domingo, 14 de outubro de 2018

BIS163.01 A espera do condenado

O dia avizinhava-se pardacento, trágico, sombrio...
O dealbar apresentava-se escuro e pesado. Soprava um vento áspero e desabrido que levantava montanhas de poeira tão densas e acres como o fumo. Era, na realidade, um amanhecer estranho, diferente; um amanhecer que pressagiava calamidades, desolação e morte.
A Morte!
Lou Twerlin tinha um encontro marcado com aquela frigida e descarnada dama de severos e ebúrneos vestidos a que se dá o nome de MORTE...
Lou Twerlin!
Era um mocetão alto, reforçado, cujo rosto apresentava um tom crestado pelo sol do deserto; os seus olhos grandes e escuros tinham um aspeto de frieza de aço que causava calafrios.
Naquela madrugada, a não surgir qualquer imprevisto, Lou Twerlin ia morrer sem apelo nem agravo...
Frio, sereno, impávido, Lou Twerlin contemplava através do postigo gradeado da sua cela, o cadafalso erguido no centro do amplo pátio da prisão federal. Aquela maldita forca estava ali, na sua frente, como um espectro negro sobressaindo de entre as nuvens de poeira naquele triste e pardacento amanhecer.
Lou Twerlin esperava. Esperava! O cadafalso tinha sido erguido para ele. Para ele!...
Lou Twerlin sabia que era «ali» que ele ia morrer enforcado, dentro de escassos minutos. Enforcado!... Enforcado!... Enforcado!... Raio de vida!...
Lou Twerlin era um daqueles homens que não receiam a morte. Era um daqueles pistoleiros duros, cruéis e implacáveis que vivem uma existência demasiadamente agitada em permanente desafio à morte, para que a temem.
Cem vezes esteve Lou Twerlin frente a frente com a MORTE e outras tantas pôde esquivar-se devido ao seu sangue frio, à sua serenidade e à excecional rapidez da sua mão direita, sempre mais veloz em empunhar o revólver do que qualquer outro adversário que o enfrentasse.
Alguém lhe disse um dia que lhe chegaria a ocasião de tropeçar com um homem mais rápido do que ele. Esse homem antecipar-se-lhe-ia a fração de segundo suficiente para lhe meter uma bala no coração antes que ele pudesse ter as honras de vencedor. Lou Twerlin riu-se da profecia. Riu-se e encolheu os ombros. Seria assim, na realidade?
A vida de um pistoleiro tem um determinado limite; é, de uma maneira geral, muito mais intensa, acidentada e breve do que a de qualquer outro homem. E ele, Lou Twerlin, era um pistoleiro.
Suspirou! Não sentia o menor receio. O que ele sentia era uma secreta e íntima raiva. Uma raiva profunda que o enchia de cólera e de indignação. Ia morrer suspenso de uma aviltante corda de cânhamo. O cadafalso não era já uma simples sombra fantasmagórica. Aquilo era... uma autêntica forca! Uma forca ignóbil e arrepiante!
Lou Twerlin não vira nunca um cadafalso como aquele que tinha em frente dos olhos. Tinha visto, é certo, morrer muitos homens linchados. Penduravam-nos no ramo de uma árvore ou em uma trave qualquer.
«Aquilo», porém, era completamente diferente. Uma forca é qualquer coisa de deprimente e obsessiva.
Lou Twerlin sentia-se, realmente, impressionado pela visão do cadafalso, expressamente erguido para lhe acabar com a vida. Os seus olhos frios até ao inconcebível, estavam firmemente cravados naquele pedaço de corda suspensa, a toda a altura, baloiçada pelo vento e em cuja extremidade se via um enigmático laço corredio...
Seria possível que Lou Twerlin fosse acabar ali os seus dias ? Esta pergunta, que instintivamente se formou no seu, cérebro, teve o condão de o chamar à realidade.
A pergunta que a si mesmo dirigira tornou-o mais humano, mais real. Mas também lhe fez sentir a sensação do medo. Medo? Lou Twerlin cheio de medo ?... E porque não? Não tinha porventura a certeza de que estava chegado o momento, o terrível momento de ele morrer... enforcado ?
