento das armas. Uma telha rangeu, ao ser pisada por uma bota. Voltou-se rapidamente, no momento em que Paulo, por detrás da chaminé, fazia ladrar o revólver. O impacto da bala fê-lo dar meia-volta. E, vendo que nada poderia fazer, deixou-se cair pela claraboia.

O ruido dos dois mexicanos, correndo sobre o telhado, deu a Silver uma perfeita ideia do que ocorria. Inclinou-se para Porfírio, apossando-se do seu revólver. Apontou ao tecto. Este era composto por uma armação de canas que sustentavam as telhas. Os passos dos inimigos delataram o lugar onde se encontravam.

Calmamente, disparou. Ao terceiro tiro, correspondeu um grito de dor. Um corpo caiu pesadamente e resvalou para o chão. Os outros três tiros que lhe restavam serviriam para pôr em debandada o outro bandido.

Rapidamente, içou-se para o telhado. Comprovou o desaparecimento das armas, calçou-se e desamarrou o laço da chaminé. Então, voltou a descer pela claraboia.

Porfírio estava sentado no chão, com as costas apoiadas na parede, tentando deter a hemorragia com o lenço. A difusa claridade do novo dia, Silver pôde ver a extrema palidez do seu rosto.

— Não é nada. Um buraquito sem importância, nada mais.

Com uma careta de dor, desmaiou. O projétil atravessara-lhe o peito, muito alto, sob o ombro direito. Não parecia uma ferida mortal, mas também não era "um buraquito sem importância".

De súbito, chegaram da rua uns disparos. Uma espingarda que Silver conhecia muito bem pois era a sua. O vidro da janela voou em estilhaços.

Paulo, que. escapara com vida dos tiros de Silver, no telhado, foi atingido, no pescoço, morrendo instantaneamente. Carbajal, ao seu lado, lançou-se para o chão. Depois, avançou para a janela, surpreso com aquele inesperado ataque. Quem poderia ser?

Um cauteloso olhar fê-lo respirar fundo. O atacante era nada mais nada menos do que Maria Alvarez de Camporreal, a proprietária do rancho "Pedra Negra". Tinha a espingarda encravada e tentava, nervosamente, pô-la, de novo, a funcionar.

Como um ágil puma, Carbajal saltou pela janela e desarmou-a, prendendo-lhe, depois, as mãos nas costas, com umas tiras do seu próprio vestido.

Um rumor de cascos fê-lo voltar a cabeça. Os seus homens batiam em retirada. Abandonavam-no. Aceitou o facto quase com indiferença. Seis ou sete homens, quantos lhe restavam do seu antigo bando. E levando as armas dos mortos, o que de maior valor havia naquelas terras.

Debruçou-se para a jovem, depois de a derrubar, amarrando-lhe os pés. E então, aproximou--se da porta do "saloon", gritando:

— Gringo Sonora! Espero-o aqui fora! Saia sozinho ou a sua amiga morrerá!

A figura do padre Alberto atravessou a praça, entrando no botequim.

Silver, no varandim do "saloon", compreendeu que chegara o momento do último acto da tragédia. Com Porfírio às costas, desceu as escadas, deixando-o sobre uma mesa, recuperados já os sentidos.

— Carbajal está lá fora — disse o padre com voz rouca. — E tem Maria com ele.

— Bem o sei, padre.

Voltou-se para o ferido e tirou-lhe o cinturão. Examinou o 45 e verificou que estava vazio. Olhou interrogadoramente Porfírio.

— Não tenho um só cartucho. Gastei-os todos.

A situação roçava a tragicomédia. Chegara o momento final e estava desarmado. Deitou um olhar pela destroçada janela. Até àquele instante, Barreal era uma povoação adormecida. Mas, agora, parecia que todos os habitantes estavam na rua, para ver o final da representação.

— Que poderemos fazer? — inquiriu o padre, limpando o suor que lhe corria pelo rosto.

— Eu irei buscá-lo — sorriu Silver. E cingiu o cinturão de Porfírio, colocando o revólver na funda.

— Com uma arma descarregada?

— Carbajal não o sabe. Reze por mim, padre.

Avançou até à rua. Cem passos mais acima, próximo da Junta, Carbajal aguardava a pé firme. Ao seu lado, estendida no chão, Maria.

O modo como saiu do "saloon", a calma com que parara para acender um cigarro, tudo naquele desconhecido impressionou vivamente Carbaja1. Soube, imediatamente, que Gringo Sonora o mataria.

Ali, diante de todo o mundo, cairia aos pés do adversário, e os habitantes de Barreal; rir-se--iam dele até ao fim das suas vidas.

Sentia um medo terrível, brutal. Não queria morrer. Não queria que o chumbo de Gringo Sonora lhe destroçasse as vísceras, fazendo-o expirar sobre o p6 da praça, enquanto um enxame de moscas lhe viria cobrir as feridas.

Fascinado, como o indefeso pardal que contemplava a serpente que o vai devorar, Eudosio Carbajal olhava o oponente. Viu-o fumar durante uns segundos, longos como horas, e, depois, atirou o cigarro para longe. E aproximava-se dele.

A cada passo, a sua estatura parecia aumentar. Depois, viu os seus olhos, dois pedaços de gelo verde, carecendo por completo de expressão. Recordou algo que ouvira contar: Gringo Sonora nunca saca sem o adversário o ter feito primeiro. Silvar passava pelo momento mais tenso de toda a sua vida. No seu cérebro, latia a angustiosa pergunta: quando sacaria Carbajal?

Aproximou-se uns passos mais. E, de súbito, algo ganhou vida na sua mente. Estava a menos de dez passos do bandido e este ainda não sacara! Procedeu então sem pressas, mas aproveitando cada fração de segundo.

A cena ficou gravada para sempre na memória de quantos a ela assistiram. Silver chegou junto de Carbajal, que parecia convertido numa estátua. Estendeu a mão esquerda e desarmou-o. Depois, com a direita, cruzou-lhe o rosto, numa seca bofetada.

Carbajal caiu de joelhos. Abriu a boca, mas fechou-a imediatamente. Depois, como um sonâmbulo, levantou-se e começou a andar. Silver não lhe dedicou a menor atenção. Debruçou-se para Maria, desamarrando-a.

Entretanto, Carbajal aproximava-se do cavalo, vacilante. Os habitantes de Barreal afastavam-se dele, sem tentar sequer maltratá-lo. Para eles, que o tinham temido durante anos, não era agora nada. Estava muito abaixo de um cão. Era final. Carbajal partiria e jamais se atreveria a aparecer pela região.

Mas, de súbito, aconteceu o inesperado. Uma mulher saltou diante do bandido, brandindo algo brilhante. Foi tudo demasiado rápido. A mulher gritou. Carbajal recuou, mais inseguro ainda. No seu peito, no meio de uma roseta de sangue, o trabalhado cabo de uma navalha mexicana.

— E Anita Lopez — ciciou Maria.

A filha do cego Lopez acabava de cobrar a sua divida. Olho por olho, dente por dente.

— Gringo Sonora! — o grito jubiloso de Porfírio chegou inesperadamente até ele. — Cantar-se-ão histórias em sua honra desde o México ao Cabo de Hornos!

Apoiado no frade, o jovem mexicano aproximava-se, indiferente à dor do ombro. Chegou junto dele, rindo como um louco.

