Os dois feridos de Markham haviam sido atados a pesadas argolas numa cave do edifício, ficando ali à mercê da febre e da dor, sem mais que uma cura sumária, sem delicadeza. Estavam assim há setenta e duas horas quando Rand Allen, coxeando e apoiado no ombro dum vaqueiro entrou no sombrio calabouço. Um deles estava quase agonizante, com a cabeça caída sobre o peito. O outro olhou-o com expressão alucinada, ofegando roucamente:
— Malditos sejam! Matem-nos de uma vez…
— Agua... água...
Rand esperou que lhe colocassem a cadeira que outro vaqueiro trazia e que entrasse dom Pablo Cortés. Sentaram-se os dois vagarosamente sem fazerem caso dos pedidos, maldições e súplicas dos prisioneiros. Dois vaqueiros trouxeram uma pequena mesa e uma toalha sobre a mesma. Depois, ele e um dos vaqueiros colocaram sobre a mesa comida apetitosa, uma cesta repleta de fruta fresca, uma garrafa de vinho, uma jarra de água... Depois de a mesa estar pronta dom Pablo fez um sinal com a mão e os criados saíram, fechando a porta. A luz de um cadeeiro iluminava a expressão ávida e febril dos dois presos.
— Bem, homens; está aqui uma excelente refeição, água fresca, vinho, tudo o que é necessário para os saciar...
— Agua, pelo que mais queiram... Agua...
— Dêem-nos de comer e de beber, malditos...!
— Certamente que o faremos, com uma condição —disse Rand, fria e secamente. — Vamos fazer uma pequena troca. Vocês vão proporcionar-me todas as informações que eu lhes pedir sobre o rancho de Seth Markham, número de homens às suas ordens, etc. Em troca da sinceridade poderão comer e beber até se saciarem. Mas se não forem sinceros levarão pela última vez um gole de água fresca aos lábios, e um pedaço de carne à boca. Deixá-los-emos aqui, sem os curarmos, sem comerem nem beberem, até que rebentem de raiva.
O menos esgotado respirou fundo e nos seus olhos apareceu uma sombra de esperança.
— E se formos sinceros ?
— Dar-lhes-emos uma morte rápida. É uma oferta razoável. Uma hora mais tarde Rand e Dom Pablo abandonavam o calabouço com uma série de informações, muitas delas interessantes.
— O senhor acha que nos disseram a verdade ?
— Pelo menos em bastantes pontos. Teremos de nos arriscar a comprová-lo.
— O senhor sozinho ?
— Ninguém me pode acompanhar ou iremos direitos ao fracasso.
— Mas ouviu dizer que deve lá haver uns sessenta homens ainda...
— Ouvi; e também que o rancho está muito vigiado. Por isso não escolha. Um grupo armado não conseguiria tomar o rancho de assalto. Um destacamento numeroso não conseguiria apanhar Markham porque fugiria quando se visse impotente para resistir. Pelo contrário, um homem só poderá chegar até junto dele, surpreendê-lo e dar-lhe o que merece.
— Mas não sairá vivo de lá, mesmo que o consiga matar. Isso é o que veremos. E disponho de um mês para preparar o meu plano. Deve aceitar o meu auxílio, senhor Allen. Não posso consentir que se arrisque tanto... Não me perdoaria que o matassem por lhe faltarem meios...
— Ouça, dom Pablo. Eu tenho sobre os senhores a vantagem de atuar quase com um sangue-frio completo, conheço muito bem Seath Markham e ele não deve imaginar a minha identidade. Sem dúvida os seus apaniguados lhe devem ter contado que, com a sua filha, ia também um desconhecido perigoso e até é possível que tenha conseguido alguma informação mais a meu respeito por meio de perguntas bem feitas aos seus homens...
— Isso não. Os meus homens estão bem instruídos e não há qualquer espécie de contacto entre os meus homens e os de Markham.
— Tanto melhor. Proponho-me ir diretamente ao rancho de Seth Markham e ver o que sucede. Pode ser que algum sobrevivente do grupo que nos atacou consiga identificar-me, mas também pode acontecer que nenhum o faça. De qualquer maneira, o mais certo é apresentar-me a Seth Markham já que mais não seja como prisioneiro. Ele terá uma boa surpresa ao ver-me e pensará um pouco antes de me mandar matar. Haverá um lindo jogo de rato e gato, apenas desta vez o rato sabe como as coisas vão acontecer. E antes de ele conseguir saber o que lhe convém fazer comigo, eu tê-lo-ei colocado na posição que me convém. Uma vez morto Seth Markham terei de olhar pela minha pele, naturalmente; mas terei a vantagem, sobre a sua gente, de saber as cartas com que conto, enquanto eles ficarão desconcertados.
— De qualquer maneira, é demasiadamente arriscado. Se é como esses homens disseram, nunca conseguirá sair vivo do rancho de Markham.
— Verei isso depois de ter entrado.
Isabel foi ao encontro deles e quis saber o que se passara. O pai contou-lhe, sem ocultar os propósitos de Rand. A jovem não fez comentários, Imitando-se a olhá-lo fixamente. Mas, mais tarde, depois de ele ter voltado para a cama, chegou na companhia da criada que trazia a comida, apanhou uma cadeira e sentou-se junto do leito, mandando sair a rapariga.