Lou Twerlin passou a língua pelos lábios ressequidos.
Tinha a boca e a garganta áridas como as areias do deserto, ou, como se todas as suas artérias tivessem ficado exangues. Nunca lhe passara pela cabeça que pudesse vir a suceder-lhe semelhante coisa.
Não se teria surpreendido se a sua morte tivesse ocorrido muito tempo antes, em meio de um combate, crivado de balas, ante os olhos de centenas de pessoas que poderiam vir a testemunhar mais tarde que Lou Twerlin morrera, mas morrera... matando. Mas rebentar enforcado como qualquer ladrão de gado ou como um repugnante cobarde...
Subitamente, o prisioneiro estremeceu. Uma estranha sensação, gelada e ao mesmo tempo abrasadora, percorreu-lhe a espinha dorsal. Chegara o momento fatal! Tinha acabado de chegar...
No amplo pátio da prisão começou a desenhar-se um movimento intenso, mas silencioso. Abriu-se a porta do pavilhão central e um homens apareceu de repente sob os umbrais.
Um grupo de cerca de uma dúzia era constituída por guardas do presídio; os restantes, todos vestidos de negro, eram as autoridades, as testemunhas...
No meio daquele pesado e pardacento amanhecer, apenas se ouvia o cadenciado caminhar daqueles homens taciturnos. Aproximaram-se do cadafalso. Os guardas da penitenciária, movendo-se como sombras, colocaram-se em fila de ambos os lados da forca. As testemunhas, mudas e sombrias, ficaram em pé, junto da pequena escada, aguardando a chegada do protagonista do iminente e fatal acontecimento...
Lou Twerlin afrouxou pouco a pouco a pressão dos seus dedos sobre o gradeamento do postigo; girando lentamente sobre os calcanhares, voltou as costas àquele arrepiante cenário montado em sua honra.
Os crispados lábios do condenado moveram-se subitamente, murmurando uma série de pragas e maldições numa linguagem ininteligível.
Muito estúpido tinha ele sido! Quão cego ele estava quando acreditou nas promessas de Bart Lockwood! Maldito filho de uma cadela! Bastardo dos infernos! Canalha mal nascido!... Sim! Fora na verdade muito estúpido. Um autêntico louco em convencer-se de que Bart Lockwood o salva-rial...
Devia ter-se apercebido de que o reles bastardo o abandonaria sem pejo; que Bart Lockwood já não precisava dele e que o deixaria rebentar esperneando na forca, sem levantar um só dedo para o salvar. Aquele aborto do inferno não tinha sentimentos nem escrúpulos e Lou Twerlin já não era necessário aos seus planos.
Alicerçado sobre os mais acanalhados sentimentos, Bart Lockwood conseguira chegar a grandes alturas. Como iria ele agora prejudicar o seu prestígio e o seu conceito de pessoa respeitável, servindo-se da sua influência em favor de um pistoleiro ?...
Ah! Se ele pudesse ter adivinhado o que estava para lhe acontecer! Se ele tivesse compreendido a tempo que todas as promessas de auxílio que Lockwood lhe fizera durante o julgamento, através do seu advogado Wachmann, não passavam de uma grosseira enfiada de mentiras!... Se ele tivesse imaginado que o maldito Lockwood decidira atraiçoar o seu melhor colaborador!... Mas era tarde. Demasiado tarde...
Apesar de tudo — e o rosto do prisioneiro iluminou-se subitamente com um clarão de raiva não estaria ele ainda a tempo de se vingar ? Era claro que sim! Sim, ainda estava muito a tempo de falar. Falar! Não certamente para livrar o pescoço, visto que isso era impossível, mas ao menos, para não subir sozinho os degraus do cadafalso. Estava ainda muito a tempo de falar e de apresentar provas terríveis contra Bart Lockwood, o homem que fora durante tantos anos o seu chefe nos crimes e na violência! Estava disposto a falar! Aquele infame bastardo de Bart Lockwood iria juntamente com ele direitinho para os infernos.