— Dê-me o meu revólver, 'Silver.

O aludido estendeu-lhe o cinturão. Porfírio olhou em redor, as pupilas brilhantes pela febre. — Bando de cobardes! — gritou. — Um povoado inteiro temendo um homem que não pôde enfrentar-se com Gringo Sonora, apesar de este usar uma arma descarregada! Verifiquem com os vossos próprios olhos e que o diabo vos leve a todos!

Atirou o revólver ao grupo mais próximo. E, pouco depois, um clamor aumentava de intensidade, à medida que os habitantes de Barreal comprovavam a veracidade das palavras de Porfírio.

E a apatia dos homens desapareceu como por encanto. Um grupo de cavaleiros, recorrendo a todas as armas possíveis, partiu a galope para fora da cidade.

— Vão para os lagos — disse, com certa preocupação o padre Alberto. — Espero que não consigam encontrar os restantes bandidos. Já correu demasiado sangue em Barreal.

 

domingo, 26 de março de 2023

6BL007.09 Ao toque do relógio, uns lutam, outros morrem, alguns rezam…

Caminhou para a igreja e ajoelhou perante o altar...

Foi um grito espantoso, impossível de sair de qualquer garganta humana. Silver saltou da manta e levantou-se. Acendeu um fósforo e, depois, a lamparina. Comprovou que os revólveres estavam carregados, e agarrou a espingarda de dois canos.

Os olhos de Porfírio fitavam-no cheios de estranheza.

— Parecem...

— São os cavalos — atalhou Silver duramente. — Carbajal sabe que estamos bem escondidos e que não poderá encontrar-nos. Por isso, ideou um meio de nos fazer sair a campo descoberto. E temo que o conseguisse. Vamos.

Correndo, chegaram aos estábulos, seguidos a certa distância, por Maria e pelo padre Alberto. Havia suficiente luz para verem que os animais não estavam no mesmo lugar onde os tinham deixado. Os aflitivos relinchos vinham do pátio.

Silver aproximou-se lentamente. Chamou o seu cavalo. O bicho estremeceu, e caminhou para o dono, como cambaleando. Silver percebeu, primeiramente, o repugnante cheiro a carne queimada.

Depois, apesar da, difusa luz, descobriu o que se passara: aqueles selvagens tinham cegado os pobres animais.

Porfírio gritou como se tivesse enlouquecido. Abraçou-se ao pescoço do seu cavalo e chorou/ desconsoladamente. Silver, imperturbável, mas com uma profunda ira nascendo-lhe no peito, sacou lentamente um revólver e, convidando Porfírio a afastar--se, com um gesto, fez o que era forçoso fazer: abateu os briosos animais, acabando com o seu alucinante sofrer.

Mal o eco dos tiros se esfumara, Silvério apareceu, chapéu na mão.

— Eles estão no "saloon", senhor.

— Todos?

— Não, senhor. Só Carbajal e seis homens. Os outros vigiam as ruas.

— Obrigado. Agora, vai para casa e não saias à rua. — E, voltando-se para Porfírio, limitou-se a dizer: — Vamos.

Começaram a andar para a porta do pátio. O padre Alberto, conhecedor dos seus sentimentos, chamou-o. Mas sem qualquer resultado.

Entretanto, Maria, sentindo ferver-lhe nas veias todo o impetuoso e nobre sangue dos Camporreal, deu meia-volta e correu para o subterrâneo. Ai, apossou-se da Winchester de Silver, encheu os bolsos das calças com cartuchos e regressou ao pátio. Não sabia o que ia fazer nem porque o fazia, mas isso também pouco lhe importava.

O padre Alberto viu-a passar e nada fez para a deter. Caminhou para a igreja e ajoelhou-se ante o altar. Rezou. O mundo é assim. Uns lutam, outros morrem e alguns rezam.

+++

A ténue luz das estrelas ficara quase anulada por um fino véu de fugidias nuvens. Silver, ombro com ombro de Porfírio, olhou para cima.

As casas de Barreal eram quase todas de um só andar. E, naquela, a chaminé destacava-se na negrura do céu; Silver preparou o laço e Porfírio adivinhou imediatamente a sua intenção.

O americano lançou a corda, prendendo-a à chaminé. Esticou-a e subiu agilmente, apoiando os pés na parede. Porfírio seguiu-o. Assim, poderiam percorrer o povoado como fantasmas, passando de telhado em telhado. As ruas, salvo a principal, eram muito estreitas, permitindo que saltassem de um lado para o outro.

— Alguns homens devem estar a vigiar o convento. Vejamos se distinguimos alguma coisa.

Silver possuía a agudeza de um índio. Por isso, não lhe foi difícil distinguir uma sombra humana colada à parede. Também Porfírio distinguiu dois bandidos. Deviam andar mais pelos arredores, mas não delatavam a sua presença.

Silver destravou a espingarda que pusera a tiracolo. Porfírio, lentamente, sacou o seu 45 e levantou o percutor, apontou-a ao bandido isolado, deixando os outros dois para o companheiro. Os tiros do americano ressoaram pelo povoado, procurando os corpos dos bandidos. Ouviu--se um grito, e um corpo caiu pesadamente ao chão. Uns tacões correram pela rua. Silver voltou a disparar e o rumor dos tacões cessou imediatamente.

O homem colado à parede distinguiu as luzinhas dos tiros no telhado. Sacou rapidamente, mas só pôde fazer um disparo que arrancou uma telha junto de Colorado. O revólver de Porfírio ladrou três vezes e o bandido, atingido em cheio, cambaleou lentamente até ao centro da rua, onde caiu.

Houve um tropel de passos nas ruas adjacentes, caminhando para eles. Mas Gringo Sonora tinha algo gravado na mente: o "saloon".

Era ali que estava Carbajal. Silenciosamente, depois de puxarem a corda, atravessaram mais alguns telhados, não ta dando a alcançar o do "saloon". Era o único edifício que estava iluminado em todo o Barreal. Não se via ninguém pelas redondezas. Silver falou em voz baixa:

— Vejamos essa claraboia. Talvez nos permita a entrada por onde menos esperam.

A claraboia era quadrada. E estava aberta...

Repentinamente, Silver pressentiu o perigo. Era uma armadilha, uma mortal armadilha. Pela negra abertura, era impossível ver qualquer coisa. Mas, um cheiro esquisito impressionou-lhe a pituitária. Cheiro a índio.

Na sua mente, apareceram as imagens dos dois índios de Carbajal, esperando na obscuridade, silenciosos como fantasmas, os afiados machados bem seguros nas mãos.

Arrastou Porfírio pelo braço, afastando-o dali. Depois, com um mudo gesto, convidou-o a segui-lo. Segundos mais tarde, estavam, de novo, no pavimento da rua. Como fantasmas, deslizaram pela parede até à porta das traseiras do "saloon". Também ela estava aberta e, portanto, aguardavam pacientemente que eles se metessem na boca do lobo.

Dois homens entrariam pela porta principal do "saloon". Ou pelas das traseiras. Não haveria qualquer possibilidade de escapar com vida. Dentro do botequim, Carbajal e dez ou doze dos seus homens dar-lhes-iam o golpe de misericórdia.

Mas a mente de Silver não funcionava com a simplicidade que aqueles mestiços supunham. Uma ideia ganhou vida no cérebro do ianque. Que aconteceria se entrasse cada um pela sua porta, os revólveres cuspindo fogo, e saíssem, depois, pela porta por onde o outro entrara?

