Max Granwley havia ultrapassado já o meio século. Tinha o cabelo branco, o nariz semelhante a um gancho, os olhos escuros e penetrantes e um corpo alto e nervoso. Havia ouvido, em silêncio, o relato do seu capataz sobre a captura do jovem que permanecia em frente do ganadeiro com o rosto impassível.
— Hum! — murmurou Granwley meneando a cabeça. — Soa-me muito estranha essa história da medalha.
— Não tenho outra explicação para lhe dar — disse de má vontade e com o olhar fixo no ganadeiro. — E repito-lhe o que disse ao seu capataz: voltarei ao regato para procurar a minha medalha. E uma recordação valiosíssima para mim.
As feições enérgicas do ganadeiro endureceram.
— Se o fizer não respondo pela sua cabeça — disse com firmeza. — Dei ordem aos meus homens para dispararem antes de perguntarem. Não estou disposto a suportar mais roubos de gado.
Brian acabou por encolher os ombros. Estava a ver que, sob a fronte daquele homem, as ideias aderiam com a mesma força com que os líquenes aderem às pedras. Ia custar-lhe bastante convencê-lo de que nunca pensara roubar-lhe nenhuma rês.
O ruído dos cascos de um cavalo que martelavam ritmicamente o solo da vereda fizeram com que o ganadeiro e o seu capataz se desinteressassem do rapaz durante alguns segundos olhando por cima da cabeça deste na direção da cerca.
— É Chill Talbott — exclamou o capataz em tom baixo. — O senhor está resolvido a vender-lhe as vinte reses?
— Se ele subir um pouco mais o preço, são dele. Ontem à noite não chegámos a acordo. Se volta é porque pensa fazer-me uma contraproposta. Talbott não é tolo e sabe que faz um bom negócio comprando-me essas reses.
Brian viu desmontar junto do alpendre um homem de estatura média. Aparentava uns quarenta anos. As suas feições, embora angulosas, eram corretas. Estava cuidadosamente barbeado e as suas roupas denunciavam a pessoa que desfruta de uma posição económica desafogada. O que não lhe agradou foi a expressão segura e petulante dos seu solhos cinzentos.
O silêncio momentâneo que se fez à chegada do negociante de gado foi quebrado por este com um tom de surpresa:
— Que se passa, Granwley?
Havia estranhado a posição tensa, desconfiada dos empregados do rancho. A imobilidade do ganadeiro e do seu capataz, a presença daquele forasteiro dentro do semicírculo formado pelos vaqueiros do <Círculo M. G.». Granwley explicou-lhe em poucas palavras o que havia acontecido. Depois voltou-se para o jovem com o rosto tenso, ordenando-lhe secamente:
— Monte o seu cavalo e saia daqui, mas não se esqueça do meu aviso.
— Nem o senhor do meu — respondeu Brian com firmeza. — Não sou nenhum bandido e o senhor não é o dono do outro lado do regato.
Girou bruscamente sobre os tacões e caminhou com passo tranquilo para o seu cavalo, amarrado junto dos outros a um madeiro horizontal. Se tivesse voltado a cabeça no momento de transpor a cerca do rancho, teria visto cravados nas suas costas nove pares de olhos.
Apertou ligeiramente as ilhargas do animal que se pôs a trote. Tomou a direção da vereda.
Bay Sping era uma povoação semelhante a tantas centenas de povoações que se erguiam no vasto e selvagem Oeste de 1866. Casas de adobe, pequenas e chatas, com telhados brancos. Havia uma só rua com altos passeios de madeira. E havia também o pó espesso, compacto, na calçada, formando, naquela altura, caprichosos redemoinhos por causa da aragem que vinha do Norte.
Dos dois lados da rua Maior erguiam-se os «saloons». o Banco, a barbearia, o armazém geral, a correaria e os dois hotéis. Tudo isto foi o que os olhos de Brian Boyds viram ao entrar na rua poeirenta da pequena cidade de criadores de gado. E nada disto o admirou pela simples razão de ser um espetáculo muito conhecido dele.
Ao passar em frente do «saloon» «A Estrela» parou o cavalo. Decidira tomar uma bebida. Do estabelecimento vinha uma algazarra tão estrondosa que o fez pensar se não estariam a celebrar algum acontecimento.
Não passou da entrada. E não por sua vontade, precisamente, mas porque os quatro homens que se encontravam junto das portas de vaivém lhe impediam a passagem para o balcão.
As gargalhadas, os gritos, atroavam os ares. Em vez de um estabelecimento de bebidas parecia a antecâmara de um manicómio. Graças à sua elevada estatura não teve necessidade de se erguer sobre os bicos dos pés para se informar do que acontecia.
O espetáculo que presenciou deixou-o perplexo. Viu um homem de uns trinta anos apoiar-se sobre o balcão. Tinha o rosto enrugado e envelhecido onde os olhos brilhavam, mas sem fogo, dando a impressão de uma pessoa fisicamente acabada. Alinhados diante desse indivíduo no longo balcão contou nove copos de uísque. Os outros três que completavam a dúzia estavam vazios.
— Vamos, cão, bebe o quarto copo.
Brian desviou a cabeça para olhar para o sujeito que acabava de falar. Era um tipo alto, ruivo, de má catadura, forte como um roble. Meia dúzia de tipos de aspeto semelhante rodeavam-no com o regozijo estampado nos rostos.
Foi então que Brian notou que o homem, que se apoiava no balcão, era coxo. Faltava-lhe a perna direita, cortada acima do joelho. A muleta descansava a seu lado, contra o balcão.
Brian, ao observar o olhar ansioso que o inválido lançava aos copos e ao notar como passava a língua pelos lábios ante a visão do uísque, sentiu pena daquele desgraçado. Compreendeu que estava perante um dipsómano, de um homem vencido pela bebida, de um ser disposto às concessões mais abjetas, desde que não o privassem do seu prazer favorito. Sem necessidade de que lhe explicassem o que sucedia, a verdade surgiu aos seus olhos: aqueles energúmenos divertiam-se à custa daquele desgraçado.
A mão ávida e trémula do coxo estendeu-se para o quarto copo. Os seus dedos, porém, não chegaram a tocar o vidro. Exatamente no momento em que quase roçavam o copo soou um estampido e saltaram pedaços de vidro em todas as direções, entornando-se a bebida sobre o balcão.