— Quero que mate Seth Markham, senhor Allen, mas não quero que morra lá — disse muito séria.
Allen sorriu.
— Isso é uma coisa que nem eu nem a menina poderemos saber, menina Cortés. Não se caçam ursos sem o risco duma sapatada.
— Sim. Mas há maneiras de os caçar sem ser, necessário entrar na sua guarida apenas com um punhal.
— Há. Mas o único modo de apanhar a fera com segurança é ir procurá-la ao lugar, onde se considera mais segura.
Ela ficou a olhar para ele. E repetiu:
— Não quero que o matem, senhor Allen. De modo nenhum.
Houve noticias dos rumores levantados pelo ataque fracassado à caravana. Uns homens de dom Pablo haviam levado, durante a noite, o cadáver de Burck Ilewitt a Wacco, suspendendo-o do ramo de um olmo antes do amanhecer. Os habitantes de Wacco eram americanos dos Estados Unidos na sua maioria e, portanto, partidários de Seth Markham. Avisaram este que apareceu na povoação com uma forte escolta e inventou a história de certa emboscada feita ao seu lugar-tenente quando ia apenas com dois ou três companheiros pelo campo acusando os Cortés dessa façanha. Dai resultou que os ânimos se exaltaram bastante na povoação e que dois grupos armados em que tomavam parte homens de Waco e gente de Markham fossem castigar a terra de Valia Hermoso. Dom Pablo estava prevenido e dispensou-lhes uma boa receção.
— O grupo mais importante era formado por trinta homens e encontrou-se com quarenta dos meus junto do regato da Quebrada. Houve duas longas horas de tiroteio e eles tiveram de se retirar com as orelhas baixas, levando alguns feridos e deixando dois mortos. A minha gente teve três mortos e cinco feridos. O outro grupo, de pouco mais de vinte homens, conseguiu surpreender dois dos meus pastores, assassinando-os e roubando-me seiscentas ovelhas. Mas meu filho saiu-lhes ao encontro, ainda dentro das minhas terras, com quinze homens, matou um, ferindo três ou quatro mais...
Segundo parecia, aquilo acontecia com frequência. Mas havia outra coisa que motivara a frouxa incursão dos atacantes. Um importante grupo de «comanches», quase urna centena, havia aparecido de improviso, do outro lado do rio, atacara a povoação e fora bastante difícil repeli-los. Ainda assim, várias casas haviam sido incendiadas e saqueadas, quatro homens, duas mulheres e um rapaz haviam sido mortos...
— Texas é agora morte, sangue, horror e violência — disse Isabel quando comentou com ela o sucedido. — É assim desde que conseguimos a independência e se quebraram todos os tratados assinados com os peles-vermelhas. Assim continuará até que alguém nos consiga converter num povo civilizado. E, naturalmente, Seth Markham e os aventureiros que emigram dos Estados Unidos não o conseguirão.
Ela tinha as suas opiniões de texana antiga, Rand as suas de recém-chegado, quase neutral. Fez uma insinuação sobre a oportuna aparição dos «comanches» e encontrou o seu olhar profundo.
— Não os chamámos para nos ajudarem. A tribo de «Lobo Negro» era dona dos terrenos ocupados por Seth Markham e pela povoação de Waco. Expulsaram-nos dali e é natural que não se resignem à perda das suas terras.
A situação era muito mais complexa do que à primeira vista parecia. Rand Allen havia sido educado, tal como a maioria dos seus compatriotas, adquirindo a convicção de que os peles-vermelhas eram unicamente selvagens ferozes, sem possibilidades de assimilação, cujo extermínio era condição indispensável e prévia para se ocupar e cultivar a terra. O seu extermínio era considerado não só conveniente, mas até recomendável. Contudo, três anos de cavalgadas pelo Oeste tinham-lhe acarretado não poucas dúvidas sobre a verdade que poderia haver em tais ensinamentos. Tinha encontrado com bastante frequência brancos muito mais selvagens, cruéis e merecedores de morte que a imensa maioria dos peles-vermelhas e índios cuja nobreza, generosidade e coragem os colocava, apesar de serem selvagens, muito acima dos brancos. Tinha falado com velhos caçadores Franco-Canadenses, mexicanos, americanos também, de tempos anteriores ao recente empurrão para Oeste, com pesquisadores habituados a seguirem as rotas do Oregon e Santa Fé, com negociantes... e quase todos eles lhe falavam com palavras de elogio do pele-vermelha; muitos estavam casados com índias .e levavam uma vida pouco ou nada diferente da dos selvagens. Todos admitiam o direito de princípio do índio sobre a terra dos seus antepassados e não havia dúvidas de que o branco era estrangeiro ali. E não se podia deixar de perguntar qual teria sido a reação se os ingleses, franceses, espanhóis ou russos tivessem invadido Maryland em massa para se apropriarem da terra e da água, tratando os naturais da terra como selvagens sem possibilidade de assimilação...