O relógio da Junta deixou ouvir as suas lentas badaladas. Dez horas da noite. Colou a boca ao ouvido de Porfírio e expôs-lhe o seu plano. O mexicano aprovou calorosamente a ideia. Só lhe pôs um reparo.

— Como nos vamos arranjar para entrar ao mesmo tempo?

— O relógio da Junta acaba de dar as dez horas. As dez e um quarto soará uma só badalada. Servirá de sinal.

 

sábado, 25 de março de 2023

6BL007.08 O homem que descobriu o verdadeiro caminho


Detiveram-se a meia milha do povoado. Desmontaram, e Silver acendeu novo cigarro.

— Escute!

Porfírio levantou a mão, chamando-lhe a atenção.

— É um "seis tiros" — observou Silver, indiferente. — E está a disparar sozinho. Talvez seja Carbajal a descarregar a sua fúria sobre qualquer alvo.

Esperaram tranquilamente, pois não lhes convinha encontrarem-se com o grosso das tropas do bandido. As primeiras sombras da noite envolviam já o povoado, quando Silvério apareceu a correr. Ofegante, disse:

— Acabam de partir, senhor. Carbajal esteve a atirar sobre os santos do convento. De certeza que vai para o inferno, senhor.

— Eu também juraria que acabará lá. Vamos.

A pé, muito lentamente, entraram no Barreal, dirigindo-se logo para o convento. A porta do pátio estava aberta. Entraram e conduziram os cavalos para o estábulo. Depois de os tratar entraram silenciosamente pela porta lateral, que conduzia à igreja.

O mexicano prosseguiu o seu caminho até à sacristia, mas Silver deteve-se. Um raio de luar entrava pela janela, caindo sobre o altar principal. Aí, no nicho que continha a imagem de São Francisco, brilhava algo estranho.

O alto ianque sentiu uma repentina curiosidade e aproximou-se do altar. Aos pés do santo, havia um coldre, com um enorme 45, tipo Frontier, de niquelado aço. Um ex-voto.

Silver retirou-se cuidadosamente, como se temesse despertar alguém. Entrou na sacristia.

Porfírio abrira a entrada do subterrâneo e esperava-o. Mal atravessaram a estreita passagem, depararam com o padre Alberto, que levava uma lamparina de azeite na mão. Este conduziu-os, por um comprido e húmido corredor, até uma enorme sala, onde Maria Alvarez de Camporreal e a pequena Anita preparavam a frugal ceia.

— Então, como correu a incursão? — perguntou o frade.

— Sem dificuldades — sorriu Silver. — Assaltámos o acampamento e destruímos tudo. Não terão sequer uma manta para se resguardar do frio.

— Alguma baixa?

— Seis índios mortos e um incapacitado por muito tempo.

Sobreveio um longo silêncio, que durou todo o tempo da refeição. E foi Maria quem o rompeu, com uma pergunta:

— Porque faz isto, Silver? Não tem nada a ganhar. Antes pelo contrário, pode perder a vida facilmente.

Silver sorriu friamente.

— Talvez a minha especialidade seja a de meter-me em sarilhos... Desde que sejam difíceis. Divertem-me. Além disso...

— E se fôssemos descansar? — sugeriu o padre Alberto, cortando a resposta de Silver. -- Precisamos de retemperar as forças.

Anita estendera algumas mantas no chão, e todos concordaram com a sugestão do padre. A manta deste último ficou precisamente ao lado da do ianque.

Silver, enquanto tirava as botas, disse, como casualmente:

— Um curioso ex-voto o que há aos pés de São Francisco. Creio reconhecê-lo.

O padre olhou-o curiosamente.

— Esse revólver pertenceu a um homem, que você, meu filho, não deve ter conhecido. Deixou a vida terrena...

— Sim, bem o sei, padre. Alberto Mendoza, o mexicano Mendoza, como lhe chamavam no Texas, era um homem muito famoso. Sempre tive curiosidade em saber o que era feito dele. Ainda está vivo?

— Sim.

— Deixe-me ver a sua mão esquerda, padre — pediu Silver.

O aludido hesitou uns instantes, sorrindo, estendeu-lhe a mão. A fraca luz da lamparina, Silver pôde ver uma enorme cicatriz no seu dorso. E faltava-lhe o dedo indicador.

— Mendoza teve uma luta famosa em todo o Texas. Contra Pete Murell e dois dos seus sequazes. Pretenderam anavalhá-lo e ele venceu os três. Ficou ferido na mão esquerda perdeu o dedo indicador. O senhor, padre, é Mendoza!

— Engana-se, meu filho. Eu não sou Alberto Mendoza. Fui-o, é verdade, e que Deus me perdoe por isso. Mas, agora, sou frei Alberto de Guadalupe. Desse tempo nada resta senão o arrependimento. Senti a chamada de Deus. Ele mostrou--me o verdadeiro caminho. Desde esse momento, compreendi que há perigos que não podem ser evitados com um revólver. Boas noites, meu filho.

— Boas noites, padre.

Silver dificilmente conseguiu conciliar o sono. E, quando já quase o conseguia, surpreendeu-o o ruido de cascos de cavalos muito próximo dele.

— Carbajal e os seus homens voltaram ao Barreal — ouviu a voz do padre Alberto.

E, na realidade, uns tiros vieram comprovar as suas palavras. Depois, voltou o silêncio. Silver adormeceu. E, nesse preciso instante, Carbajal estava no "saloon", com uma garrafa de tequila à frente, conferenciando com os dois índios válidos que lhe restavam.

 

sexta-feira, 24 de março de 2023

6BL007.07 Visita ao acampamento dos bandidos

 

... fazendo-os debandar em todas as direções

— Padre Alberto, preciso de falar consigo — disse Colorado Silver, ao chegar ao convento. — Quando Carbajal vier ao povoado, não nos encontrará cá. Porfírio e eu faremos uma incursão pelos lagos, desbaratando-lhe o acampamento. Há algum sítio onde possam ocultar-:se, com toda a segurança, algumas pessoas?

— Sim, meu filho. Nas catacumbas. Mas, a quem quer ocultar lá?

— A menina Maria Alvarez de Camporreal, o alcaide e, essa garota, Anita, a filha do cego Lopez. O senhor também deverá esconder-se, padre. Providencie no sentido de serem para lá transportadas as provisões que julgar necessárias para alguns dias. Enquanto se instalam, nós iremos fazer uma visita ao acampamento de Carbajal. Estaremos de volta, esta noite.

Acto continuo, Silver partiu, logo seguido de Porfírio. Caminharam para o quarto e aguardaram que Silvério ou qualquer outro garoto os avisasse da chegada do bandido. E a espera não foi muito longa. Cerca de três horas depois, Silvério, ofegante, batia-lhes à porta, anunciando a chegada de Eudosio e dos seus homens.

Ao trote dos seus cavalos, dirigiram-se para os lagos. Quando distinguiram os rochedos do lago maior, Silver pôs o cavalo a passo.

— Segundo o que dizem no Barreal, o acampamento está vigiado por nove índios — informou Porfírio. — Não creio que tenhamos possibilidades de nos aproximarmos sem sermos vistos.

— Não partilho a mesma opinião. A esta hora, estarão todos bêbedos. Carbajal trata-os duramente e devem ter aproveitados sua ausência para beber.