As gargalhadas das duas dúzias de indivíduos que enchiam o estabelecimento fizeram estremecer as paredes quando aqueles viram a careta de desencanto que se desenhara no rosto do inválido ao ver perder-se o uísque que tanto ansiava beber.
— Julgavas que ias beber os outros copos sem os ganhares honradamente? — cacarejou o ruivo, guardando no coldre o «Colt» fumegante. — Um sulista empestado como tu tem de merecer o que bebe. Não era assim que vocês tratavam os negros?
Brian não conseguiu evitar um sentimento de repulsa por aquele tipo. Pareceu-lhe mesquinho que ano e meio depois de terminar a guerra continuasse latente o ódio e o desejo de vingança entre federais e confederados. E era pior ainda que esse ódio se cevasse num pobre mutilado.
Nos olhos azuis e turvos do coxo brilhava uma angústia incontível. O queixo tremia-lhe nitidamente. Dava a impressão de que tudo quanto o rodeava carecia de vivência para ele, que o seu mundo de reduzia aos oito copos de uísque que se alinhavam diante dos seus olhos.
Voltou a estender o braço para o quinto copo com as pupilas dilatadas. Oferecia um triste espetáculo com o tremor convulso do queixo, o pescoço estendido avidamente para os copos e a maçã de Adão, proeminente, subindo e descendo de uma maneira convulsiva.
Pela segunda vez o «Colt» do ruivo «ladrou». E «ladrou» no momento exato em que as polpas dos dedos do inválido se preparavam para se cerrarem sobre o copo. O vidro voou pelos ares em mil pedaços e a bebida salpicou a boca contraída do coxo. Sonoras, estridentes, as gargalhadas voltaram a ressoar na atmosfera viciada, numa algazarra espantosa. Acima delas, voltou a ouvir-se a voz grossa, agressiva, do ruivo, ao guardar o «45».
— Keener, não sejas parvo. Deixar-te-emos beber esses copos se os mereceres.
O rosto anguloso, destruído, do jovem voltou-se pateticamente para o vaqueiro. Um desespero profundo brilhava nos seus olhos turvos. Pestanejou, as pupilas cheias de uma cólera repentina:
— Gloster, maldito seja você. Se continua a partir os copos parto-lhe a cabeça de um golpe.
Estendeu a mão para apanhar a muleta. Por esta razão e também pela quantidade de álcool que já havia ingerido perdeu o equilíbrio e esteve prestes a cair de bruços, o que provocou novas gargalhadas. Um dos que rodeavam o ruivo imitou este tirando o revólver e disparando quase sem apontar sobre um dos copos, fazendo-o saltar em mil pedaços.
— Não partam mais copos — quase soluçou. — Farei o que quiserem, mas não partam mais copos.
Havia posto a muleta sob o sovaco e, afastando-se do balcão deu alguns passos na direção do ruivo e dos seus amigos. Nos seus olhos lia-se uma súplica desgarrada. — Que... que devo fazer, Gloster? — disse com voz pastosa.
O ruivo sorriu cinicamente. Depois piscou um olho aos seus amigos. Acto contínuo tirou do bolso várias moedas.
— Bem, Keener — disse, enquanto brincava com as moedas na palma da mão. — Se quiseres beber esses copos e os que faltam para completar a dúzia tens de apanhar com os dentes estas três moedas... dali.
Voltou a cabeça para um canto do estabelecimento e ficou a olhar fixamente para uma pequena caixa de madeira, quase cheia de serradura. Teria uns vinte centímetros de comprimento por cinco de altura. Não era a única que existia no estabelecimento. Várias outras se encontravam colocadas estrategicamente aos cantos. Eram escarradores rústicos para onde se atiravam as pontas de cigarros... e os escarros.
Gloster avançou para o escarrador e deixou ali cair, lentamente, as três moedas de prata. Depois olhou, ironicamente, para o coxo.
— Vamos, Keener, só terá de as apanhar com a boca. Fácil, homem, muito fácil.
O riso cessou como por encanto. Em algumas caras viram-se caretas de repugnância. Noutras aumentou o regozijo. Pensaram que aquele diabo do Pat Gloster tinha, por vezes, ideias luminosas.
— Vamos, Keener, não hesites — gritaram vários, rindo. — Demonstra a Gloster que os confederados sabem ganhar as batalhas.
Brian Boyds continuava imóvel junto da porta. Sentiu uma vibração curiosa na coluna vertebral ao ouvir a proposta indigna do ruivo interrogando-se sobre se a degradação do inválido chegaria ao extremo de aceitar o seu infamante convite. Viu que o coxo retrocedia alguns passos com os dentes cerrados..
Isto fê-lo pensar que o rapaz tinha ainda uns restos de orgulho e que se revoltaria contra o tratamento degradante. Gloster, ao ver o gesto de hesitação do inválido, voltou-se para o taberneiro que estava encostado a um canto do balcão:
— Lloyd, põe mais meia dúzia de copos para o tenente Keener. A dúzia parece-lhe pouco pelo trabalho que lhe propus.
O taberneiro cumpriu a ordem em silêncio. O ruído da bebida a cair nos copos fez o coxo levantar a cabeça e cravar os olhos,, como que hipnotizado, na longa fileira de copos colocados sobre o balcão. Avançou, balançando-se, com a língua de fora como os cães quando se encontram sedentos e farejam água. Gloster apressou-o, impaciente:
— Se, dentro de um minuto, não te decides vai-te embora e não esperes que te convidemos mais.
Keener passou os dedos pela bebida que se derramara antes sobre o balcão e começou a chupá-los com a mesma voluptuosidade com que uma criança saboreia um rebuçado. As gargalhadas, então, foram atroadoras.
Ao voltar a sentir o sabor do uísque nos lábios, Paul Keener perdeu o resto do pudor, do orgulho que lhe restava. Era um pobre diabo dominado totalmente pelo álcool. Voltou-se com ah pupilas dilatadas para o ruivo.
— Apanharei essas moedas com a boca — pronunciou com voz rouca.
No «saloon» produziu-se um silêncio repentino. Até os menos sensíveis ficaram com os rostos tensos ao verem o inválido dar vários balanços na direção do escarrador.
