sábado, 24 de novembro de 2018

BIS170.01 O orador é executado

— Neste Estado de Texas, soberano e livre, nesta primavera de 1843, toda a gente faz o que lhe apetece, com a única condição de ter força suficiente para impedir que outros lho proíbam.
O orador foi premiado com uma salva de palmas unânime. A reunião política efetuava-se no estabelecimento mais amplo da cidade de Westdale, comunidade do uns quatrocentos e oitenta habitantes brancos, fundada havia cinco anos precisos, aquando da independência do Texas, por um punhado de aventureiros procedentes do Nordeste e chegados ali, como quase todos os americanos que se dirigiam para o flamante Estado, com a esperança de enriquecerem rapidamente.
As cento e tantas famílias em que se tinham convertido as trinta e duas primitivas, falavam alto das ótimas condições das terras dos arredores e, na verdade, poucas se poderiam encontrar tão boas para pastagens e agricultura nas margens do rio Trinidad.
Também é verdade que, pelo menos uma quinta parte dos duzentos homens da comunidade trabalhava o menos possível; mas isso era pecha do lugar e da época, se bem que o facto sempre tenha sido um fator comum a todos os lugares e a todas as épocas do mundo.
Um daqueles homens era Jebediah Lowatt, precisamente o orador. Havia chegado a Westdale três anos montado num rocinante e com uma velha mala como única bagagem; afirmara ser um competente advogado e acreditaram-no.
Embora, naquela altura, um advogado não fizesse falta absolutamente nenhuma, ficara e não demorara muito tempo a demonstrar que tivera boa ideia ao ficar, sabido, desde os tempos de Adão, que, logo que se juntam mais de dois sobre qualquer pedaço de terra, tarde ou cedo surgem os pleitos. Westdale não ia ser uma exceção.
Por outro lado, o Estado de Texas tinha necessidade urgente de se estruturar em bases razoavelmente sólidas e legais se queria sobreviver entre a inimizade dos seus antigos dominadores do Sul, e a amizade, não menos perigosa, dos seus protetores do Nordeste e Leste, sem contar com os «comanches», «kiowas», «apaches» e outras tribos guerreiras que, com toda a justiça e uma boa dose de agressividade, reclamavam o direito ao solo dos seus antepassados, solo que lhes ia sendo cerceado paulatina mas incessantemente.
Daí o facto de o advogado chegar a tornar-se pouco menos que imprescindível para dar uma aparência legal à comunidade recém-constituída. Fora nomeado juiz e trabalhava agora para ser eleito presidente do município.
Entretanto, havia conseguido meios de mandar construir uma casa confortável, de comprar uma bonita escrava negra para o servir e de casar com a jovem e não malparecida viúva dum pioneiro, cujo marido tivera a pouca sorte de perder a cabeleira às mãos dum guerreiro «comanche». Tinha feito amigos e, naquela noite, estava a pagar bebidas aos mesmos, num esforço para alcançar o triunfo.
 Agora, olhava amistosamente para os homens que o rodeavam, uns sessenta, aptos para votar, beber, jogar às cartas e disparar tiros. Havia-os de todos os tipos e nem todos eram muito recomendáveis como habitantes duma tranquila comunidade rural. Mas Westdale estava ainda muito longe de o ser, como deixou bem claro o orador, acto continuo:
— Além disso, temos de tomar em consideração que, apenas a trinta milhas ao norte, vagueiam os malditos «comanches» à caça de brancos, que as quadrilhas de foragidos da fronteira não cessam de fazer incursões contra os ranchos isolados e que, até hoje, Texas não dispõe duma força militar bastante importante para fazer respeitar as suas fronteiras contra os repetidos ataques dos malditos mexicanos. Isto obriga Westdale e todas as comunidades a organizarem-se devidamente para manterem os seus direitos sobre a terra que tanto esforço e tanto sangue custou libertar.
De novo estalaram os aplausos. O advogado-juiz falava bem, sem dúvida, e, além disso, aquela gente estava predisposta a seu favor. Assim animado, o homem continuou a sua peroração, afirmando que a cidade de Westdale era uma das mais progressivas do Estado e não podia dispensar uma adequada organização municipal.
— Carecemos dela até agora, porque o actual presidente do município, aliás excelente pessoa, não está em condições de desenvolver uma atividade realmente eficaz, no plano camarário. Westdale necessita duma escola para as crianças, duns paços do concelho decentes, dum xerife como deve ser...
Continuou a enumerar as falhas da administração cessante, na sua opinião, fazendo-o num tom cortante ao mesmo tempo persuasivo. No final soaram novamente as aplausos. Então, entrou o forasteiro.
Para dizer a verdade, nada fizera que pudesse chamar a atenção e passou quase completamente despercebido. Além disso, não era raro chegarem forasteiros a qualquer hora do dia ou da noite, uns de passagem, outros para ficarem.
Assim, pôde acomodar as suas costas largas contra a parede de adobe a um lado da entrada e ouvir o orador sem a menor dificuldade. Era um homem alto, de pouco mais de trinta anos, vestido com um casaco de camurça, cheio de franjas, calças de fazenda cinzenta e botas de montar de couro avermelhado, camisa cor de sangue de touro e um lenço azul à volta do pescoço, bronzeado e musculoso.