E, na realidade, os factos pareciam dar-lhe razão. Aproximaram-se do acampamento. Junto ao muro natural, quase sob os seus pés, viam-se alguns vultos: o equipamento dos bandidos. A esquerda, algumas cabeças de gados, aves e um grande número de suínos do país, magros e ágeis como cães. E homens.

Silver contou cinco, indolentemente deitados à sombra que projetava o muro.

Uma estranha melodia, cantada a meia voz, chegou até eles. Fixou-se também nas três garrafas vazias, abandonadas sobre o arenoso solo.

Cinco dos índios de Carbajal. Onde estariam os outros quatro?

Era importante sabê-lo antes de atacar.

Silver fixou-se mais atentamente no lugar onde estava o gado. Sim. Duas sombras estavam estendidas atrás dos animais. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguiu dar com os dois que faltavam. Talvez estivessem no lago pequeno.

Tinham de apressar-se. Carbajal tanto poderia demorar-se muito tempo em Barreal como voltar para o acampamento, mal verificasse que eles não se encontravam no povoado.

— Vamos pregar-lhes o maior susto da sua vida — sussurrou para Porfírio. — Empr4egaremos as espingardas. Não atire a matar, a menos que seja obrigado a isso.

Silver apontou cuidadosamente ao grupo dos cinco índios. O tiro ressoou estranhamente, repetido pelo eco. Numa fração de segundo, os índios saíram da sua modorra. Levantaram-se, gritando como demónios.

e Porfírio continuaram a disparar, fazendo levantar nuvens de poeira aos pés dos enlouquecidos homens. No entanto, a esperada fuga não se produziu.

Colorado compreendeu que se deixara levar por um excessivo sentimentalismo que poderia custar-lhes bastante caro. Os índios, como gamos, lançaram-se a toda a velocidade para as formações rochosas, desaparecendo da vista dos atacantes.

— Devem estar a trepar pelas rochas. Se queremos sair com vida disto, teremos de estar bem atentos. Vigie metade do campo. Eu tomarei conta. da outra. E dispare a matar.

Costas contra costas, os olhos bem abertos, dispuseram-se a repelir o ataque. E, quando Silver julgava já que os seus receios eram infundados, a cerca de cinquenta jardas viu-se uma cabeça.

Quase no mesmo instante, quatro índios, apareceram de quatro lados diferentes, e lançaram-se sobre eles, gritando como diabos. Silver ocupou-se de dois, deixando os outros para Porfírio.

Com um certeiro tiro à cabeça, acabou com um deles. No entanto, necessitou de fazer cinco disparos para terminar com o outro. Mesmo com cinco balas no corpo, conseguiu levantar o braço e arrojar o machado, que veio a morrer a dois passos do ianque.

Porfírio, pelo seu lado, estava numa situação bastante difícil. Descarregou o tambor do revólver sobre um dos índios. E, quando o segundo atacou, machado em punho, o jovem mexicano teve a suficiente serenidade para esperar até ao último momento. Então, com o atacante a escassos metros, arrojou-lhe o vazio revólver à cabeça. O homem estacou bruscamente, cambaleando, o crânio destroçado. O outro índio, ainda que ferido, acercava-se perigosamente.

Porfírio atuou com rapidez. Deu um passo atrás e desapertou o cinturão. Brandindo-o, à laia de chicote, passou ao ataque. A tira de couro com a grossa fivela constituía uma arma terrível. Com ela, acabou com o índio ferido.

De súbito, do alto de uma rocha, uma espingarda rugiu. E uma outra, da direita, juntou-se à primeira. Silver saltou para diante, procurando refúgio atras de uma rocha. E, do seu improvisado abrigo, viu como outro atacante se lançava sobre Porfírio. Dispunha-se a acudir em sua ajuda, expondo-se a receber uma bala, quando tudo acabou num instante.

Com o cinturão, Porfírio venceu facilmente o adversário deixando-o incapacitado por muitos dias. E, rapidamente, correu para um grupo de três rochas a escassas jardas.

Uma bala alcançou-o no tacão da bota direita, obrigando-o a cair de cabeça. Mas já estava muito perto das rochas. Arrastando-se, com uma granizada de balas a persegui-lo, conseguiu pôr-se a salvo.

A sua situação não era, no entanto, das melhores. Estava completamente desarmado. O revólver e a espingarda tinham ficado em terreno descoberto, impossíveis, consequentemente, de recuperar.

E foi Silver quem o salvou, atirando-lhe um dos seus pesados 45. Se os dois restantes índios tivessem sabido manter a calma, acabariam facilmente com os dois sitiados. Mas não. Mordidos pela impaciência, saíram detrás das rochas, disparando as suas Winchester.

Silver não desperdiçou tão soberana oportunidade. Levantando a cabeça por sobre as rochas, numa fração de segundo, fez um disparo que atingiu um dos índios na garganta. O companheiro aturdido, teve uma hesitação que lhe foi fatal. Porfírio, rápido, disparou o 45, terminando, para sempre, com o acobreado homem.

Depois de uns longos segundos de espera, abandonaram os seus esconderijos. Porfírio recuperou as suas armas, devolvendo o revólver a Silver.

Tudo parecia tranquilo, mas, algures o perigo espreitava, nas figuras dos dois índios que faltavam.

Cautelosamente, Silver e o mexicano entraram no acampamento. E, com a rapidez de um raio, destroçaram quanto encontraram à mão: Viveres„ roupas, selas, pasto para os animais, armas e munições. Terminada a destruidora tarefa, voltaram aos cavalos, partindo em direção ao lago pequeno, onde os bandidos deviam ter as montadas de reserva.

E, na realidade, não se enganaram. Uma manada de quinze a vinte cavalos pastava tranquilamente na verde erva. Como um furacão, os dois cavaleiros galoparam para os animais, fazendo-os debandar em todas as direções. Carbajal e os seus homens dificilmente os recuperariam.

Foi uma operação bastante rápida, mas não isenta de perigo. Os dois índios, que guardavam a manada, estendidos no chão, não cessaram de disparar sobre eles, s6 parando quando os tiveram fora do raio de ação das suas espingardas. Então, Silver refreou o potro e, pacientemente, começou a enrolar um cigarro.

— Voltemos ao Barreal. Temos de terminar o trabalho começado.

Porfírio riu de vontade. Estava satisfeito o mexicano.

 

quinta-feira, 23 de março de 2023

6BL007.06 O medo apodera-se do malvado Carbajal


No acampamento junto das margens de um lago, Eudosio Carbajal, sentado numa pedra, tinha, como sempre, o pensamento no passado. Apesar de cumprir o que se prometera em garoto, o menino Martin há muito já que engolira a moeda de prata atada a uma enorme pedra que lhe causara a morte, algo continuava a queimar as suas entranhas.

Levou o cigarro aos lábios e aspirou-o. Apagara-se durante as suas reflexões. Acendeu-o de novo, e acabava de atirar o fósforo para o chão, quando ouviu o furioso galopar de alguns cavalos que se aproximavam.

Eram os seus três homens de confiança: Paulo, Nicasio e o Renato, e um outro tipo que dava pelo nome de Leónidas. Tinham ido buscar a "contribuição" e voltavam de mãos vazias e a galope. Desmontaram com os cavalos em movimento, e Paulo, suando em bica, disse, ofegante:

— Há sarilho, patrão. Creio que esses tipos do Barreal contrataram os serviços de pistoleiros. Só vimos dois, mas…

— Só dois? E vocês fogem como ratas assustadas?