— Não, assim não, Keener — exclamou o ruivo com um sorriso cínico. — Deixa a muleta sobre esta cadeira. Deves aproximar-te do escarrador valendo-te das mãos e da tua única perna. As moedas deves tirá-las com os dentes.
Paul Keener, ante a espectativa geral, encostou a muleta às costas da cadeira. O silêncio que se fez no «saloon» foi tão espesso que se podia cortar à faca.
— Hum! — murmurou Granwley meneando a cabeça. — Soa-me muito estranha essa história da medalha.
— Não tenho outra explicação para lhe dar — disse de má vontade e com o olhar fixo no ganadeiro. — E repito-lhe o que disse ao seu capataz: voltarei ao regato para procurar a minha medalha. E uma recordação valiosíssima para mim.
As feições enérgicas do ganadeiro endureceram.
— Se o fizer não respondo pela sua cabeça — disse com firmeza. — Dei ordem aos meus homens para dispararem antes de perguntarem. Não estou disposto a suportar mais roubos de gado.
Brian acabou por encolher os ombros. Estava a ver que, sob a fronte daquele homem, as ideias aderiam com a mesma força com que os líquenes aderem às pedras. Ia custar-lhe bastante convencê-lo de que nunca pensara roubar-lhe nenhuma rês.
O ruído dos cascos de um cavalo que martelavam ritmicamente o solo da vereda fizeram com que o ganadeiro e o seu capataz se desinteressassem do rapaz durante alguns segundos olhando por cima da cabeça deste na direção da cerca.
— É Chill Talbott — exclamou o capataz em tom baixo. — O senhor está resolvido a vender-lhe as vinte reses?
— Se ele subir um pouco mais o preço, são dele. Ontem à noite não chegámos a acordo. Se volta é porque pensa fazer-me uma contraproposta. Talbott não é tolo e sabe que faz um bom negócio comprando-me essas reses.
Brian viu desmontar junto do alpendre um homem de estatura média. Aparentava uns quarenta anos. As suas feições, embora angulosas, eram corretas. Estava cuidadosamente barbeado e as suas roupas denunciavam a pessoa que desfruta de uma posição económica desafogada. O que não lhe agradou foi a expressão segura e petulante dos seu solhos cinzentos.
O silêncio momentâneo que se fez à chegada do negociante de gado foi quebrado por este com um tom de surpresa:
— Que se passa, Granwley?
Havia estranhado a posição tensa, desconfiada dos empregados do rancho. A imobilidade do ganadeiro e do seu capataz, a presença daquele forasteiro dentro do semicírculo formado pelos vaqueiros do <Círculo M. G.». Granwley explicou-lhe em poucas palavras o que havia acontecido. Depois voltou-se para o jovem com o rosto tenso, ordenando-lhe secamente:
— Monte o seu cavalo e saia daqui, mas não se esqueça do meu aviso.
— Nem o senhor do meu — respondeu Brian com firmeza. — Não sou nenhum bandido e o senhor não é o dono do outro lado do regato.
Girou bruscamente sobre os tacões e caminhou com passo tranquilo para o seu cavalo, amarrado junto dos outros a um madeiro horizontal. Se tivesse voltado a cabeça no momento de transpor a cerca do rancho, teria visto cravados nas suas costas nove pares de olhos.
Apertou ligeiramente as ilhargas do animal que se pôs a trote. Tomou a direção da vereda.
Bay Sping era uma povoação semelhante a tantas centenas de povoações que se erguiam no vasto e selvagem Oeste de 1866. Casas de adobe, pequenas e chatas, com telhados brancos. Havia uma só rua com altos passeios de madeira. E havia também o pó espesso, compacto, na calçada, formando, naquela altura, caprichosos redemoinhos por causa da aragem que vinha do Norte.
Dos dois lados da rua Maior erguiam-se os «saloons». o Banco, a barbearia, o armazém geral, a correaria e os dois hotéis. Tudo isto foi o que os olhos de Brian Boyds viram ao entrar na rua poeirenta da pequena cidade de criadores de gado. E nada disto o admirou pela simples razão de ser um espetáculo muito conhecido dele.
Ao passar em frente do «saloon» «A Estrela» parou o cavalo. Decidira tomar uma bebida. Do estabelecimento vinha uma algazarra tão estrondosa que o fez pensar se não estariam a celebrar algum acontecimento.
Não passou da entrada. E não por sua vontade, precisamente, mas porque os quatro homens que se encontravam junto das portas de vaivém lhe impediam a passagem para o balcão.
As gargalhadas, os gritos, atroavam os ares. Em vez de um estabelecimento de bebidas parecia a antecâmara de um manicómio. Graças à sua elevada estatura não teve necessidade de se erguer sobre os bicos dos pés para se informar do que acontecia.
O espetáculo que presenciou deixou-o perplexo. Viu um homem de uns trinta anos apoiar-se sobre o balcão. Tinha o rosto enrugado e envelhecido onde os olhos brilhavam, mas sem fogo, dando a impressão de uma pessoa fisicamente acabada. Alinhados diante desse indivíduo no longo balcão contou nove copos de uísque. Os outros três que completavam a dúzia estavam vazios.
— Vamos, cão, bebe o quarto copo.
Brian desviou a cabeça para olhar para o sujeito que acabava de falar. Era um tipo alto, ruivo, de má catadura, forte como um roble. Meia dúzia de tipos de aspeto semelhante rodeavam-no com o regozijo estampado nos rostos.
Foi então que Brian notou que o homem, que se apoiava no balcão, era coxo. Faltava-lhe a perna direita, cortada acima do joelho. A muleta descansava a seu lado, contra o balcão.
Brian, ao observar o olhar ansioso que o inválido lançava aos copos e ao notar como passava a língua pelos lábios ante a visão do uísque, sentiu pena daquele desgraçado. Compreendeu que estava perante um dipsómano, de um homem vencido pela bebida, de um ser disposto às concessões mais abjetas, desde que não o privassem do seu prazer favorito. Sem necessidade de que lhe explicassem o que sucedia, a verdade surgiu aos seus olhos: aqueles energúmenos divertiam-se à custa daquele desgraçado.
