sexta-feira, 16 de novembro de 2018

BIS168.06 A história de Mc Ginnis

No Oeste, como aliás em todos os países de clima quente, quando acontece chover a água cai do céu em torrentes e alaga tudo em muito pouco tempo.
Naquela manhã, Joseff Mac Donald que além das suas funções de capataz parecia ter vocação para adivinho meteorológico, já por mais de uma vez plenamente comprovada, anunciou que, dentro de uma hora, o máximo, ia chover torrencialmente. Em face deste aviso, toda a gente se entregou à faina de arrecadar tudo o que se encontrava no exterior que ficasse prejudicado com a chuvada. McGinnis estava entre eles e ouviu um dos vaqueiros avisar:
— Aí vem Hook!
Franck olhou pelo canto do olho e viu efetivamente Graham Hook e mais três correligionários aproximarem-se a passo lento das suas montadas. Enquanto Hook continuava na direção onde eles se encontravam, os três companheiros ficaram parados à porta do edifício principal e distanciaram-se entre si. Todos os vaqueiros estavam desarmados e McGinnis que trabalhava dentro do armazém, ao lado de Allan, voltou as costas para a entrada para não ser reconhecido.
— Eh, rapaziada, onde está o vosso patrão? — bradou Hook do cimo da sua montada.
— Deve estar em casa — disse um dos vaqueiros.
-- Vem chuva, hem? — depois tirou um cigarro do bolso da camisa e acendeu-o, jogando o lume para cima de um monte de palha seca, onde o fogo imediatamente se ateou. Um vaqueiro correu e com as botas logrou apagar o incêndio. Graham riu divertido.
— Vou ter uma conversa importante com o vosso patrão. Não quero que nenhum de vocês tome parte na mesma ou intervenha. Meus homens têm ordem de disparar sobre aquele que o fizer! Entendido? —com uma risada Hook afastou-se.
Allan, que se encontrava ao lado de McGinnis, correu para a porta. Este segurou-o.
— Fica quieto! — ordenou-lhe.
Entretanto, os vaqueiros tinham deixado de trabalhar e presenciavam a cena. O rancheiro desmontou em frente da casa e deu uma palmada no solípede que se afastou alguns metros.
Ele e os seus homens formavam um quadrado, do qual Graham era vértice de um dos ângulos.
— Será que esta gente fugiu toda com medo do papão? — inquiriu ele em voz alta para um dos seus homens, de modo a ser ouvido dentro de casa.
O velho Estapoole surgiu à porta e logo atrás dele, a filha Helena.
— Não Hook, ninguém fugiu! Porque havíamos de fugir? De ti? — riu. — Quando nasceste já eu cá andava. És muito novo para meteres medo a homens da minha idade!
Estapoole estava desarmado. Hook avançou alguns passos na sua direção.
— Deixa-te de palavras ocas, velhinho. Ontem fiz-te uma proposta. Venho saber a tua resposta.
— Até nisso demonstras que és uma criança! Não precisas dela para nada, já sabes qual é.
— Não me conheces bem, Estapoole. Quando se me mete uma coisa na cabeça, não descanso enquanto não a realizo. É o caso. E tenho muitos meios ao meu alcance.
— Daqui não levas nada. É melhor que te ponhas a andar — e Estapoole virou-lhe as costas, com a intenção de se afastar para o interior de casa.
Mas as palavras de Graham apanharam-no a meio do percurso:
— Olha para a tua filha, Estapoole. O que fazias se lhe acontecesse alguma desgraça?
O velho virou-se, irado, mas o outro ria.
— Está uma bela mulher! E eu ando à procura de uma desde que perdi a Lily.
Hook avançou para eles. Estapoole colocou-se entre os dois.
—É agora! — disse McGinnis de dentro do barracão removendo um monte de feno e pondo a descoberto duas carabinas.
 Deu uma a Allan.
— Domina-te. Só depois de eu disparar!
— Está bem!
Os três acólitos presenciavam divertidos a cena: Hook, Estapoole e Helena, tendo esquecido a vigilância do barracão, o que facilitou a saída dos dois homens, um pela frente e outro por trás. Segurando a carabina com uma das mãos, McGinnis avançou silenciosamente até perto do grupo.
Graham conseguira apanhar um dos pulsos de Helena e puxava-a para si. O velho tentou intervir, mas apanhou um soco e caiu de costas.
Franck, segurando a carabina na mesma posição, disparou para o ar. Este disparo sobressaltou toda a gente e os três pistoleiros iam agir, quando outro disparo, provindo de detrás de umas barricas, onde Allan se tinha agachado, derrubou um dos cavaleiros, mortalmente ferido. Aquilo foi o bastante para os outros dois levantarem lestamente as mãos acima da cabeça.