Passaram-se dez dias multo tranquilos em Valle Hermoso. A ferida da perna de Rand cicatrizava depressa e bem, a ponto de ter abandonado a cama e poder dar pequenos passeios apoiado numa bengala.
Um dos prisioneiros tinha morrido em consequência das feridas, o outro ia melhorando pouco a pouco, também melhoravam os vaqueiros feridos e Barclay já se movia pelo pátio.
Rand havia encontrado um verdadeiro amigo no «kentuckiano» de poucas palavras. Soube por dom Pablo e por Isabel que Barclay trabalhava há, quatro anos na fazenda, ao princípio como vaqueiro, depois como guarda-costas da jovem, quando da morte de sua mãe. Sabiam pouco sobre ele e o seu passado e abstinham-se de lhe fazer perguntas porque o consideravam de sua total confiança. Os outros também o tratavam com deferência e respeito. Até então, segundo parecia, havia sido o único americano ao serviço dos Cortés. E Rand começava a suspeitar qual a causa daquela fidelidade à família. Porém, foi o próprio Barclay quem aclarou as coisas, certa tarde em que se encontravam sós, quando viram Isabel passar para as casas dos vaqueiros e parar a conversar com algumas crianças.
— É a alma de Valle Hermoso — comentou com lentidão, sem olhar para Rand. Este concordou num tom impessoal.
— É. Tem muito valor.
Barclay olhou-o então.
— O senhor ainda não o sabe bem.
— E o senhor, sim ?
— Há quatro anos que estou em Valle Hermoso. Ela tinha catorze anos quando cheguei. Vi-a converter-se em mulher.
— E enamorou-se dela, não é verdade ? E isso que me quer dizer?
— Não. Ela já escolheu. O senhor é cavalheiro, um homem educado, da classe social dela. Eu sou um homem do povo, sem nada para lhe oferecer.
— Um homem vale tanto como outro, Barclay.
— Eu sei. Mas nunca tive ilusões desse género. Eu tinha uma irmãzinha da idade dela, em Kentucky... Isabel faz-ma recordar muitas vezes...
— Que se passou com sua irmã?
— Morreu. Éramos granjeiros. Houve anos maus. Tivemos de deixar tudo nas mãos de um usurário e emigrar. Fomos para Arkansas e fixámo-nos num bom terreno na margem do White River, perto de uma povoação chamada Galico. A princípio tudo correu bem. As nossas terras confinavam com as dos índios a «osagas» e procurámos manter boas relações com eles. Mas as coisas mudaram. Havia pessoas ansiosas por despojar os índios que não se lhes submetiam e chegou um momento em que, nós os que éramos conhecidos como seus amigos, não podíamos estar seguros. Uma noite, um grupo de mascarados assaltou a nossa casa. Conseguimos repeli-los, mas mataram minha irmã e queimaram-nos a granja. Meu pai não era homem de lutas; nunca o tinha sido e meus irmãos mais novos também não eram. Mas eu sempre fui. Um dos assaltantes tinha morrido e conhecíamo-lo. Disse a meus pais que eles podiam continuar a procurar um lugar onde pudessem viver em paz, mas eu ficava. E fiquei. Tinha então vinte e três anos, pois isso aconteceu há dez. Ao fim de duas semanas cacei num bosque um dos amigos do homem, que morrera ao assaltar a nossa granja. Demorou uma hora a dar-me os nomes de todos os que haviam tomado parte no assalto e deixei-o enforcado num ramo de árvore. Levei cinco semanas para matar cinco dos oito que ainda viviam. Os outros três fugiram e eu segui-lhes a pista. Matei o último em Houston há quatro anos e, pouco depois, vim cair aqui. Com o meu nome verdadeiro sou procurado em Arkansas por assassínio, mas a minha consciência não me acusa de nada. Fiz minha a lei da fronteira e isso foi tudo.
— Então também é amigo dos índios...
— Sou. Nunca me fizeram mal. Em comparação vi o que Seth Markham e a sua gente fizeram à senhora Cortés, vi o que, compatriotas meus, fazem quase todos os dias na fronteira. Minha mãe tinha sangue índio nas veias, mas meu pai era filho de alemães da zona do Reno. Estes texanos velhos são orgulhosos, cruéis, duros, mas nobres. Nunca faltaram à sua palavra nem violaram um tratado solene. Na antiga Louisiana vivia-se em paz; Os missionários entravam sem temor nas aldeias índias, os caçadores brancos, pesquisadores ou comerciantes, também o faziam e casavam com, as «squaws». Eu falei com muitos desses homens e todos, sem exceção, recordam tais tempos com saudade. Mas a gente de Este, os políticos, os que nada têm, os que nunca se acostumaram a um trabalho honrado, os amantes do risco e da aventura, puseram os olhos cobiçosos nas terras a Oeste do Mississípi, estão a convertê-las num inferno e acabarão, talvez, por as ocupar, mas não sem antes exterminarem os seus atuais ocupantes que não se hão-de resignar ao extermínio. Sim, eu sou amigo dos índios, mesmo agora que se revoltam como feras. Até as feras têm direito a defender as suas vidas e as suas crias...
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