A mão ávida e trémula do coxo estendeu-se para o quarto copo. Os seus dedos, porém, não chegaram a tocar o vidro. Exatamente no momento em que quase roçavam o copo soou um estampido e saltaram pedaços de vidro em todas as direções, entornando-se a bebida sobre o balcão.
As gargalhadas das duas dúzias de indivíduos que enchiam o estabelecimento fizeram estremecer as paredes quando aqueles viram a careta de desencanto que se desenhara no rosto do inválido ao ver perder-se o uísque que tanto ansiava beber.
— Julgavas que ias beber os outros copos sem os ganhares honradamente? — cacarejou o ruivo, guardando no coldre o «Colt» fumegante. — Um sulista empestado como tu tem de merecer o que bebe. Não era assim que vocês tratavam os negros?
Brian não conseguiu evitar um sentimento de repulsa por aquele tipo. Pareceu-lhe mesquinho que ano e meio depois de terminar a guerra continuasse latente o ódio e o desejo de vingança entre federais e confederados. E era pior ainda que esse ódio se cevasse num pobre mutilado.
Nos olhos azuis e turvos do coxo brilhava uma angústia incontível. O queixo tremia-lhe nitidamente. Dava a impressão de que tudo quanto o rodeava carecia de vivência para ele, que o seu mundo de reduzia aos oito copos de uísque que se alinhavam diante dos seus olhos.
Voltou a estender o braço para o quinto copo com as pupilas dilatadas. Oferecia um triste espetáculo com o tremor convulso do queixo, o pescoço estendido avidamente para os copos e a maçã de Adão, proeminente, subindo e descendo de uma maneira convulsiva.
Pela segunda vez o «Colt» do ruivo «ladrou». E «ladrou» no momento exato em que as polpas dos dedos do inválido se preparavam para se cerrarem sobre o copo. O vidro voou pelos ares em mil pedaços e a bebida salpicou a boca contraída do coxo. Sonoras, estridentes, as gargalhadas voltaram a ressoar na atmosfera viciada, numa algazarra espantosa. Acima delas, voltou a ouvir-se a voz grossa, agressiva, do ruivo, ao guardar o «45».
— Keener, não sejas parvo. Deixar-te-emos beber esses copos se os mereceres.
O rosto anguloso, destruído, do jovem voltou-se pateticamente para o vaqueiro. Um desespero profundo brilhava nos seus olhos turvos. Pestanejou, as pupilas cheias de uma cólera repentina:
— Gloster, maldito seja você. Se continua a partir os copos parto-lhe a cabeça de um golpe.
Estendeu a mão para apanhar a muleta. Por esta razão e também pela quantidade de álcool que já havia ingerido perdeu o equilíbrio e esteve prestes a cair de bruços, o que provocou novas gargalhadas. Um dos que rodeavam o ruivo imitou este tirando o revólver e disparando quase sem apontar sobre um dos copos, fazendo-o saltar em mil pedaços.
— Não partam mais copos — quase soluçou. — Farei o que quiserem, mas não partam mais copos.
Havia posto a muleta sob o sovaco e, afastando-se do balcão deu alguns passos na direção do ruivo e dos seus amigos. Nos seus olhos lia-se uma súplica desgarrada. — Que... que devo fazer, Gloster? — disse com voz pastosa.
O ruivo sorriu cinicamente. Depois piscou um olho aos seus amigos. Acto contínuo tirou do bolso várias moedas.
— Bem, Keener — disse, enquanto brincava com as moedas na palma da mão. — Se quiseres beber esses copos e os que faltam para completar a dúzia tens de apanhar com os dentes estas três moedas... dali.
Voltou a cabeça para um canto do estabelecimento e ficou a olhar fixamente para uma pequena caixa de madeira, quase cheia de serradura. Teria uns vinte centímetros de comprimento por cinco de altura. Não era a única que existia no estabelecimento. Várias outras se encontravam colocadas estrategicamente aos cantos. Eram escarradores rústicos para onde se atiravam as pontas de cigarros... e os escarros.
Gloster avançou para o escarrador e deixou ali cair, lentamente, as três moedas de prata. Depois olhou, ironicamente, para o coxo.
— Vamos, Keener, só terá de as apanhar com a boca. Fácil, homem, muito fácil.
O riso cessou como por encanto. Em algumas caras viram-se caretas de repugnância. Noutras aumentou o regozijo. Pensaram que aquele diabo do Pat Gloster tinha, por vezes, ideias luminosas.
— Vamos, Keener, não hesites — gritaram vários, rindo. — Demonstra a Gloster que os confederados sabem ganhar as batalhas.
Brian Boyds continuava imóvel junto da porta. Sentiu uma vibração curiosa na coluna vertebral ao ouvir a proposta indigna do ruivo interrogando-se sobre se a degradação do inválido chegaria ao extremo de aceitar o seu infamante convite. Viu que o coxo retrocedia alguns passos com os dentes cerrados..
Isto fê-lo pensar que o rapaz tinha ainda uns restos de orgulho e que se revoltaria contra o tratamento degradante. Gloster, ao ver o gesto de hesitação do inválido, voltou-se para o taberneiro que estava encostado a um canto do balcão:
— Lloyd, põe mais meia dúzia de copos para o tenente Keener. A dúzia parece-lhe pouco pelo trabalho que lhe propus.
O taberneiro cumpriu a ordem em silêncio. O ruído da bebida a cair nos copos fez o coxo levantar a cabeça e cravar os olhos,, como que hipnotizado, na longa fileira de copos colocados sobre o balcão. Avançou, balançando-se, com a língua de fora como os cães quando se encontram sedentos e farejam água. Gloster apressou-o, impaciente:
— Se, dentro de um minuto, não te decides vai-te embora e não esperes que te convidemos mais.
Keener passou os dedos pela bebida que se derramara antes sobre o balcão e começou a chupá-los com a mesma voluptuosidade com que uma criança saboreia um rebuçado. As gargalhadas, então, foram atroadoras.
Ao voltar a sentir o sabor do uísque nos lábios, Paul Keener perdeu o resto do pudor, do orgulho que lhe restava. Era um pobre diabo dominado totalmente pelo álcool. Voltou-se com ah pupilas dilatadas para o ruivo.
— Apanharei essas moedas com a boca — pronunciou com voz rouca.