Cobria-se com um chapéu mole, de abas largas, apoiava a mão numa «30-30» e cingia um cinturão-cartucheira, do qual pendia, no respetivo coldre, um dos novos revólveres de ação simples fabricados pelo coronel Colt e que ainda não estavam muito espalhados no Texas, apesar de serem muito apreciados e trazia ainda um punhal dos inventados por Bowie.
Sem qualquer dúvida tratava-se de um homem da pradaria, de um caçador vagabundo, de um futuro rancheiro... ou de um foragido. Tinha umas feições interessantes e um nariz quase aquilino, denunciador da presença de sangue autóctone nas suas veias, por mais que o cabelo fosse alourado e os olhos azuis-acinzentados.
Puxou da bolsa de tabaco e dum livro de papel e enrolou vagarosamente um cigarro, com os dedos fortes, e acendeu-o com um curioso isqueiro de isca.
Não se moveu do seu lugar enquanto durou o discurso eleitoral. Depois, quando Jebediah Lowat acabou de falar e os seus partidários se cansaram de o ovacionar, empurrando-o para junto do balcão para lhes pagar a última rodada, o forasteiro aproximou-se por sua vez. Lowatt, vermelho de satisfação, ordenava em voz alta ao taberneiro:
— Vamos, Clarke, serve a todos a última bebida à minha saúde...
— A mim também, Jeb?
O interpelado pareceu receber um choque e empalideceu rapidamente, enquanto se voltava devagar. Os outros olhavam com curiosidade para o recém-chegado que tinha ido manobrando até ficar atrás do advogado para quem olhava com severidade.
Houve um breve silêncio, durante o qual todos os presentes souberam que os dois protagonistas da cena se conheciam bem. Lowatt passou a língua pelos lábios, secos subitamente, e balbuciou:
— O... olá, Rand...
— Estou certo de que não me esperavas, não é verdade?
— Ou... ouve, Rand. Não... não te precipites. Estamos no Texas...
— Onde toda a gente faz o que lhe apetece, com a única condição de ter força suficiente para impedir que outros lho proíbam. Uma das tuas frases felizes: ouvi-te da rua e fez-me entrar.
O advogado-juiz maldizia a ideia que tivera de fazer naquela noite o seu comício eleitoral e procurava desesperadamente encontrar uma saída airosa para a situação mais difícil da sua existência.
— Todos estes senhores são meus amigos e...
— Aposto que não te conhecem como eu. Mas estou certo de que serão ainda mais amigos das suas vidas. Deixa estar as mãos quietas, Jeb. Sabes que não te podes adiantar a mim.
— Bem! Parece, forasteiro, que o senhor e o juiz Lowatt têm uma conta pendente... — iniciou um dos que tinham ouvido o discurso.
Sem o olhar mais diretamente que aos outros e sem perder a expressão severa, o forasteiro assentiu.
— Evidentemente que sim. Apenas este indivíduo não se chama Lowatt, mas sim Burns: Jebediah Burns, demandista e politiqueiro do condado de Madison, em Maryland. Frequentámos a mesma escola e dei-lhe muitas sovas.
A coisa prometia interesse. E o forasteiro não parecia ser homem que se atemorizasse com facilidade. Deste modo, o auditório optou pela prudência.
— Este indivíduo aqui presente é, além disso, um perfeito malandro, ladrão, vigarista e outras tantas coisas. O motivo que o leva a não sentir nenhuma alegria em me ver é que, há três anos, ludibriou um irmão meu ficando com vinte mil dólares e, ainda por cima, conseguiu, com as suas manhas, fazê-lo passar por defraudador do Fisco e que o prendessem; entretanto, abandonou a povoação onde ambos residiam, levando tudo o que a sua vítima tinha de algum valor e ainda a esposa de meu irmão, enganada com falsas promessas, que não cumpriu, evidentemente, deixando-a abandonada e doente em Memphis, alguns meses mais tarde. Nega isto, Jeb, diante destes teus amigos, se é que te atreves.
— Ou... ouve, Rand, eu... tu não podes fazer-me nada aqui. Este é um país soberano, fora dos Estados Unidos, e...
— Ninguém me impedirá de te meter uma onça de chumbo no coração negro de bandido que tens, Jeb Burns. Roubaste e ultrajaste um dos teus amigos de infância, converteste uma mulher honrada numa prostituta doente que passeia a sua degradação por todos os tugúrios das margens do Mississípi, deixaste sem mãe um rapaz de três anos e duas famílias mergulhadas na humilhação e na tristeza. Tudo isso bem merece uma bala. Segundo parece, fizeram-te juiz. Que pena aplicas no teu tribunal aos ladrões, vigaristas e corruptores de esposas? Diz, vamos!
O acusado engoliu saliva penosamente. Via a morte e também a impossibilidade de se safar dela. Contudo, ainda o tentou.
— Rapazes, amigos, este homem não diz toda a verdade. Ele é...
