Foi um golpe terrível para Bill. Acordado e a dormir, tinha
sonhado muitas vezes com o seu filho tal como ele, com o seu vigor, a sua
força, o seu arrojo. Melhor ainda, porque herdaria parte da beleza da sua mãe.
E a pobre criança não tinha nenhum daqueles dons. Se vivesse, e não tivesse a
sorte de morrer, seria débil, feio, disforme, incapaz de brincar com as outras
crianças primeiro e de brigar com os homens depois. Não podia fazer grandes
marchas, nadar nos rios, escalar montanhas, carregar um antílope aos ombros nem
impor-se aos inimigos.
O filho de Coração Valente em nada se parecia com seu pai.
Seria uma carga para a tribo, uma irrisão para os guerreiros e um homem
desprezível, com o qual nenhuma mulher quereria casar. Significava, pura e
simplesmente, o reverso da medalha das suas ilusões. Seria preferível que não
tivesse chegado a nascer. A sua morte não seria um bem para todos? Supunha que
sim, mas o instinto paternal rebelava-se e desejava que continuasse a viver.
Um dia, Bill foi à caça. Acompanharam-no vários chefes da
tribo entre os quais o próprio Águia Negra, a quem anos atrás tinha salvo a
vida. A caçada revê momentos emocionantes, mas Coração Valente parecia alheio a
quanto o rodeava, mergulhado em negros pensamentos. Até passaram várias peças
ao alcance da sua espingarda sem que ele as visse.
Quando, a meio da tarde, empreenderam o regresso para o
povoado, Águia Negra e Cavalo Selvagem, um velho guerreiro «shoshone», a quem
todos admiravam pela sua profunda sabedoria, colocaram as montadas a par da de
Bill. Durante uma hora, os três guardaram completo silêncio. Por fim, Cavalo
Selvagem falou em tom solene e intencional:
- Coração Valente sofre muito. Tendo embora os olhos secos,
nunca deixa de chorar por dentro.
- Sim. Coração Valente chora todas as horas – admitiu Bill
com mágoa. – Chora o filho enfermo, tão diferente da criança forte que
esperava.
- Cavalo Selvagem compartilha da dor do seu irmão Coração
Valente – disse o seu interlocutor. – Sabes se o Companheiro Leal chora?
- Companheiro Leal é também meu irmão – respondeu Bill
ligeiramente surpreendido. – Chora com a dor de Coração Valente.
Houve um momento de silêncio. Depois, deixando cair
lentamente as palavras, o outro disse:
- Companheiro Leal deve chorar a sua própria dor. É ele quem
deve, quem tem de chorar.
- Só Companheiro Leal deve chorar –interveio Águia Negra
resoluto.
Bill ergueu a cabeça para os olhar boquiaberto e
surpreendido. Nenhum dos seus interlocutores susteve o olhar. Na realidade,
ambos pareciam interessados em olhar para as montanhas próximas. Irritado,
inquiriu:
- Que querem insinuar os meus irmãos Cavalo Selvagem e Águia
Negra?
A resposta demorou.
Quando, por fim, saiu do lábios d Cavalo Selvagem, não foi concreta.
- O lobo negro engendra lobos negros – disse – o zorro
prateado… zorros prateados. Mas nunca o lobo negro é pai de zorro prateado nem
o zorro prateado do lobo negro.
Bill compreendeu perfeitamente. O seu interlocutor aludia
aos olhos verdes do menino, tão parecidos com os de Kit Hurricane Colton. As
palavras cravaram-se como flechas no coração do atribulado pai. Com um esforço,
tentou afastar as suspeitas que lhe mordiam o peito.
- Isso são indignas intrigas de mulheres – disse, irritado.
Uma expressão de tristeza e piedade contraiu os lábios de
Cavalo Selvagem, que respondeu após uma pausa:
- Os bravos falam também, mas da sua boca deve sair a
verdade. Não viu o seu filho, Coração Valente? Sabe porque está embruxado? Seu
irmão lho dirá; quando uma mulher peca, o seu pecado recai sobre os filhos. O
marido tem de pô-la fora da sua tenda.
- Águia Negra – disse o outro índio – teve uma mulher assim.
Cortou-lhe o cabelo e o nariz e pô-la fora da sua tenda. O cão que a amava em
segredo teve de entregar-me três peles de urso. Águia Negra castigou os dois.
Bill estremeceu ao ouvi-los. Os peles-vermelhas indicavam-lhe
o caminho que devia seguir. Mas podia acreditar no que insinuavam? E mesmo que
acreditasse, seria capaz de cortar o nariz a Estrela Matutina, destroçando uma
beleza que tinha amado tanto? Por outro lado, ficaria castigada a traição do
amigo com a entrega de umas peles de urso»? Não, um «shoshone» podia pensar
assim, mas William Kenton não era um «shoshone», embora vivesse com eles havia
anos.
(Coleção Pólvora, nº 46)
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