No «saloon» produziu-se um silêncio repentino. Até os menos sensíveis ficaram com os rostos tensos ao verem o inválido dar vários balanços na direção do escarrador.
— Não, assim não, Keener — exclamou o ruivo com um sorriso cínico. — Deixa a muleta sobre esta cadeira. Deves aproximar-te do escarrador valendo-te das mãos e da tua única perna. As moedas deves tirá-las com os dentes.
Paul Keener, ante a espectativa geral, encostou a muleta às costas da cadeira. O silêncio que se fez no «saloon» foi tão espesso que se podia cortar à faca.
O espetáculo não tinha nada de agradável. Não, não tinha. Pelo menos para Brian Boyds. Ver um homem, em plena juventude, rebaixar-se até àquele extremo para beber alguns copos de uísque produzia-lhe uma sensação penosa de angústia. Os gritos continuavam a atroar os ares. Cada vez mais estentóreos, mais incitantes.
— Animo, Keener — gritavam, irónicos. — Mais dois saltinhos e ganhas a aposta.
Brian Boyds olhou, compadecido, para aquele pobre diabo que avançava grotescamente para o escarrador imitando os símios. O coxo havia apoiado as mãos no chão. A madeira da perna direita batia surdamente no sobrado do chão, de cada vez que dava um salto, causando a hilaridade daqueles energúmenos. O equilíbrio precário que o seu único pé lhe permitia produzia uma sensação angustiosa como a de um barquinho frágil balançado pela ondulação violenta de uma tempestade. De uma tempestade de uísque, naquele caso.
— Vamos, Keener! — gritavam, novamente, incitando-o. — Se venceres Gloster convidamos-te nós.
As feições de Brian Boyds endureceram, subitamente. Achou que, para brincadeira já bastava. Tinha de impedir que aquele louco metesse a boca no escarrador para tirar dali as três moedas com os dentes. Havia notado que o ruivo as havia atirado precisamente por cima de alguns escarros viscosos, repelentes. Só de pensar naquilo sentiu náuseas.
Indiferente à algazarra que o rodeava, o coxo avançava com os seus saltinhos de rã para o escarrador. Na sua fronte o suor brilhava, escorrendo-lhe para o rosto silenciosamente. Mais dois saltos e teria alcançado a sua meta.
Foi então que Brian Boyds sentiu um estranho formigueiro nas mãos. Como se o seu corpo fosse sacudido por uma emoção muito intensa. A sua mão direita, até então imóvel ao longo do corpo, moveu-se com uma celeridade arrepiante para o coldre que lhe pendia do cinturão, «sacando» o «Colt». Apertou o gatilho uma vez, só uma vez. Foram, porém, dois os estampidos que ressoaram na sala. E as duas balas, por uma coincidência surpreendente, haviam procurado o mesmo alvo: o escarrador. Impulsionado pelas duas cargas de chumbo o recipiente de madeira empreendeu um voo repentino para acabar por aterrar ruidosamente debaixo de uma mesa.
O chão ficou polvilhado de serradura, escarros e pontas de cigarro. As três moedas de prata rodaram para junto da parede com um alegre tilintar. Brian Boyds, antes de guardar o revólver, olhou para a sua esquerda. Havia sido dali que partira o disparo para o mesmo alvo. E viu o homem que o tinha feito.
Era louro, de média estatura, mas forte como um roble. Devia ter a mesma idade de Boyds e as suas feições eram corretas apesar de ter o nariz ligeiramente curvo e algumas sardas no rosto e no pescoço de touro. Notou que, até àquele instante, não havia reparado nele. Viu-o guardar a arma com um sorriso irónico nos lábios.
Os dois olharam-se fixamente durante alguns segundos. A ação reflexa que haviam praticado para evitarem que o coxo cometesse aquele acto degradante teve uma segunda edição: os dois sorriram ao mesmo tempo. O silêncio, pesado e lúgubre, que envolvera o «saloon» quando se esfumaram os ecos dos dois tiros foi quebrado de improviso pelo vozeirão do ruivo:
— Quem os convidou para esta festa, forasteiros?
Olhou primeiro para Brian Boyds. Depois para o louro sardento. Um fulgor maligno brilhava nos seus olhos.
— O que queria fazer a esse infeliz era uma canalhada — respondeu o louro, com gravidade. — Há mil maneiras de se divertir sem vexar uma pessoa e muito menos quando esta pessoa é um inválido.
Brian Boyds contemplava o desconhecido, em silêncio. Analisando-o. Estudando-o. A conclusão a que chegou a de que estava diante de um homem de alto a baixo, daqueles que se deixem arrastar pelo coração. E isto era bom e nobre. Uma razão poderosíssima para que lhe fosse simpático, para alinhar a seu lado, disposto a tudo. Inclusivamente a «sacar» de novo, embora desta vez o alvo não fosse um vulgar escarrador de madeira.
— Não conheço esse homem — e apontou para o louro —, mas faço minhas as palavras dele.
O ambiente, alegre até então, tornou-se denso, ameaçador. O único que permanecia alheio à gravidade da situação era Paul Keener. Ao produzirem-se os dois estampidos e ver voar o escarrador dera um suspiro e caíra de lado contemplando estupidamente a longínqua caixa de madeira.
Pat Gloster voltou-se lentamente para Brian Boyds. Nos seus olhos brilhava o ódio. Crispou os punhos, furioso e moveu o seu corpo de atleta na direção do jovem. Os seus bíceps, fortes e poderosos, notavam-se como cordas tensas de violino sob a camisa leve. Resmungou com voz surda, ameaçadora:
— Começarei por si, por ter sido o primeiro a «sacar». Depois ocupar-me-ei do seu amigo. Massacrá-los-ei a golpes e não voltarão a meter-se onde não são chamados ou eu não seja Pat Gloster.
— Engana-se, Gloster — interrompeu o jovem louro —, quem disparou primeiro fui eu. Será comigo que terá de lutar em primeiro lugar.
— Obrigado pela intenção, amigo — disse Brian com rapidez — mas não lhe cedo a oportunidade de esborrachar o nariz a este porco. Fui eu o primeiro a «sacar», ele próprio o disse.
— «Sacou» primeiro, mas não foi o primeiro a disparar — respondeu o sardento sorrindo. — Em Idaho afirmam que não há revólver mais rápido que o de Cole Derry.