O forasteiro deu um passo, estendeu a mão, agarrou-o pela camisa e, com a outra mão, esbofeteou-o várias vezes fazendo-lhe tombar a cabeça a cada golpe dado com violência.
Ninguém pareceu interessado em o impedir. Muitos pensavam já num possível sucessor para a candidatura ao lugar de presidente do município. Por fim, o forasteiro soltou a sua presa com um empurrão e Lowatt apoiou-se no balcão para recuperar as forças. Tinha a boca e as narinas rasgadas e sangrentas, mas limitou-se a limpá-las um pouco com a manga. O seu inimigo ergueu novamente a voz, dominando o ruído da assistência:
— Senhores, estou há dois anos e meio a seguir a pista deste homem. Havia-a perdido há muito porque me conhece e teve o cuidado de apagar os sinais da sua passagem, seguro de que eu o ia perseguir. Esta noite cheguei aqui sem suspeitar de que estivesse tão perto o homem que procurava. Atei o meu cavalo ao poste, dispondo-me a tomar uma bebida e a perguntar por alojamento, mas então chegou-me a sua voz. Isto é tudo o que tenho a dizer. Assiste-me o pleno direito de o matar como a um cão, mas eu não sou um assassino. Algum dos senhores quer emprestar o seu revólver a este homem?
— Que pretende, forasteiro? — inquiriu o que já antes falara. — Aqui temos lei e...
— Representa-a este indivíduo, bem sei. Lamento, mas vão ter de arranjar outro juiz e futuro presidente do município. Pretendo matá-lo agora mesmo, dando-lhe a oportunidade de se me adiantar. Ë o máximo que merece, e eu jogo limpo.
— Não é! — balbuciou Lowatt. — Não façam caso dele! Foi sempre um temível atirador; matou vários homens em duelo... Não podes agir contra mim no Texas! Aqui sou o juiz e...
O forasteiro puxou lentamente pelo seu «Colt» e engatilhou-o. Houve um afastamento brusco de pessoas para os lados. Lowatt interrompeu-se em seco e ficou encolhido, olhando para o orifício negro da arma que apontava para os seus olhos.
— Vai rezando o que souberes, Jeb Burns.
— Não...!
— Ou então aceita a oportunidade que te dou de morreres como um homem. Tens quinze segundos. O amigo de Lowatt interrompeu novamente.
— Afirma que dará ao juiz a oportunidade dum duelo leal?
— Foi isso que eu disse. Que pegue num revólver e se coloque na extremidade desta sala. Eu me colocarei na outra extremidade e o senhor mesmo pode dar o sinal.
— É razoável rosnou outro dos presentes.
— Juiz, o que este forasteiro disse tem de ser aclarado ou fá-lo-emos sair da povoação. Não gosto de sedutores de mulheres.
— Apanharei esse revólver — disse com voz rouca.
Um dos presentes estendeu-lhe o seu. Rapidamente, os outros apressaram-se a encostar-se à parede e ao balcão. O forasteiro aguardou que Lowatt se pusesse em marcha, para se voltar e ir vagarosamente para o outro extremo da sala...
Mas o juiz não pensava chegar ao duelo. Fez mentalmente o cálculo das probabilidades e decidiu-se pelo assassínio. Levantou o percutor do revólver, aspirou ar e rodou sobre os calcanhares, preparado para disparar sobre as costas indefesas do seu inimigo. Mas não havia contado com o facto de este o conhecer muito bem e há muito tempo. Ia espreitando as feições dos presentes e previu o início do gesto do seu adversário. Rodou veloz como um raio, viu-o já a apontar, preparado para puxar o gatilho, e disparou por sua vez...
Houve apenas um estampido. Depois um silêncio terrível. Todos viram como o juiz Lowatt estremecia ao receber o impacto do chumbo, como largava o revólver e levava as duas mãos ao estômago, apertando-as ali, crispadas; como cambaleava tal como uma árvore ferida pela penúltima machadada do lenhador, como o sangue vermelho começava a escorrer por entre os seus dedos...
E como, finalmente, com uma expressão dorida e de horror, dobrava os joelhos lentamente, até tocar com eles não chão, oscilava uns instantes e depois rolava pesadamente pelo solo, revolvendo-se sobre o seu próprio sangue até ficar aquieto após uma última convulsão.
Ninguém se moveu. Alguém aspirou ar com ruído, alguém moveu os pés, alguém deslocou um pouco uma cadeira...
O forasteiro quebrou aquele silêncio com uma afirmação cortante:
— Era um traidor cobarde, assim viveu e assim morreu. Se alguém tem alguma coisa a dizer que o faça agora.
Depois de pigarrear nervosamente, o que entregara o seu revólver respondeu por todos os presentes:
—Não há nada a dizer, forasteiro. Ele é que teve a culpa...
Então o forasteiro soprou deliberadamente o cano da sua arma, donde saía ainda uma pequena coluna de fumo azulado, abriu o tambor com um gesto preciso, extraiu a cápsula inútil e colocou outra bala no lugar da anterior, fechando-o de novo.
Olhou para a sua vítima e rezou-lhe o responso final:
— Nunca valeu muito mais que uma bala. Ninguém duvidou de que estava a dizer a verdade.

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