Hook tinha largado Helena e olhava espantado para tudo aquilo. McGinnis avançou na sua direção.
— Não sei o que faz o xerife Flanagan nesta altura, mas o teu lugar é na cadeia de Hayman City.
Graham tartamudeou qualquer coisa e McGinnis prosseguiu.
— Desaparece da minha vista, patife, e não voltes a pisar o chão deste rancho, porque... só uma compaixão enorme e estúpida me impede de te matar agora mesmo. Mas podes ficar certo de que o farei na próxima altura.
— Maldito preto! — grunhiu Hook, e avançou para a sua montada.
Estas palavras perderam-no. Não era a primeira vez que as proferia, mas desta vez o caso era diferente. McGinnis atirou a arma para o velho Estapoole, que a apanhou no ar, e agarrou Graham pelos ombros, gritando:
— Cuidado com os outros, Allan!
Os dois homens rolaram na poeira levantada. Só se ouviam gritos de dor e o barulho dos punhos a bater na carne. Os cavalos relincharam assustados. Toda a gente assistia imóvel, de olhos esbugalhados, àquele duelo de morte.
Subitamente os contendores ficaram quietos e a poeira extinguiu-se. Um deles levantou-se. Estava completamente irreconhecível, sujo do pó que se agarrara ao suor, a roupa em farrapos e a sangrar de inúmeras feridas.
Era McGinnis! Segurou-se com dificuldade nas pernas, cambaleando como se estivesse bêbado e, apontando para o corpo imóvel do outro, disse para os acólitos:
— Levem-no. E, quando ele acordar, se não estiver morto, digam-lhe que, para a próxima vez, mato-o como a um cão desprezível.
O velho Estapoole e Helena correram, mas já era tarde. Com um baque surdo, McGinnis voltou a cair e não se levantou. Os dois pistoleiros desmontaram, colocando o corpo inanimado do chefe sobre a montada que lhe pertencia, depois voltaram a montar e afastaram-se.
Allan ainda disparou duas vezes por cima deles, para os obrigar a ir mais depressa e veio a correr para junto do corpo do preto. Os vaqueiros correram também e transportaram o corpo inanimado para o interior da casa. Estapoole ia à frente, a recomendar:
— Com cuidado! Com cuidado!
Pousaram-no sobre uma mesa.
— Vai buscar água e ligaduras, Helena — ordenou o rancheiro.
— Está morto, papá? — perguntou-lhe a rapariga muito confundida.
— Não, rapariga. Este homem é duro! Amanhã estará são como um pero.
Efetivamente McGinnis ficou bom em pouco tempo e, um dia depois, saía a passear. Helena viu-o sair e dirigiu-se-lhe:
— Vai passear, mister McGinnis?
— Apenas dar uma volta por aí, para desenferrujar as pernas — respondeu-lhe o cow-boy ansioso por afastar-se.
Tinha chegado à conclusão de que a presença da rapariga junto de si o atarantava. Dois factos faziam que isto realmente acontecesse: primeiro, por ela ser quase da sua cor, e segundo, por ser muito atraente. Todavia, ela foi contra os seus desígnios, ao pedir-lhe:
— Importa-se que eu vá consigo?
— Comigo?! Não, não me importo nada, antes pelo contrário...
Caminharam algum tempo em silêncio, até que Franck compreendeu que lhe competia a si dizer alguma coisa.
— Quero agradecer-lhe os cuidados que tem tido por mim... A meu ver cumulou-me com atenções que eu, de forma alguma, mereço.
— Ora, ora, não diga isso. Acha que fui sua enfermeira para que depois me agradecesse?
McGinnis calou-se envergonhado e, entretanto, ia pensando: «oxalá fosse por isso!»
— Nunca nos falou de si, mister McGinnis. Desagrada-lhe falar sobre a sua infância?
— A minha infância?! — repetiu o negro e não pôde deixar de sorrir. — Que terá ela de especial? É uma história triste e pobre, menina Estapoole...
— Mas conte, conte...
McGinnis admirou-se do interesse e calor das palavras da jovem.
— Tive um nascimento muito modesto. Meu pai era mineiro. Dois anos depois de eu nascer, meu pai ouviu dizer que tinha sido encontrado ouro nas margens de um rio e marchou para lá, deixando-me a mim e a minha mãe sós num povoado florescente. A nossa casa, apesar de modesta, era bonita. Em todas as cartas que minha mãe escrevia a meu pai dizia-lhe que queria ir para o pé dele, que não se importava com as dificuldades que pudessem surgir e que tudo se resolveria. Meu pai respondia dizendo que as condições de vida eram ainda muito más, que vivia num barracão com mais doze homens, cada qual cozinhando as suas próprias refeições. Minha mãe aguentou quatro anos naquela incerteza, findo esse tempo preparou tudo, escreveu a meu pai que partiria imediatamente, e dias depois deixávamos o povoado na diligência. Contra todas as previsões, meu pai recebeu-nos alegremente, como se não reprovasse a atitude da minha mãe, riu quando me atirou ao ar e apresentou-nos aos mineiros presentes. Estava mais velho, rugas profundas sulcavam-lhe a face e os cabelos começavam a branquear.