Era uma maneira de se apresentar. E uma maneira de evitar que estropeassem o físico a Brian Boyds. Este entendeu-o assim e sorriu. Aquele rapaz estava a tornar-se-lhe simpático. 0 público, ao ver o cariz que o assunto tomava, desinteressou-se completamente do coxo e concentrou a sua atenção nos dois forasteiros. Interiormente rebolavam-se de prazer.
Ver lutar o colosso de Gloster era um espetáculo. A potência demolidora dos seus punhos havia derrubado mais de um corpulento vaqueiro de Bay Sping deixando-o inutilizado para várias semanas. Gloster voltou levemente a cabeça para o grupo dos seus amigos. Um sorriso curvava-lhe os lábios grossos. Disse, indicando Cole Derry:
— Vigiem este palhaço enquanto faço umas festas ao seu amigo. É possível que se assuste e queira fugir para se livrar da sova.
Um coro de gargalhadas acolheu a fanfarronada do gigante. Um dos tipos exclamou, jocosamente:
— Não te preocupes, Pat, servir-to-emos numa bandeja.
Paul Keener continuava sentado no chão e a cabeça pendia-lhe para o peito. Havia adormecido e ressonava ruidosamente. O uísque, que antes havia bebido, começava a produzir os seus efeitos.
Com uma careta desagradável que lhe distorcia o rosto largo, Pat Gloster avançou um passo para Brian Boyds. O jovem continuou impassível. Os seus braços longos e nervosos estavam pendentes ao longo do corpo e olhava fixamente para o gigante, como que espiando as suas reações..
Exatamente no momento em que Gloster abria as pernas em compasso e levantava o punho direito para o descarregar como uma maça sobre o rosto de Boyds, as portas de vaivém do «saloon» abriram-se com violência e uma jovem entrou como um vendaval. Atrás dela entrou um homem alto, magro de cara, e de cabelos brancos que trazia no peito da camisa de quadrados uma estrela de cinco pontas.
Gloster abandonou repentinamente a sua atitude agressiva e cravou os olhos semicerrados na jovem. De mau-humor voltou-se e aproximou-se dos seus amigos. A posição ameaçadora de Gloster não passou despercebida ao xerife. Franziu as sobrancelhas e interpelou o forte indivíduo com certa aspereza:
— Pat, preveni-o na outra noite de que não quero mais sarilhos.
— Tratava-se de uma exibição, Loveland — respondeu o interpelado, com um sorriso sardónico. — Este forasteiro apostou comigo que era capaz de me resistir durante quinze minutos. Não creio que isso seja um delito.
O xerife voltou a cabeça para Boyds e olhou-o de maneira penetrante. O jovem compreendeu que tinha de confirmar ou não as palavras de Gloster. Disse, sorrindo:
— Goster tem razão, xerife, só queríamos trocar alguns golpes para se saber quem é mais forte.
Com o canto do olho observava a jovem. Viu que a rapariga, desinteressando-se do que sucedia à sua volta, se ajoelhava junto de Paul Keener adormecido e o abanava com energia até o conseguir despertar. Não lhe havia conseguido ver a cara. Passara diante dele, tão rapidamente, que apenas conseguira ver uma cabeleira cor de caju que lhe caía sobre os ombros redondos e bem torneados como uma cascata dourada.
Cole Derry, ao contrário, pudera ver que os olhos da jovem eram verdes e grandes e que o seu busto, erecto, desafiante, era uma maravilha de perfeição. Outra maravilha era o seu rosto de feições corretas, apesar da contração que manifestava naquela altura. Calculou que devia ter uns vinte anos. Segundos depois, seria o próprio Brian Boyds a ficar admirado com a peregrina beleza daquela rapariga. E isso deveu-se ao facto de ela voltar a cabeça para o grupo formado por Pat Gloster e os seus amigos para quem olhou com mal contida fúria.
— Vocês são uns miseráveis — gritou, acentuando as palavras. — Porque não troçam de um homem que lhes possa fazer frente, em vez de o fazerem com um pobre inválido? Puf! Metem-me nojo — e cuspiu com força aos pés do gigante.
Os seios pequenos e erectos pulsavam tão violentamente, por causa da agitação de que estava possuída, que davam a impressão de acabar por romper a seda da blusa onde se escondiam. Brian Boyds pensou que nunca havia visto um quadro tão maravilhoso como aquele. Cole Derry, pela sua, parte, pensava o mesmo. Uma vez mais, os seus pensamentos coincidiam.
O xerife, ao notar os esforços desesperados da jovem para levantar o corpo pesado de Keener, aproximou-se dela e apanhou o inválido por debaixo dos braços, levantando-o sem esforço aparente. Disse:
— Cinthia, traz a muleta de teu irmão. A jovem atravessou o salão com o rosto contraído. Ao passar junto de Gloster e dos seus amigos dirigiu-lhes um olhar furioso. Nem sequer pareceu notar a presença de Brian e de Cole Derry. Paul Keener acabou de abrir os olhos quando a irmã lhe colocou debaixo do braço a muleta. Passou a língua pelos lábios secos e murmurou, lamentosamente, piscando os olhos:
— Irmãzinha, sê boa e dá-me uma bebida... só uma.
— Do que tu precisas é de um bom banho e de um frasco de amoníaco para curares essa bebedeira — resmungou o xerife.
Cinthia olhou para o irmão, triste.
— Dar-te-ei em casa, Paul. Anda, encosta-te ao meu ombro.
O xerife, depois de colocar sobre a cabeleira revolta do coxo o seu chapéu ensebado, passou-lhe um braço pela cintura.
— Vamos, rapaz — ordenou severamente. — O que te salva de te encerrar numa cela é teres uma irmã como Cinthia.
A palavra «cela» devia ter-lhe sugerido qualquer coisa porque voltou a cabeça para o público e acrescentou com energia:
— Já estou cansado de que tomeis para alvo das vossas estúpidas brincadeiras este homem. Se voltarem a dizer-me que se estão a divertir à sua custa castigarei o que o fizer.
— Proíba-o de entrar em tabernas e assim evitará dores de cabeça — exclamou Gloster, sardónico.
— Tentá-lo-ei — resmungou o xerife não muito convencido de conseguir os seus propósitos.
