terça-feira, 3 de dezembro de 2013

PAS176. A honra por três peles de urso

Foi um golpe terrível para Bill. Acordado e a dormir, tinha sonhado muitas vezes com o seu filho tal como ele, com o seu vigor, a sua força, o seu arrojo. Melhor ainda, porque herdaria parte da beleza da sua mãe. E a pobre criança não tinha nenhum daqueles dons. Se vivesse, e não tivesse a sorte de morrer, seria débil, feio, disforme, incapaz de brincar com as outras crianças primeiro e de brigar com os homens depois. Não podia fazer grandes marchas, nadar nos rios, escalar montanhas, carregar um antílope aos ombros nem impor-se aos inimigos.
O filho de Coração Valente em nada se parecia com seu pai. Seria uma carga para a tribo, uma irrisão para os guerreiros e um homem desprezível, com o qual nenhuma mulher quereria casar. Significava, pura e simplesmente, o reverso da medalha das suas ilusões. Seria preferível que não tivesse chegado a nascer. A sua morte não seria um bem para todos? Supunha que sim, mas o instinto paternal rebelava-se e desejava que continuasse a viver.
Um dia, Bill foi à caça. Acompanharam-no vários chefes da tribo entre os quais o próprio Águia Negra, a quem anos atrás tinha salvo a vida. A caçada revê momentos emocionantes, mas Coração Valente parecia alheio a quanto o rodeava, mergulhado em negros pensamentos. Até passaram várias peças ao alcance da sua espingarda sem que ele as visse.
Quando, a meio da tarde, empreenderam o regresso para o povoado, Águia Negra e Cavalo Selvagem, um velho guerreiro «shoshone», a quem todos admiravam pela sua profunda sabedoria, colocaram as montadas a par da de Bill. Durante uma hora, os três guardaram completo silêncio. Por fim, Cavalo Selvagem falou em tom solene e intencional:
- Coração Valente sofre muito. Tendo embora os olhos secos, nunca deixa de chorar por dentro.
- Sim. Coração Valente chora todas as horas – admitiu Bill com mágoa. – Chora o filho enfermo, tão diferente da criança forte que esperava.
- Cavalo Selvagem compartilha da dor do seu irmão Coração Valente – disse o seu interlocutor. – Sabes se o Companheiro Leal chora?


- Companheiro Leal é também meu irmão – respondeu Bill ligeiramente surpreendido. – Chora com a dor de Coração Valente.
Houve um momento de silêncio. Depois, deixando cair lentamente as palavras, o outro disse:
- Companheiro Leal deve chorar a sua própria dor. É ele quem deve, quem tem de chorar.
- Só Companheiro Leal deve chorar –interveio Águia Negra resoluto.
Bill ergueu a cabeça para os olhar boquiaberto e surpreendido. Nenhum dos seus interlocutores susteve o olhar. Na realidade, ambos pareciam interessados em olhar para as montanhas próximas. Irritado, inquiriu:
- Que querem insinuar os meus irmãos Cavalo Selvagem e Águia Negra?
 A resposta demorou. Quando, por fim, saiu do lábios d Cavalo Selvagem, não foi concreta.
- O lobo negro engendra lobos negros – disse – o zorro prateado… zorros prateados. Mas nunca o lobo negro é pai de zorro prateado nem o zorro prateado do lobo negro.
Bill compreendeu perfeitamente. O seu interlocutor aludia aos olhos verdes do menino, tão parecidos com os de Kit Hurricane Colton. As palavras cravaram-se como flechas no coração do atribulado pai. Com um esforço, tentou afastar as suspeitas que lhe mordiam o peito.
- Isso são indignas intrigas de mulheres – disse, irritado.
Uma expressão de tristeza e piedade contraiu os lábios de Cavalo Selvagem, que respondeu após uma pausa:
- Os bravos falam também, mas da sua boca deve sair a verdade. Não viu o seu filho, Coração Valente? Sabe porque está embruxado? Seu irmão lho dirá; quando uma mulher peca, o seu pecado recai sobre os filhos. O marido tem de pô-la fora da sua tenda.
- Águia Negra – disse o outro índio – teve uma mulher assim. Cortou-lhe o cabelo e o nariz e pô-la fora da sua tenda. O cão que a amava em segredo teve de entregar-me três peles de urso. Águia Negra castigou os dois.
Bill estremeceu ao ouvi-los. Os peles-vermelhas indicavam-lhe o caminho que devia seguir. Mas podia acreditar no que insinuavam? E mesmo que acreditasse, seria capaz de cortar o nariz a Estrela Matutina, destroçando uma beleza que tinha amado tanto? Por outro lado, ficaria castigada a traição do amigo com a entrega de umas peles de urso»? Não, um «shoshone» podia pensar assim, mas William Kenton não era um «shoshone», embora vivesse com eles havia anos.
(Coleção Pólvora, nº 46)

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