Lou Twerlin, ouviu o ruído produzido por uma fraca tosse. Voltou-se. Enquadrado pela guarnição da porta que acabava de se abrir, estava um homem alto e esquálido. Era Bush, o carcereiro...
Durante alguns segundos não se ouviu a mais pequena fala. Olharam-se. Encararam-se silenciosamente, suportando mutuamente os olhares ansiosos. Bruscamente, o homem que se encontrava à entrada da porta da cela, perguntou.
— Então ? Disposto a marchar para o inferno de cabeça para baixo ?
Lou Twerlin encolheu os ombros.
— Não estás cheio de medo ?
—Puff...
— Valente até ao fim, não, meu rapaz?
Twerlin respirou fundo.
— Vieste aqui para te divertires à minha custa, bastardo?
— Nem por sombras...
— Então ?
O velho Bush esboçou um estranho sorriso.
— Tenho a certeza de que já o adivinhaste.
Twerlin tinha realmente adivinhado, mas respondeu.
— Não.
Bush deixou de sorrir-se.
— Que diabo, Twerlin! Não temos já muito tempo.
— Para quê ?
—O dinheiro?
— Ah! Trata-se disso ?
— Sim. Insisto no assunto porque... Bem, parece-me que deves estar convencido de que não vais poder gozar a «massa» que roubaste no «City Bank». Porque me não dizes tu o lugar onde ela está escondida, Twerlin ?
—E que ganho eu, afinal, com isso ?
— Tu, nada. Mas como deves ter amigos e parentes ou, quem sabe ?, alguma galante rapariga...
Lou Twerlin esboçou um triste sorriso.
— Serias capaz de fazer chegar esse dinheiro a mãos estranhas ?
— Certamente, meu rapaz! claro que esse trabalho... é bem merecedor de uma recompensa... Que te parece, metade do bolo, Twerlin?
O preso olhou fixamente para o carcereiro. O velho Bush sorria.
— Não passas de um canalha, Matusalém.
— Bom...
Lou Twerlin cuspiu, desdenhoso.
— Sapo asqueroso! — murmurou com desprezo. — És mais nojento do que toda a carne que apodrece dentro destas paredes!...
Bush não se mexeu. Tinha a mão direita apoiada na coronha do revólver que trazia no cinto e parecia muito seguro de si mesmo.
— Será bom que te não esqueças disto, Twerlin —disse ele: — de nós ambos sou eu o único que sobreviverá a esta sombria madrugada.
— Bastardo! Garanto-te que, se isso de mim dependesse...
— Deixa-te dessas amabilidades, Twerlin! — atalhou o velho, num tom que não admitia réplica. — Ou te dispões a falar imediatamente, ou será demasiado tarde, compreendes?
Lou Twerlin humedeceu os lábios. Parecia que, cercado de dúvidas e de hesitações, mergulhara em profundas cogitações. Bush impacientou-se.
—Então, que diabo! Fazemos ou não fazemos o contrato ?
 O cérebro de Twerlin trabalhava febrilmente, como um vulcão em plena atividade. Subitamente, os olhos acerados do prisioneiro brilharam como um relâmpago. Qualquer coisa como que um raio de esperança lhe atravessou o cérebro. Por que esperava ele, afinal? Não tinha ele, ali, ao seu alcance, uma estupenda oportunidade que o velho Bush inconscientemente lhe oferecia ?
— Porque não ?
Bush tinha um revólver ao seu alcance e, é claro que se utilizaria dele sem hesitação, ao menor movimento que se lhe afigurasse suspeito. Mas, que podia ele recear, afinal, se o verdugo o estava esperando ali, junto da forca, para o mandar desta para melhor? Passou a mão pela boca com fingido nervosismo e ansiedade.
— Bom, não é que me agrade muito a ideia, mas... — resmungou. — A todos os homens chega inevitavelmente um dia em que se veem na necessidade de confiar noutro homem. Poderei, na verdade, depositar confiança em ti, Bush?