Reparou então em Brian Boyds e recordou-se de algo que havia esquecido completamente.
— Goster — gritou, de mau modo —, nada de lutas, eh? Se quer experimentar a força dos seus punhos faça-o contra a parede. Não me dê motivos para o prender. Quanto a si, forasteiro — e olhou severamente para Boyds — procure não criar problemas ou ver-me-ei obrigado a expulsá-lo de Bay Sping.
— Animo, Keener — gritavam, irónicos. — Mais dois saltinhos e ganhas a aposta.
Brian Boyds olhou, compadecido, para aquele pobre diabo que avançava grotescamente para o escarrador imitando os símios. O coxo havia apoiado as mãos no chão. A madeira da perna direita batia surdamente no sobrado do chão, de cada vez que dava um salto, causando a hilaridade daqueles energúmenos. O equilíbrio precário que o seu único pé lhe permitia produzia uma sensação angustiosa como a de um barquinho frágil balançado pela ondulação violenta de uma tempestade. De uma tempestade de uísque, naquele caso.
— Vamos, Keener! — gritavam, novamente, incitando-o. — Se venceres Gloster convidamos-te nós.
As feições de Brian Boyds endureceram, subitamente. Achou que, para brincadeira já bastava. Tinha de impedir que aquele louco metesse a boca no escarrador para tirar dali as três moedas com os dentes. Havia notado que o ruivo as havia atirado precisamente por cima de alguns escarros viscosos, repelentes. Só de pensar naquilo sentiu náuseas.
Indiferente à algazarra que o rodeava, o coxo avançava com os seus saltinhos de rã para o escarrador. Na sua fronte o suor brilhava, escorrendo-lhe para o rosto silenciosamente. Mais dois saltos e teria alcançado a sua meta.
Foi então que Brian Boyds sentiu um estranho formigueiro nas mãos. Como se o seu corpo fosse sacudido por uma emoção muito intensa. A sua mão direita, até então imóvel ao longo do corpo, moveu-se com uma celeridade arrepiante para o coldre que lhe pendia do cinturão, «sacando» o «Colt». Apertou o gatilho uma vez, só uma vez. Foram, porém, dois os estampidos que ressoaram na sala. E as duas balas, por uma coincidência surpreendente, haviam procurado o mesmo alvo: o escarrador. Impulsionado pelas duas cargas de chumbo o recipiente de madeira empreendeu um voo repentino para acabar por aterrar ruidosamente debaixo de uma mesa.
O chão ficou polvilhado de serradura, escarros e pontas de cigarro. As três moedas de prata rodaram para junto da parede com um alegre tilintar. Brian Boyds, antes de guardar o revólver, olhou para a sua esquerda. Havia sido dali que partira o disparo para o mesmo alvo. E viu o homem que o tinha feito.
Era louro, de média estatura, mas forte como um roble. Devia ter a mesma idade de Boyds e as suas feições eram corretas apesar de ter o nariz ligeiramente curvo e algumas sardas no rosto e no pescoço de touro. Notou que, até àquele instante, não havia reparado nele. Viu-o guardar a arma com um sorriso irónico nos lábios.
Os dois olharam-se fixamente durante alguns segundos. A ação reflexa que haviam praticado para evitarem que o coxo cometesse aquele acto degradante teve uma segunda edição: os dois sorriram ao mesmo tempo. O silêncio, pesado e lúgubre, que envolvera o «saloon» quando se esfumaram os ecos dos dois tiros foi quebrado de improviso pelo vozeirão do ruivo:
— Quem os convidou para esta festa, forasteiros?
Olhou primeiro para Brian Boyds. Depois para o louro sardento. Um fulgor maligno brilhava nos seus olhos.
— O que queria fazer a esse infeliz era uma canalhada — respondeu o louro, com gravidade. — Há mil maneiras de se divertir sem vexar uma pessoa e muito menos quando esta pessoa é um inválido.
Brian Boyds contemplava o desconhecido, em silêncio. Analisando-o. Estudando-o. A conclusão a que chegou a de que estava diante de um homem de alto a baixo, daqueles que se deixem arrastar pelo coração. E isto era bom e nobre. Uma razão poderosíssima para que lhe fosse simpático, para alinhar a seu lado, disposto a tudo. Inclusivamente a «sacar» de novo, embora desta vez o alvo não fosse um vulgar escarrador de madeira.
— Não conheço esse homem — e apontou para o louro —, mas faço minhas as palavras dele.
O ambiente, alegre até então, tornou-se denso, ameaçador. O único que permanecia alheio à gravidade da situação era Paul Keener. Ao produzirem-se os dois estampidos e ver voar o escarrador dera um suspiro e caíra de lado contemplando estupidamente a longínqua caixa de madeira.
Pat Gloster voltou-se lentamente para Brian Boyds. Nos seus olhos brilhava o ódio. Crispou os punhos, furioso e moveu o seu corpo de atleta na direção do jovem. Os seus bíceps, fortes e poderosos, notavam-se como cordas tensas de violino sob a camisa leve. Resmungou com voz surda, ameaçadora:
— Começarei por si, por ter sido o primeiro a «sacar». Depois ocupar-me-ei do seu amigo. Massacrá-los-ei a golpes e não voltarão a meter-se onde não são chamados ou eu não seja Pat Gloster.
— Engana-se, Gloster — interrompeu o jovem louro —, quem disparou primeiro fui eu. Será comigo que terá de lutar em primeiro lugar.
— Obrigado pela intenção, amigo — disse Brian com rapidez — mas não lhe cedo a oportunidade de esborrachar o nariz a este porco. Fui eu o primeiro a «sacar», ele próprio o disse.
— «Sacou» primeiro, mas não foi o primeiro a disparar — respondeu o sardento sorrindo. — Em Idaho afirmam que não há revólver mais rápido que o de Cole Derry.
Era uma maneira de se apresentar. E uma maneira de evitar que estropeassem o físico a Brian Boyds. Este entendeu-o assim e sorriu. Aquele rapaz estava a tornar-se-lhe simpático. 0 público, ao ver o cariz que o assunto tomava, desinteressou-se completamente do coxo e concentrou a sua atenção nos dois forasteiros. Interiormente rebolavam-se de prazer.