— Queríamos que o soubesses, antes de passarmos à ação — mentiu, deliberadamente, Paulo.

— Isso explica por que motivo Raul e Roberto não regressaram. Quem eram esses tipos?

— Um deles chama-se Gringo Sonora.

Repentinamente, a atitude de Eudosio modificou-se. Gringo Sonora, o ianque mais conhecido ao Sul do Rio Grande. Uma súbita curiosidade, vencendo o inconsciente temor, apossou-se dele. Durante uns momentos, fumou em silêncio. Depois, atirando o cigarro para longe, ordenou secamente:

— Toda a gente a cavalo! Vamos brincar um pouco com esses cavalheiros.

Não se apressaram. Tinham tempo suficiente. Demoraram quase três horas e meia a percorrer as vinte milhas que os separavam do povoado.

Assim que chegaram ao Barreal, Eudosio meteu o cavalo a passo, enquanto os seus olhos esquadrinhavam em todas as direções.

No entanto a batalha não se produzia. Percorreram todas as ruas de Barreal sem qualquer oposição. Era estranho, muito estranho mesmo.

Lentamente, desmontou à porta do "saloon”, logo seguido por todos os seus homens. Na mesa do costume, começou a beber.

Pouco depois, despejada que foi a garrafa de tequila, rompeu a rir estrepitosamente.

Paulo olhou-o, com certa inquietação. Quando o chefe se embebedava, a coisa ia mal. Rindo ainda, Carbajal levantou-se e saiu do "saloon". Paulo, Nicasio e Renato seguiram-no como era habitual.

Cambaleando, alcançou a rua. Na primeira esquina, tropeçou com um mexicano franzino levando pela arreata um burro carregado de lenha.

— Escuta, imbecil. Procuro um cão chamado Gringo Sonora. Onde está.

— Não sei, senhor! — murmurou o pobre homem, transido de medo.

Carbajal, com o seu inseparável chicote preso ao pulso direito, agrediu-o selvaticamente. Quando se cansou, deu um passo atrás, berrando:

— Desaparece daqui, malvado! Eu encontrá-lo-ei, ainda que se tenha metido debaixo das saias da mãe.

Olhando como louco os seus homens, continuou a caminhar pela rua. Em breve se detinha frente à igreja. E, então, fez algo que deixou assombrados os bandidos. Sacando o revólver, disparou contra as imagens, colocadas por sobre a porta do templo.

Depois da façanha, sacudiu a cabeça, fazendo ondear as largas abas do chapéu.

O suor corria-lhe pelo moreno rosto. Tinha a roupa pegada ao corpo pela transpiração. Os seus homens julgavam-no valente quando o viam cometer semelhantes barbaridades, mas não podiam suspeitar que era o medo que o impelia àqueles actos. Um medo enorme, espantoso, indescritível.

— Vamos embora — resmungou. — Mais tarde, viremos buscar esse... Gringo Sonora.

Seguido pelos três sequazes, voltou ao "saloon". Dez minutos depois, o Barreai adquiria de novo o seu aspeto tranquilo. Mas ninguém poderia estar descansado. Carbajal ia-se embora, mas voltava sempre.

quarta-feira, 22 de março de 2023

6BL007.05 Os olhos e ouvidos de Gringo Sonora

Com a sua sinistra carga, Porfírio e Colorado Silver chegaram ao convento de Barreal. O padre Alberto, bondoso religioso e encarregado do convento; recebeu-os, e, depois de ouvir a triste história da morte do seu irmão, ofereceu-lhes alojamento no vetusto edifício. E, ao jantar, foi o padre quem quebrou o silêncio que reinava na enorme sala.

— Quem são os senhores?

O mexicano sorriu abertamente.

— Chamo-me Porfírio Fernandez. Creio que nunca ouviu falar de mim, padre.

— Não, com efeito, nunca ouvi — os olhos do franciscano caíram sobre Colorado.

Este mexeu-se na cadeira e disse:

— Pelo contrário, eu tenho vários nomes. Em Arizona e Montana conhecem-me por "Pistolas" John. Na Califórnia, por Colorado. No Texas, por Colorado Silver. E aqui no México, por Gringo Sonora.

Os olhos do padre abriram-se desmedidamente.

— Gringo Sonora! Julgava-o mais velho, meu filho. Tão poucos anos não parecem indicar …

— O rasto que deixo por onde passo, não é isso, padre?

— Tenho ouvido muitas coisas de si — sorriu o padre. — E nem todas más. Ninguém pensa que você seja um malvado, mas sim um jovem que carece do peso das cãs e da sabedoria dos anos. No México, cantam-se romances dos seus feitos. Aqui, por exemplo, tive ocasião de ouvir um. Cantava-o um cego chamado Lopez. Infelizmente, não o cantará mais. Eudosio Carbajal acabou com ele, esta manhã.

— Um cego? E porquê?

— Precisamente por cantar o seu romance. Carbajal não quer ouvir elogios a mais ninguém senão à sua própria pessoa.

— E matou-o? A um cego? Padre, conheço o México desde garoto, mas não o consigo compreender. Que espécie de país é este.

— Um país onde há homens bons e maus, como em todos os outros.

Silver afastou o prato e, com voz firme, disse:

— Eudosio Carbajal deve desaparecer. E um homem que envenena o próprio ar que respira.

— Eu aconselhá-lo-ia a...

— Não precisamos de conselhos, padre,' mas sim de chumbo quente. Sinto-o, mas receio que tenhamos pontos de vista diferentes neste assunto. Diga-me, quantos homens tem Carbajal?

— Vinte e três, Isto é, vinte e um, descontando os dois que você trouxe hoje.

A simples cerimónia do enterro do desgraçado padre bem como o dos dois bandidos e do cego cantor, decorreu no meio de um impressionante silêncio. E quando se lançaram as primeiras pazadas de terra sobre os caixões, Silver julgou chegado o momento de iniciar o seu plano.

Adiantou-se e levantou a mão, num gesto bem mexicano, A numerosa assistência olhou-o, silenciosamente, expectante.

— Amigos — começou, — fizemos uma longa viagem só para vos ajudar. Eudosio Carbajal tem de desaparecer. E, para isso, precisamos de voluntários que queiram lutar pelas suas terras e

Um longo silêncio acolheu as suas palavras. Aqueles homens não estavam dispostos a cooperar. Conheciam a fama de Gringo Sonora, mas também sabiam que Carbajal era o verdadeiro demónio em pessoa. Silver, depreciativamente, ajuntou:

— Bem, vejo que não há voluntários. Então, trabalharemos sozinhos. Quanto levam por abrir uma cova? — perguntou, dirigindo-se aos dois coveiros. — Dois pesos, senhor.

Silver tirou do bolso um punhado de moedas e contou quarenta e dois pesos. Deixou-os cair no chão e, secamente, disse:

— Quero que abram vinte e uma. Eudosio e seus homens não devem tardar a ocupá-las.

Deu meia-volta e caminhou para a saída do cemitério, logo seguido por Porfírio. Minutos depois, desmontavam no pátio do velho convento. Subiram ao quarto e trocaram as primeiras impressões sobre o plano a seguir.

