Durante uma semana amadureceu o seu plano. Quando o tinha perfeitamente
arquitetado, pegou no cavalo e na espingarda. Estrela Matutina, com a ansiedade
estampada no rosto, seguia em silêncio os preparativos, sem se atrever a fazer
perguntas, receando desencadear a cólera do marido.
- Coração Valente vai partir. Estará ausente três Luas em Big
Belt. Estrela Matutina espera-o na sua tenda com o filho enfermo, mesmo que
tarde a regressar.
A mulher não respondeu uma palavra e Bill fez andar o
cavalo. Afastou-se do povoado «shoshone» sem voltar a cabeça. Estava certo de
que Estrela Matutina o seguia com o olhar e teria dado metade da vida para
conhecer os pensamentos que, naquele momento, lhe assaltavam o cérebro.
Fingiu seguir o caminho indicado a sua mulher e durante dois
dias cavalgou em direção a Noroeste. Depois, voltou e foi ocultar-se na lomba
de uma montanha de onde se dominava o amplo de Marias, caminho que havia de
percorrer quem fosse a forte Benton à povoação de «shoshones».
Se as suas suspeitas tinham fundamento, Estrela Matutina
arranjaria maneira de mandar recado a Kit Hurricane assim que ele voltasse
costas, e Colton voltaria com toda a tranquilidade, sabendo que o marido estava
longe. Mas Coração Valente não tinha pressa e estava preparado para esperar o
tempo que fosse preciso.
Durante dez dias, esperou inutilmente e os seus receios
começavam a desvanecer-se. Era impossível que Estrela Matutina não lhe
guardasse a devida fidelidade, e menos ainda que o atraiçoasse o seu melhor
amigo, esse Kit que o salvou na coberta do »Queen» quando Bernard esteve quase
a varar-lhe o coração com uma facada.
«Mais vinte e quatro horas e voltarei à tenda para confessar
a minha mulher a torpeza das minhas suspeitas e pedir-lhe perdão por ter
duvidado dela».
Mas, ao entardecer desse mesmo dia, aconteceu o que esperava
e temia. Vindo de Fort Benton e em direção à aldeia indígena, viu um homem que
seguia a cavalo, sem grande pressa, como se não quisesse chegar antes que as
sombras da noite cobrissem a terra. Seguiu-o longo tempo com o olhar e
reconheceu-o a um quarto de milha de distância. Era Kit Hurricane Colton!
O primeiro impulso foi correr em sua perseguição e
alcança-lo antes de chegar à tenda, cuspir-lhe todo o seu desprezo e pregar-lhe
um tiro. Depois, pensou melhor e mudou de ideias. Era preferível deixá-lo
entrar na tenda, falar com a mulher um bocado e surpreende-los quando não lhes
fosse possível negar. Dominando os nervos, deixou-o seguir. Esperou até que se
perdesse de vista para então pegar no cavalo e ir no seu encalço.
Era já noite fechada quando Kit Hurricane Colton chegou ao
acampamento «shoshone». Passou sem parar diante da sentinela que o conhecia e
não lhe levantava nenhum obstáculo e dirigiu-se à tenda de Coração Valente, que
ficava no estremo da aldeia. Desmontou e aproximou-se lentamente.
Viu luz lá dentro mas não se atreveu a entrar. Ninguém devia
transpor o umbral de nenhuma tenda, especialmente se havia mulheres lá dentro,
sem a licença ou a companhia do chefe da família. Aproximou-se da tenda e, em
voz alta, para que pudessem ouvi-lo perfeitamente do interior, chamou:
- Bill, vem cá depressa. Sou Kid Colton e trago-te uma
carta.
Não recebeu a menor resposta. Vislumbrou a sombra da mulher
do outro lado da pele que cobria a entrada e ouviu os soluços da jovem índia.
Afastando a pele assomou a cabeça, perguntando:
- Coração Valente está, Estrela Matutina?