Ver lutar o colosso de Gloster era um espetáculo. A potência demolidora dos seus punhos havia derrubado mais de um corpulento vaqueiro de Bay Sping deixando-o inutilizado para várias semanas. Gloster voltou levemente a cabeça para o grupo dos seus amigos. Um sorriso curvava-lhe os lábios grossos. Disse, indicando Cole Derry:
— Vigiem este palhaço enquanto faço umas festas ao seu amigo. É possível que se assuste e queira fugir para se livrar da sova.
Um coro de gargalhadas acolheu a fanfarronada do gigante. Um dos tipos exclamou, jocosamente:
— Não te preocupes, Pat, servir-to-emos numa bandeja.
Paul Keener continuava sentado no chão e a cabeça pendia-lhe para o peito. Havia adormecido e ressonava ruidosamente. O uísque, que antes havia bebido, começava a produzir os seus efeitos.
Com uma careta desagradável que lhe distorcia o rosto largo, Pat Gloster avançou um passo para Brian Boyds. O jovem continuou impassível. Os seus braços longos e nervosos estavam pendentes ao longo do corpo e olhava fixamente para o gigante, como que espiando as suas reações..
Exatamente no momento em que Gloster abria as pernas em compasso e levantava o punho direito para o descarregar como uma maça sobre o rosto de Boyds, as portas de vaivém do «saloon» abriram-se com violência e uma jovem entrou como um vendaval. Atrás dela entrou um homem alto, magro de cara, e de cabelos brancos que trazia no peito da camisa de quadrados uma estrela de cinco pontas.
Gloster abandonou repentinamente a sua atitude agressiva e cravou os olhos semicerrados na jovem. De mau-humor voltou-se e aproximou-se dos seus amigos. A posição ameaçadora de Gloster não passou despercebida ao xerife. Franziu as sobrancelhas e interpelou o forte indivíduo com certa aspereza:
— Pat, preveni-o na outra noite de que não quero mais sarilhos.
— Tratava-se de uma exibição, Loveland — respondeu o interpelado, com um sorriso sardónico. — Este forasteiro apostou comigo que era capaz de me resistir durante quinze minutos. Não creio que isso seja um delito.
O xerife voltou a cabeça para Boyds e olhou-o de maneira penetrante. O jovem compreendeu que tinha de confirmar ou não as palavras de Gloster. Disse, sorrindo:
— Goster tem razão, xerife, só queríamos trocar alguns golpes para se saber quem é mais forte.
Com o canto do olho observava a jovem. Viu que a rapariga, desinteressando-se do que sucedia à sua volta, se ajoelhava junto de Paul Keener adormecido e o abanava com energia até o conseguir despertar. Não lhe havia conseguido ver a cara. Passara diante dele, tão rapidamente, que apenas conseguira ver uma cabeleira cor de caju que lhe caía sobre os ombros redondos e bem torneados como uma cascata dourada.
Cole Derry, ao contrário, pudera ver que os olhos da jovem eram verdes e grandes e que o seu busto, erecto, desafiante, era uma maravilha de perfeição. Outra maravilha era o seu rosto de feições corretas, apesar da contração que manifestava naquela altura. Calculou que devia ter uns vinte anos. Segundos depois, seria o próprio Brian Boyds a ficar admirado com a peregrina beleza daquela rapariga. E isso deveu-se ao facto de ela voltar a cabeça para o grupo formado por Pat Gloster e os seus amigos para quem olhou com mal contida fúria.
— Vocês são uns miseráveis — gritou, acentuando as palavras. — Porque não troçam de um homem que lhes possa fazer frente, em vez de o fazerem com um pobre inválido? Puf! Metem-me nojo — e cuspiu com força aos pés do gigante.
Os seios pequenos e erectos pulsavam tão violentamente, por causa da agitação de que estava possuída, que davam a impressão de acabar por romper a seda da blusa onde se escondiam. Brian Boyds pensou que nunca havia visto um quadro tão maravilhoso como aquele. Cole Derry, pela sua, parte, pensava o mesmo. Uma vez mais, os seus pensamentos coincidiam.
O xerife, ao notar os esforços desesperados da jovem para levantar o corpo pesado de Keener, aproximou-se dela e apanhou o inválido por debaixo dos braços, levantando-o sem esforço aparente. Disse:
— Cinthia, traz a muleta de teu irmão. A jovem atravessou o salão com o rosto contraído. Ao passar junto de Gloster e dos seus amigos dirigiu-lhes um olhar furioso. Nem sequer pareceu notar a presença de Brian e de Cole Derry. Paul Keener acabou de abrir os olhos quando a irmã lhe colocou debaixo do braço a muleta. Passou a língua pelos lábios secos e murmurou, lamentosamente, piscando os olhos:
— Irmãzinha, sê boa e dá-me uma bebida... só uma.
— Do que tu precisas é de um bom banho e de um frasco de amoníaco para curares essa bebedeira — resmungou o xerife.
Cinthia olhou para o irmão, triste.
— Dar-te-ei em casa, Paul. Anda, encosta-te ao meu ombro.
O xerife, depois de colocar sobre a cabeleira revolta do coxo o seu chapéu ensebado, passou-lhe um braço pela cintura.
— Vamos, rapaz — ordenou severamente. — O que te salva de te encerrar numa cela é teres uma irmã como Cinthia.
A palavra «cela» devia ter-lhe sugerido qualquer coisa porque voltou a cabeça para o público e acrescentou com energia:
— Já estou cansado de que tomeis para alvo das vossas estúpidas brincadeiras este homem. Se voltarem a dizer-me que se estão a divertir à sua custa castigarei o que o fizer.
— Proíba-o de entrar em tabernas e assim evitará dores de cabeça — exclamou Gloster, sardónico.
— Tentá-lo-ei — resmungou o xerife não muito convencido de conseguir os seus propósitos.
Reparou então em Brian Boyds e recordou-se de algo que havia esquecido completamente.
— Goster — gritou, de mau modo —, nada de lutas, eh? Se quer experimentar a força dos seus punhos faça-o contra a parede. Não me dê motivos para o prender. Quanto a si, forasteiro — e olhou severamente para Boyds — procure não criar problemas ou ver-me-ei obrigado a expulsá-lo de Bay Sping.
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