— Sem dúvida, amigo! — os pequeninos olhos do velho brilharam de avidez. — Onde está o dinheiro, Twerlin? Onde se encontra a «massaroca» que ninguém conseguiu encontrar até agora? O preso passou mais uma vez a língua pelos lábios ressequidos.
— Exijo que me dê a sua palavra de honra de que fará entrega de metade do dinheiro à pessoa a quem eu indicar...
— Mas, naturalmente, meu rapaz. Mas... acaba de uma vez, com os diabos! Não posso permanecer aqui nem mais um minuto...
A voz do velho Bush tremia de excitada que se encontrava. Lou Twerlin estava tão excitado como o velho; excitado e cheio de impaciência e de ansiedade. A despeito disso, aparentava a maior frieza e serenidade. Sabia dissimular.
— Não abriria a minha boca, se não fosse por causa dela. Atrás de tudo isto, existe uma mulher. Uma mulher maravilhosa, sabes ?...
Calou-se, completamente arquejante...
— Compreendo, meu rapaz. De quem se trata? Onde está o dinheiro ? Desembucha, com os diabos!
Nervoso, impaciente, o carcereiro avançou alguns passos dentro da cela, encurtando inadvertidamente a distância que o separava do homem condenado a morrer na forca. Lou Twerlin teve de fazer um enorme esforço para se dominar.
— Ela... ela necessitará de hoje em diante de quem lhe preste o seu auxílio, uma vez que a minha vida está por um fio — prosseguiu, com ar sombrio. — Só por ela, unicamente pelo que essa mulher representou na minha vida, vou revelar onde escondi o dinheiro. Mas... vais jurar-me que lhe entregarás integralmente a sua parte. Juras?
Bush acenou afirmativamente com um leve movimento de cabeça. Estava muito próximo de Twerlin; tão próximo que poderia tocar-lhe, com um simples estender do braço. A mão do outro continuava apoiada na coronha do revólver... O preso olhou-o durante apenas um segundo, calculando as distâncias.
— Simpatizo consigo, Bush. Estou convencido de que vou ficar-lhe a dever, um grande favor, amigo.
O velho riu-se estupidamente.
— Pode confiar em mim. Fale...
Mais do que uma ordem, foi uma súplica. Mas Lou Twerlin não falou. Para quê? Antes de que Bush pudesse aperceber-se do que se passava no cérebro daquele homem que o contemplava com um olhar frio e duro como nunca, o punho direito do preso atingia-o ferozmente no estômago. O carcereiro ficou-se estático, inteiriçado e pálido como um cadáver. Turvaram-se-lhe os olhos e a sua boca abriu-se ansiosamente, ao mesmo tempo que o seu corpo se dobrava para diante.
Se o punho de Twerlin agiu com rapidez, quando desferiu o golpe, mais rapidamente ainda as suas mãos se movimentaram para apertar ferozmente a garganta do aturdido velhote. Nem um simples gemido saiu dos lábios do velho Bush. A morte encontrava-se escondida nos longos e afilados dedos de Lou Twerlin. Quando, finalmente, afrouxaram a sua pressão, o carcereiro estatelou-se no solo com o pescoço quebrado. Estava morto...
Decidido, rápido, indiferente a tudo que não fossem os seus desesperados planos, Twerlin debruçou-se sobre o corpo e virou-se de costas para baixo. A sua mão direita alongou-se até à empunhadura da arma que o velho trazia no cinto. Nunca lhe passara pela cabeça que pudesse ser tão agradável o facto de ter novamente uma arma de fogo entre os seus dedos!..
Saiu para o corredor. Fora da cela o ar parecia outro. Respirou fundo. Sólidas paredes de pedra e fortes grades de ferro o rodeavam. Mesmo que lhe fosse possível fugir daquele pavilhão, uma legião de guardas lhe travariam os passos até às intransponíveis muralhas da prisão. Em todo o caso...
Ele tinha um revólver em seu poder... e com ele a certeza de que não morreria enforcado.

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