- Não – respondeu a mulher. – Coração Valente partiu há doze
Sóis e ainda demorará várias Luas a regressar.
Estava magra, com os olhos inflamados pelo pranto e marcas
de um terrível sofrimento estampado no rosto. Kit teve muita pena. Doíam-lhe,
como se fossem suas, as desventuras da pobre rapariga. Compreendeu o que se
estava passando e sentiu um grande desejo de consola-la, aliviar-lhe as
torturas, quanto mais não fosse com uma frase amável.
- Em Fort Bento encontrei uma carta para Coração Valente –
disse, entrando na tenda e pousando a espingarda para tirar um papel do bolso.
– Há anos que não recebia nenhuma e calculei que o alegraria notícias da mãe.
Por isso vim.
Estrela Matutina olhou com verdadeiro terror a missiva que
Kit lhe mostrava. Durante os anos que vivia a seu lado, Bill só tinha recebido
uma carta da mãe e não podia esquecer o efeito que lhe causou. Durante muitos
dias esteve preocupado, silencioso, mal-humorado, sem fazer o mínimo caso da
mulher, com o pensamento perdido nem ela sabia em que remotas recordações.
A carta era da família, pedindo-lhe que voltasse lá para
esse confim do mundo, no outro lado da interminável planície. Até então,
Estrela Matutina tinha confiado em que a influência que exercia sobre o marido era
mais forte do que a voz do sangue. Mas quando o esposo a desprezava e nem
sequer queria vê-la…
- Agora conseguirão separá-lo de Estrela Matutina – soluçou,
desesperada.
- Não tenhas medo rapariga. – tentou animar Kit. – Bill
ama-te, não irá. Só pensa e fala em ti constantemente. Não suportaria a vida
longe da mulher que adora.
- Isso era antes… antes de nascer o filho embruxado. Agora…
Os soluços sacudiam-lhe o corpo como descargas elétricas,
impedindo-a de concluir a frase.
Kit compreendia os seus sentimentos. A pobre rapariga tinha
medo e não lhe faltavam motivos. Nos últimos tempos, Bill tinha sofrido uma
transformação radical. Já não era o homem apaixonado pela mulher, tratando-a
sempre com carinhosa deferência.
- Coração Valente irá para os seus – continuou a mulher,
chorando.- Deixará para sempre Estrela Matutina.
Num movimento instintivo, sem saber exatamente o que fazia,
comovido com aquele desespero, Colton estendeu os braços para os colocar nos
ombros da rapariga. Reclinada no seu peito, a mulher do amigo deixou correr
livremente o pranto. Hurricane murmurou, entristecido:
- Pobre pequena! Pobre infeliz Estrela Matutina!
Bill tinha seguido de longe o seu antigo companheiro, viu-o
chegar À aldeia, passar por entre as sentinelas e dirigir-se À sua tenda. Foi
atrás dele, tendo o cuidado de passar despercebido para melhor surpreender os
traidores. Desmontou, iludiu os vigilantes e aproximou-se silencioso.
Parado diante da pele que cobria a entrada da tenda, escutou
com atenção. Kit estava lá dentro. Estrela Matutina falava com o seu amigo. A
mulher soluçava e o homem tentava animá-la em tom carinhoso e cordial. Não
podia entender as palavras, mas não lhe ficavam grandes dúvidas a respeito do
seu significado. Afastando a pele uns centímetros olhou para dentro. O sangue
ardeu-lhe nas veias ante o espetáculo que os seus olhos viam. Estrela Matutina
apareceu-lhe junto de Colton com a cabeça reclinada no peito do amigo desleal.
Kit dizia-lhe qualquer coisa em voz baixa, enquanto as suas mãos acariciavam o
cabelo da mulher.
Incapaz de dominar-se, afastou de repelão a pele que cobria
a tenda e entrou, de um salto. Nem Estrela Matutina nem Companheiro Leal o
viram no primeiro momento, nem sequer ouviram o ruído da sua respiração
ofegante, convertida num rugido de cólera ante a atitude de ambos.