— Se matarmos Eudosio, é possível que o bando se desfaça rapidamente — opinou Porfírio.

— Isso não pode ser. Tem de esperar. Até que trema de medo dentro das botas, e toda a gente o possa ver. Até que o terror da morte o faça suar como um condenado. Quantos bandos como o de Carbajal haverá no México? Centenas deles. Se matarmos os chefes, logo às primeiras, todos pensarão que foi um momento de má sorte para eles. E, assim que lhes voltarmos costas, o primeiro que aparecer tomará o lugar do outro. Por isso, se mostrarmos que Carbajal é um cobarde, a coisa mudará de aspeto. Barreal tem cerca de dois mil habitantes. Compreenderão que são mais fortes do que qualquer outro bandoleiro que pretenda impor-se à força.

Porfírio concordou. Não compreendia muito bem, mas achava que aquilo tinha sentido.

— Não será fácil assustá-lo desse modo, senhor. Mas podemos tentar.

— Sim; e, para começar, temos de evitar que nos veja. De todas as espécies de medo, o pior é. ao desconhecido. — Procederemos como fantasmas! Creio que nos divertiremos um bom bocado... antes que nos matem.

Silver, num sussurro, ordenou ao mesmo tempo que apurava o ouvido:

— Prossiga; não se cale!

Silenciosamente, deslizou até à porta. Nas mãos, brilhavam-lhe os azulados canos dos revólveres. Porfírio falou da primeira coisa que lhe veio à. cabeça. E, segundos depois, Silver apontava as armas a um garoto cujo rosto moreno não aparentava mais de dez anos. Os olhos do pequeno contemplaram-no, muito abertos, enquanto Silver, sorrindo, guardava as armas.

— Entra e diz o que queres — convidou Silver.

O garoto hesitou. E os seus olhos voltaram--se para trás, na direção de um grupo que, à esquina do corredor, esperava.

— Viemos oferecer-lhe a nossa ajuda, senhor. Nós não temos medo.

Passando, carinhosamente, o braço pelos ombros do que falara, e depois de ler feito sinal aos outros para que se aproximassem, Silver entrou com os garotos no quarto.

— Aprecio imenso a vossa oferta. Podem ser-nos muito úteis. Quando Carbajal ou qualquer dos seus homens aparecer pelo povoado, um de vocês correrá a avisar-nos. De acordo?

Silvério, o porta-voz do grupo, sorriu.

— Obrigado, senhor. — respondeu com calor'. — Seremos os seus olhos e ouvidos.

Os pequenos saíram, muito senhores do seu papel. Tanto Silver como Porfírio sabiam que, de momento, só umas coisas poderiam fazer: esperar. E, consequentemente, abandonaram-se nas respetivas camas, retemperando as forças.

Duas horas depois, umas precipitadas pancadas na porta sobressaltaram-nos. Era Silvério, com a notícia de que quatro homens de Carbajal tinham chegado à povoação. Assim que o garoto voltou a sair, Silver expôs, a Porfírio, o plano de. ataque.

— Levaremos somente os revólveres, e utilizaremos lenços como máscaras.

— Sabia que haveria baile -- sorriu o mexicano, — mas nunca pensei que fosse de máscaras. Aposto em como Carbajal não simpatizará nada com a ideia.

Já próximo do largo central onde se encontravam os quatro bandidos, colocaram os lenços e separaram-se, indo Porfírio por uma outra rua que desembocava no lado oposto da praça.

Os acólitos de Carbajal divertiam-se com unia pobre jovem mexicana, descalça, um humilde vestido de algodão cobrindo o seu magro corpo.

E, de súbito, algo aconteceu que precipitou os acontecimentos. A jovem cuspiu no rosto de um dos homens que a assediavam, recebendo, acto contínuo, tremenda bofetada que a atirou ao chão.

Então, uma segunda mulher apareceu em cena. Saiu da porta da Junta e enfrentou valentemente o grupo de rufias. Vestia uni trajo de montar e, da sua mão direita, pendia um chicote de couro, que, descrevendo caprichosa curva, cruzou o rosto do mexicano.  

O bandido, decididamente em maré de azar, descarregou toda a sua fúria na intrometida, derrubando-a e agredindo-a selvaticamente.

Silver aproximou-se dos bandidos sem que eles dessem pela sua presença. E bastou-lhe pronunciar a palavra "covarde”, para mudar por completo o cariz dos acontecimentos.

Os quatro bandidos voltaram-se simultaneamente, dando de caras com a ameaçadora figura de um mascarado, dó qual só viam os frios e duros olhos verdes.

— Saiam imediatamente da povoação. E digam a esse cão sarnoso de Carbajal para não pôr cá os pés.

— Nada mais, senhor? — sorriu um dos bandidos. —E quem o ordena?

As mãos estavam perigosamente próximas das coronhas das armas. A menor faísca desencadearia tremendo incêndio.

— Gringo Sonora — pronunciou lentamente Silver.

O nome caiu sobre o bandido como uma machadada, fazendo-o recuar um passo. E um breve risinho obrigou os quatro a voltar a cabeça. Outro mascarado, a mão indolentemente pousada sobre a coronha da arma, contemplava-os a poucos metros. Aquele nome, que todos tinham ouvido mais de uma vez, juntamente com o facto de não estar só, desconcertou-os.

Montaram a cavalo e dispuseram-se a levar ao chefe a sinistra mensagem. Segundos depois, o forçado galope das suas montadas perdia-se na distância.

Rindo, Porfírio aproximou-se de Silver. Ambos tiraram os lenços. E, quando se dispunham a trocar algumas impressões sobre o acontecimento, a rapariga do trajo de. montar acercou-se deles. O seu formoso cabelo castanho formava uma auréola em redor do rosto, rosado e juvenil.

— Chamo-me Maria Alvarez de Camporreal e agradeço-vos sinceramente quanto fizeram. O meu rancho é o "Pedra Negra" e vim trazer as dez cabeças de gado que me tocaram pagar corno "contribuição" a Carbajal.

— Porque pagam? — perguntou Silver. -- Não há homens no seu rancho?

— Sou órfã e não há homens na minha família. Tenho alguns vaqueiros, mas receiam Carbajal e os seus bandidos.

Parecia um pouco assustada. Voltou-se para a outra jovem, e disse:

— Vai para casa, Anita. — E quando a mexicana se afastou, prosseguiu: — E a filha de Lopez, o cego que Carbajal matou ontem.

— Bem o sei — retorquiu Silver. — Gostaria que nos acompanhassem ao convento. Desejava fazer-lhe umas perguntas.

Maria, orgulhosa descendente de espanhóis, estava desalentada, mas a energia e o valor brilharam nos seus olhos. Assentiu com a cabeça e seguiu-os lentamente.

terça-feira, 21 de março de 2023

6BL007.04 Os cães raivosos não merecem canções!

... ouvia-se o pungente tanger de uma guitarra

Escoltado por doze mexicanos de aspeto inquietante, Eudosio Carbajal entrou no povoado, ao passo lento do seu cavalo.

O seu pensamento estava muito distante, perdendo-se nos primeiros anos da sua infância. Recordava uma cena que lhe fazia apertar os dentes de raiva.

Numa noite de Natal, os peões do rancho, onde o pai trabalhava, e as suas famílias reuniram-se na enorme casa do rancho, para que o menino Martin, o filho do rancheiro, distribuísse algumas moedas de prata aos sujos e esfarrapados garotos.