Disse a minha mãe que tudo o que havia podido arranjar era aquele barracão enegrecido, a madeira esverdeada e carunchosa pela ação da humidade, as janelas sem vidros — e foi lá que ficámos a viver. Quando entrámos, a primeira coisa que minha mãe viu foi um monte de latas de leite e conservas, abertas e vazias. Acho que a pobre mulher deve ter execrado naquele momento a profissão de meu pai. Nas vinte e quatro horas imediatas conseguiu dar um jeito em tudo e tornou o barracão numa casa habitável, fazendo até que um cheirinho a comida apetecível inundasse o ambiente. Quando meu pai chegou da mina, admirou tudo em silêncio, chegou ao pé de minha mãe e beijou-a na testa — foi a maneira mais terna de lhe agradecer. Laky Alton, assim se chamava o local, viria a tornar-se em poucos anos um centro comercial e habitacional muito próspero, mas, naquela altura, era apenas um descampado à beira rio, com meia dúzia de barracões, toscamente construídos e as bocas das minas, medonhas como entradas para o Inferno. Comecei a minha existência em Laky Alton entrando e saindo das minas, aprendendo costumes mineiros... Mas, reparo que estou a maçá-la com toda esta descrição...
— Oh, não, prossiga... — pediu-lhe a jovem mulata.
Tinha-se sentado no chão e ouvia com muito interesse a narrativa de McGinnis, de pé a seu lado.
— Foi em Laky Alton que eu conheci o Bill, não sei se ele possuía outro nome qualquer, é possível que sim, mas toda a gente o conhecia e tratava por Bill, o «zaragateiro». A razão desta alcunha era devida ao facto de Bill passar a vida no saloon, jogando, bebendo e envolvendo-se em desordens. Mais tarde, quando Laky Alton se transformou num povoado decente e chegou um xerife, Bill teve de ir-se embora para outro lado qualquer. Eu gostava de Bill porque ele, quando não estava bêbado, era bom para as crianças. Fui crescendo e, quando tinha dez anos, ele fez-me um convite fascinante: «Você quer aprender a atirar?» Eu via-o, de vez em quando, a atirar em moedas e latas vazias de cerveja, com uma precisão incrível e, nos meus ouvidos ressoavam ainda as histórias que ele nos contava de cow-boys aventureiros que erravam pelo Oeste. Bill era quase deste género, apenas quando estava bêbado era muito grosseiro. Quase gritei de alegria ao ouvir aquele convite, mas o meu entusiasmo arrefeceu quando me lembrei que meu pai não ia gostar daquilo. Ele reprovava que eu andasse com Bill, pois sempre vira em mim um mineiro que o havia de continuar. Por isso lhe respondi: «Fico contente, Bill, mas vou pensar». «Está bem» — respondeu-me ele — «seu pai não gosta, não é?» Gaguejei qualquer coisa a responder-lhe e naquela noite não dormi a pensar no acontecido e, o certo, é que dois dias depois eu tinha a minha decisão tomada. «Quando você quiser, podemos começar, Bill» — disse ao meu amigo. Meses passados eu já atirava razoavelmente bem. Meu pai continuava à cata do filão que se lhe negava e que, afinal, nunca viria a encontrar. Entretanto, outros mais afortunados, ficavam ricos e Laky Alton progredia progressivamente. Aos vinte e cinco anos fui eleito xerife do povoado, por morte do outro representante da autoridade. Entrementes, meu pai falecia vítima da terrível tuberculose mineira e minha mãe durou apenas mais treze meses — nessa altura era eu quem os sustentava. A partir daquele momento nada me ligava àquela terra. Pedi a demissão do cargo e parti. Aos vinte e oito anos era agente especial do Governo. Nessa investidura fiz milhares de milhas a cavalo, atravessando os Estados Unidos de ponta a ponta, desde o Colorado ao Arkansas, do Novo México ao Missuri. Agora, com trinta e dois anos, sinto-me velho, cansado, culpado das mortes que fiz, embora sabendo ter agido em defesa da Lei. Contei-lhe uma longa história, miss Helena, que a deve ter maçado...