- Traidores! – gritou, fora de si. – Era tudo verdade…
Os seus gritos foram como chicotadas que fustigaram o rosto
do amigo e da mulher. Ambos se voltaram, empalidecendo ao ver a atitude de Bill
Kenton e afastaram-se instintivamente. Aos olhos do recém-chegado a sua atitude
equivalia a uma confissão de culpa.
Sentiu como se algo muito grande e pesado lhe caísse em
cima, no seu íntimo derrubaram-se toda
as ilusões, uma nuvem de sangue velou-lhe os olhos não o deixando ver. Teve
desejos de matar e empunhou a espingarda.
- Sê bem vindo, Bill – conseguiu Kit articular ao cabo de
segundos. – Vim trazer-te uma carta…
Tinha um papel na mão, mas Bill não o podia acreditar. Era
um pretexto para justificar a visita, caso fosse surpreendido. Tinha-o visto
abraçado a sua mulher, murmurando-lhe ao ouvido palavras de amor. E tinha sido
o seu melhor amigo, o Companheiro Leal, como lhe chamavam os índios, para maior
escárnio! Acabou por meter a espingarda à cara.
- Vou matar-te como a um cão, canalha.
Kit fitou-o nos olhos; no seu olhar havia assombro,
angústia, dor, mas não medo. Quis falar, mas as palavras não lhe saíram dos
lábios. Não pretendeu defender-se. Talvez – pelo menos Bill assim o pensou,
mais tarde – talvez se considerasse culpado e merecedor do castigo. Num gesto
desesperado abriu os braços, como a oferecer o coração ao chumbo que havia de
lavar com sangue a sua má acção.
- Não, não dispares… - gritou Estrela Matutina, aterrada,
saindo da sua imobilidade e tentando meter-se entre os dois homens.
Chegou tarde. Bill apertou o gatilho da espingarda. A tenda
encheu-se com o estampido do tiro e o cheiro acre da pólvora. Colton recebeu
uma violenta pancada no peito e teve a sensação de que um chumbo ardente
esvaziava o ar dos seus pulmões. Dobraram-se-lhe as pernas e caíu de costas.
Quis dizer qualquer coisa, mas uma golfada de sangue cortou-lhe a palavra.
- Deixa-o, cadela…
Desesperada, morta de angústia e terror, Estrela Matutina
quis correr em auxílio de Kit, ajoelhando a seu lado. Bill não lho consentiu,
dando-lhe um empurrão que a fez rodar no solo. A mulher chorou, desesperada.
Era a primeira vez que Coração Valente lhe batia. Do chão, ela chamou-o pelo
nome que lhe davam os seus amigos brancos:
- Bill… Bill…
Sem fazer caso, Coração Valente pegou numas peles, disposto
a ir-se embora. Viu no chão a carta que Hurricane tinha feito menção de lhe
entregar e guardou-a. Quando quis sair, a mulher barrou-lhe o caminho
suplicando:
- Não vás, nada do que supões é verdade!
Bill tornou a afastá-la com um repelão. Com desprezo,
cuspiu-lhe toda a sua raiva:
- Cala-te. Devia matar-te também, que é esse o castigo da
traição. Para ti talvez seja pior viver e eu não sei matar mulheres.
Atraídos pelo tiro, à entrada da tenda apareceram vários
guerreiros que contemplavam impassíveis a cena. Cavalo Selvagem e Águia Negra
estavam também graves e silenciosos. Afastaram-se para os lados para deixar
sair Bill. Ninguém lhe disse uma palavra, tinha cumprido o seu dever. Kenton
afastou-se sem voltar a cabeça. No chão, meio morto, Kit chafurdava no seu
próprio sangue. Estrela Matutina correu, desolada, para a porta da tenda. Viu
Coração Valente afastar-se. Desesperada, soluçou:
- Vai para sempre! Agora, não voltará!
(Coleção Pólvora, nº 46)
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