Quando chegou diante dele, Eudosio não lhe estendeu a mão. Fez-se um pesado silencio.

Finalmente, o capataz, um homenzarrão chamado Silvério, levantou o chicote e golpeou-o no rosto. O menino Martin lançou a moeda ao chão e continuou a sua distribuição. Depois, ao chegarem à humilde cabana, onde viviam, o pai pediu-lhe a moeda, mas ele negou-lha. S6 tinha dez anos, mas já começava a despontar o seu estranho gênio.

"Quero conservá-la — foi a explicação que deu, — para um dia a fazer engolir ao menino Martin. "Mas o pai parecia não estar pelos ajustes e tirou-lha. Nessa mesma noite, enquanto os pais dormiam, Eudosio roubou a moeda e fugiu. Nunca mais soube dos seus...

As vozes dos seus homens arrancaram-no do mundo de pensamentos em que mergulhara. Tinham estacado à porta do "saloon" e pareciam ansiosos por molhar a garganta. A contribuição que vinha cobrar aos indefesos habitantes ficaria para mais tarde. Agora, na realidade, saber-lhe-ia bem um pouco de tequila.

Entrando no local, exigiu, ao aterrorizado empregado, uma garrafa e foi sentar-se numa mesa. Bebia sempre sozinho. Enchia os copos e despejava-os de um trago.

Uma vez saturado de álcool, poderiam acontecer muitas coisas. No exterior, ouviu-se o pungente tanger de uma guitarra, e. uma voz acompanhando a música.

Que se afastem os cobardes;

venham valentes agora,

o cavalo que se acerca

monta-o Gringo Sonora!

O cego Lopez tinha uma suave voz de baixo, agradável ao ouvido. Mas, sem se conseguir explicar, Eudosio não simpatizava muito com ela. Seria porque cantava a valentia daquele Gringo Sonora? Porque falariam tanto dele?

Contavam-se inúmeras lendas, em que ele aparecia sempre s6, tendo por única companhia os revólveres. Irritava-o de sobremaneira tamanha fama.

Negra é a roupa que veste,

negro o cavalo que monta,

nem rurais nem bandidos

podem com Gringo Sonora!

Carbajal emitiu um selvático rugido. Fez um movimento com a mão, varrendo para o chão quanto se encontrava na mesa. Depois, levantou-se e saiu para a rua.

O cego Lopez ouviu-o chegar e cessou de tocar. Eudosio parou diante dele, e, como louco, começou a agredir o pobre indefeso com o chicote. ~

Havia grupos na rua. Gente do povoado. Mas Carbajal sabia que nada tinha a recear. Ali, era o amo. Arquejando, deu um passo atrás e espetou o dedo na direção do cego.

— Não quero voltar a ouvir mais disparates sobre esse Gringo Sonora — avisou. — Se queres cantar, arranja uma história que fale de mim.

— Os cães raivosos não merecem canções.

O cego Lopez era valente como poucos. Eudosio rangeu os dentes. Sacou o revólver e destravou-o. O seco estalido foi captado pelo infeliz, que se limitou a benzer-se. Mas, antes de ele terminar, Carbajal esvaziou-lhe no corpo o tambor do revólver.

Nem mesmo vendo-o caído a seus pés, se acalmou o ódio que sentia a tudo e a todos. Pontapeou-o ferozmente, levando-o alguns metros à sua frente. Cansado, voltou-se e retrocedeu reentrando no "saloon”. Deitou uma moeda sobre o balcão e tornou a sair.

Os seus homens quase se atropelaram para chegar aos cavalos ao mesmo tempo que ele. Uns segundos depois, aquele grupo de assassinos abandonava o povoado, galopando para o acampamento, erguido a vinte milhas a Oeste.

 

segunda-feira, 20 de março de 2023

6BL007.03 Dois facínoras massacram um frade

Aos olhos do mexicano não escaparam aqueles dois cavaleiros...


A superfície árida, calcinada pelo sol, estendia-se diante deles.

Porfírio Fernandez refreou o cavalo e Silver secundou-o. Aos olhos do mexicano, não escaparam, apesar da grande distância, aqueles dois cavaleiros. Não. Havia uma terceira pessoa, a pé. De vestes compridas, parecia uma mulher.

Dois cavaleiros e uma mulher a pé era um facto deveras insólito.

Sem trocarem qualquer palavra, galoparam para o estranho grupo. Os dois cavaleiros tinham parado e esperavam-nos, imóveis, a vinte passos de distância.

Silver e Porfírio também se detiveram.

Os dois desconhecidos eram mestiços e usavam as características cartucheiras a tiracolo. Os seus rostos tinham um aspeto selvagem, sujo e perigoso. A terceira pessoa, a que ia a pé, não era uma mulher, mas sim um padre franciscano, com as vestes cheias de pó e rasgadas em vários sítios

Levava as mãos atadas atrás das costas e um lenço, com um nó corrediço, passado em torno do pescoço. A outra extremidade da corda ia presa na sela do cavalo de um dos mexicanos.

Durante uns momentos, os dois grupos observaram-se em silêncio. Depois, Colorado Silver, lentamente começou a fazer um cigarro. E só falou, quando expeliu a primeira fumaça.

— Soltem esse homem, cães!

Por única resposta, as mãos dos mexicanos voaram para as armas. Mas quase não tiveram tempo de sacar. Um deles foi projetado da sela ao impacto da bala de Colorado, enquanto o outro se inclinava para o pescoço do cavalo, esporeando selvaticamente o brioso animal, e arrastando, naquela ignóbil fuga, o pobre frade.

Colorado reagiu num segundo. Levantou o braço, apontando cuidadosamente ao fugitivo. Era um tiro difícil, consequência da mobilidade do alvo, mas a precisão do jovem era extraordinária.'

Ao primeiro disparo, o bandido resvalou da sela e chocou violentamente contra o poeirento terreno.

Mas o cavalo, assustado, não se detinha na sua louca corrida. Era forçoso pará-lo. E foi Porfírio quem, num prodigioso salto, se agarrou ao pescoço do animal, obrigando-o a estacar. Silver também desmontou, mesmo antes do seu alazão parar, e correu para o pobre religioso.

Afrouxou--lhe o laço do pescoço e cortou as cordas que lhe sujeitavam os pulsos. Um simples olhar ao fio de sangue que lhe corria pelas comissuras dos lábios e à expressão do seu rosto, fê-lo compreender que era demasiado tarde. Inclinou-se para ele, murmurando:

— Somos amigos. Está salvo. Que aconteceu?

O frade abriu os olhos, mas pareceu não os ver. E, dificilmente, articulou:

— Eudosio... Carbajal... O Barreal...

E foi tudo. Deixou de respirar e os olhos adquiriram um tom vidrado. Era a morte.

— Eudosio Carbajal — ouviu dizer a Porfírio, por cima do seu ombro. — O diabo das planícies, como lhe chamam. Deve estar no Barreal.

Lentamente, Silver levantou- s e voltou-se para Porfírio. Os seus olhos despediam uma luz homicida.

— Quem é Carbajal? — perguntou.

— Um bandido. Começou como revolucionário, levantando-se contra o presidente Huertas, em Chihuahua. Mas as tropas federais derrotaram-no e deixou o patriotismo para se converter no mais sanguinário dos patifes.