— Não julgue isso. Ansiava por conhecer a sua vida. Qualquer dia conto-lhe a minha, está bem? — e estendeu--lhe os braços, para que ele a ajudasse a levantar.
Depois regressaram a casa.
Chovia torrencialmente fora do barracão. Havia dois dias que não parava de chover e os trabalhos do rancho estavam, a bem dizer, parados.
McGinnis dispensava especial atenção ao seu cavalo, inseparável companheiro de muitas aventuras e de muitos momentos de apuro. O preto gostava de o escovar e o solípede soltava pequenos relinchos de contentamento. Naquela manhã, sem nada que fazer, Franck metera--se no barracão e sentara-se ao pé da montada, a escová-la. Allan e o pai estavam dentro de casa entregues a um fatigante e inacabável jogo de cartas.
— Então, meu velho, que tal te dás neste rancho? —McGinnis falava só. — Terminaram as correrias pela pradaria, os tiros e as lutas de morte. Estamos velhos...
— O cavalo não fala, McGinnis — ao mesmo tempo que ouvia estas palavras sentia que uma mão pousava suavemente no seu ombro direito.
Voltou-se e viu Helena Finley Estapoole junto de si. Trazia os cabelos molhados, colados ao rosto, o que a fazia mais bonita.
— Está uma manhã triste, não acha?
—É verdade. E os serviços da fazenda vão ficando atrasados.
— Apesar disso, gosto da chuva. Faz que nos sintamos mais intimamente, mais dentro de nós próprios. Quando era pequena, ficava com o nariz colado aos vidros da janela todo o tempo que chovia, a olhar para fora — riu. — A chuva é o flagelo dos pobres, daqueles que não têm uma casa para se abrigarem.
— Quando entrei falava ao seu cavalo. Gosta muito dele?
— Bastante. Temos sido companheiros em muita coisa, boa e má.
—É de quem gosta mais nesta vida?
McGinnis olhou admirado para a jovem. Ela estava serena, levemente trémula. A voz dela soara tão suave como numa súplica. Franck pegou-lhe nas mãos.
— Porque me pergunta isso? Como adivinhou que gosto de si?
— Porque também o amo!
Ficaram um segundo calados.
— Quando começou a gostar de mim, McGinnis?
— No primeiro momento em que a vi. Por isso fiquei.
— Então foi por minha causa que não partiu?
— Talvez.
— Sabia que você estava aqui e vim porque queria saber o que pensava ou sentia por mim. Porque o amo muito, McGinnis. E queria saber se você me amava tanto quanto eu o amo a si. — Querida!
Franck puxou-a para si suavemente. Helena não resistiu e trocaram o primeiro beijo. Quando se separaram ele notou que a porta se fechava de mansinho e conseguiu avistar Allan.
— Seu irmão estava à porta e foi-se embora! — disse Franck.
— Oh!
— Irei falar com ele. Não temos nada a ocultar.
Por qualquer motivo, Allan Estapoole passou todo o dia encerrado no seu quarto. A mãe foi levar-lhe o almoço e jantar, dizendo que ele se encontrava com um pouco de febre.
A manhã seguinte nasceu sem chuva e o Sol metia, dentro em pouco, dignar-se aparecer. Isto foi o sinal para que todo o pessoal do rancho reiniciasse os seus afazeres. A paisagem mostrava um aspeto desolador: pastagens inundadas, árvores caídas, culturas perdidas.
O velho Estapoole deu o exemplo, empunhando urna enxada para abrir um rego para escoamento das águas.
McGinnis andava à procura de Allan desde a manhã anterior. Impunha-se que trocassem umas palavras a respeito da cena que ele presenciara e que podia tê-lo preocupado. Mas, se ele o procurava, o outro parecia não querer ser encontrado. Franck sabia que Allan saíra do quarto para trabalhar, mas ignorava o sítio onde se teria metido. Sem falar com ele não mais se sentiria à vontade naquela família, nem poderia encarar livremente Helena.
Allan tinha de saber que os seus propósitos eram honestos, que ambos se amavam e que pensavam casar-se. Trabalhando, McGinnis levantava-se frequentemente, erguendo o tronco, para procurar o jovem com o olhar. E, sempre acabava por não o avistar. De uma das vezes, porém, viu-o a trabalhar isoladamente e dirigiu-se imediatamente para lá.
Allan ouviu o ruído dos seus passos mas não se voltou.
— Olá, Allan.
— Olá, McGinnis — respondeu sem o olhar.
— Tenho andado à tua procura. Preciso de falar contigo sobre aquilo que viste ontem. Quero que saibas que, eu e a tua irmã...
— Não me interessa — interrompeu-o o jovem com energia. — Confio em ti. É tudo. O resto não me interessa... E afastou-se rapidamente...

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