Silver, parecendo satisfeito com a resposta, pediu ajuda a Porfírio e colocaram os cadáveres do frade e do bandido, no cavalo deste último. Depois, voltaram para o local onde se encontrava o corpo do outro homem. Silver febrilmente, cortou o laço em vários pedaços e atou os corpos dos dois facínoras ao mesmo cavalo, colocando o pobre religioso no outro animal.

— Pareceu-me — disse, quando terminou, -- que vou deitar uma olhadela ao Barreal.

— Ao Barreal? — os olhos de Porfírio abriram-se desmesuradamente. — Santa Virgem de Guadalupe! Mas isso é o mesmo que correr para a morte!

— E possível. Mas, antes, divertir-me-ei um pouco. Adeus.

Ligou as rédeas dos cavalos que conduziam os corpos e montou no seu. Pôs-se a caminho, ouvindo, pouco depois, Porfírio soltar umas quantas maldições. Voltou a cabeça e parou. O jovem mexicano, com o cavalo a trote, aproximava-se dele.

— Eh, espere! Eu vou consigo. Não perderei, por nada deste mundo, o espetáculo de o ver lutar.

 

domingo, 19 de março de 2023

6BL007.02 México, terra da felicidade plena

Colorado Silver abriu os olhos. Não se moveu do improvisado leito onde passara a noite. Permaneceu, algum tempo, olhando o céu, iluminado já pelos primeiros alvores do dia.

México..., nome que, para ele, significava uma luta constante; pais onde os rurais quase lhe tinham posto a cabeça a prémio. Mas, também, de onde se irradiava uma espécie de magnetismo que o atraia irremediavelmente.

Estava a pouco menos de um dia de sol de caminho. Porque não dar lá uma saltada? Se evitasse os povoados mais concorridos, correria pouco perigo.

Antes que o sol se pusesse, entrava em Barrentos. Deteve-se à porta da cantina, desmontando. Um garoto mexicano, lesto, correu para ele.

— Boas noites, senhor. Procura alojamento para esta noite, senhor? Francisco pode arranjar--lhe um bom quarto, senhor.

— Bem, Francisco, leva o meu cavalo para o estábulo e trata cuidadosamente dele.

Tirou do bolso uma moeda de cinco pesos e lançou-a ao garoto. Depois, lentamente, entrou na cantina. Poucos clientes -- o ideal para Colorado Silver — e o seu gordo proprietário por detrás do balcão.

— Preciso de um quarto amplo e limpo, de preferência com janelas para a rua. Preciso também de um banho muito quente, de uma boa refeição, e de uma moça jovem e bonita para me esfregar as costas. Preferia que se chamasse Rosita.

O dono da cantina abriu a boca para dizer qualquer coisa. Depois. fechou-a. Finalmente, com um ligeiro tique nervoso no canto da boca, retorquiu:

— Sim, senhor. Mandar-lhe-ei a minha filha. Tem só dezassete anos, senhor; mas é uma grande cozinheira. Não se chama Rosita, mas sim Lupita.

Colorado Silver caminhou para as escadas de acesso ao primeiro andar, logo seguido por García, o gordo proprietário. Pararam diante de uma porta que abria para um amplo e bem arejado quarto.

— O banho não demora, senhor — disse Garcia, antes de sair.

O homem do trajo negro acendeu um cigarro e aproximou uma cadeira da janela, sentando-se, com os pés apoiados no peitoril. Olhando o estrelado céu, Silver sentiu-se imensamente feliz. Fumou tranquilamente o cigarro, antes da voz de Garcia interromper o curso dos seus pensamentos:

— O banho, senhor.

Silver voltou a cabeça. Garcia e o filho, o pequeno Francisco, tinham transportado para o quarto uma tina cheia de água a ferver, a julgar pela nuvem de vapor que despedia. Depois, silenciosamente, voltaram a sair.

Preguiçosamente, Silver despiu-se e entrou no banho, sentindo imediatamente os seus benéficos efeitos.

E, de súbito, teve a desagradável sensação de ser observado. Um rápido olhar à porta revelou a presença de alguém que ainda não conhecia. Uma linda jovem de compridas tranças negras e alvos dentes. Pela escova que trazia na mão, Silver deduziu que estava na presença de Lupita.

Inclinando-se para diante, de modo á descansar o queixo nas costas da mão que, por sua vez, se apoiava na beira da tina, disse:

— Esfrega-me as costas. Muito devagar, suavemente.

Fechando os olhos, sentiu-se transportado a um mundo maravilhoso, do qual só foi arrancado pelas dores que sentiu no estômago, recordando-lhe que havia muito tempo nada ingeria.

— Vai acabar de fazer o jantar, Lupita. -- E, quando a linda jovem ia já a abandonar o quarto, perguntou: — Quem está a tocar guitarra na rua?

— E Porfírio, senhor. Porfírio Fernandez, o meu noivo, senhor.

Silver acenou a cabeça compreensivamente.

— Diz-lhe para vir até ao meu quarto. Estão os dois convidados para jantar comigo.

Quando, alguns minutos depois, já estava vestido, umas suaves pancadas na porta avisaram-no da chegada de alguém. Abriu, deparando com um jovem mexicano, sorridente, o largo chapéu na mão. Todo o seu aspeto era de grande asseio, facto que lhe proporcionou imediatamente a amizade de Colorado Silver.

Simpatizava com aquela espécie de homens. Usavam revólver à cintura, muito baixos, e sorriam ao ouvir uma velha canção de amor, ou quando as balas lhe assobiavam aos ouvidos.

— Entre, Porfírio. — Colorado Silver estendeu-lhe a mão. —Espero que me dê a honra de jantar comigo.

— A honra será minha, senhor. Nem todos os dias se recebe um convite de "Gringo Sonora".

— Vejo que me conhece.

— A sua fama precede-o, senhor. A estas horas, ninguém em Barrentos ignora a sua presença. Martin Garcia tem a cantina cheia. Venderá hoje mais bebidas do que nas festas de São Pedro, nosso patrono. Porque o faz, senhor?

— O quê?

— Veste sempre de negro, com botões de prata e esporas de oiro. Os seus cavalos também são sempre negros. Poderia vestir de outro modo e montar cavalos diferentes, que percorreria todo o México sem ser incomodado. E certo que entra e sai deste país quando muito bem lhe apetece. Mas sempre com um pelotão de rurais pegado aos calcanhares. Deveria tomar mais precauções, senhor.

— Outro trajo e outro cavalo seria como ocultar o meu nome. E, estão, a vida converter-se--ia em algo muito aborrecido.

O jantar foi agradável. Lupita mostrou-se encantadora. Porfírio, apesar da sua extrema juventude, era um ótimo companheiro.

Mais tarde, já deitado e fumando o seu último cigarro, Silver sorriu. O México. Um país onde o tempo nada significa, onde o perigo espreita por detrás de cada árvore, de cada rocha. Um lugar onde toda a gente sorri muito, mas fala pouco.

Sentiu-se estranhamente feliz. Da rua, chegava-lhe o som da guitarra de Porfírio, numa serenata à sua amada. O ar estava cheio do perfume das flores, num aroma picante e sedativo, ao mesmo tempo.

"Gringo Sonora" apagou o cigarro e fechou os olhos. México. Ali, seu coração conhecia a plenitude da felicidade.