segunda-feira, 12 de novembro de 2018

BIS168.02 Pratos para o homem branco

Vista de longe, Hayman City nem chegava sequer a parecer uma cascata. Era, simplesmente, um aglomerado de barracões, alinhados uns ao lado dos outros, que tinham sido aproveitados para armazéns e dois saloons, onde os rancheiros que viviam nas vizinhanças, e eram em grande número, vinham aprovisionar-se de víveres e outras coisas mais necessárias nas suas fazendas.
O forasteiro montava um belo cavalo malhado e entrou em passo moderado na povoação, olhando com curiosidade para todos os lados. Vestia um blusão de couro, calças pretas que terminavam dentro das botas de montar e na cabeça trazia um enorme chapéu de abas de corvo que o resguardava do sol. À cinta sobressaía do interior do coldre a coronha de uma arma.
Toda a gente veio à porta para observar o estranho. Os forasteiros eram raros no povoado, porque Hayman City ficava longe das rotas das diligências. Mas não era bem isso que atraía a curiosidade daquela gente. Era a cor do forasteiro! Ele era preto, não mulato cor de café com leite, mas preto retinto!
— Um cow-boy preto! — houve quem murmurasse com assombro.
Os indivíduos de epiderme preta não eram desconhecidos no Oeste, simplesmente, não montavam cavalos daquele tipo e não traziam armas à cinta; trabalhavam por conta dos pioneiros, cortando lenha, lavando a roupa e a casa, marcando reses, em suma, encarregando-se dos serviços mais árduos.
Quem seria o pistoleiro preto, como logo o alcunharam? Porque vinha a Hayman City? Entretanto, parecendo não dar conta da observação de que estava a ser alvo, o forasteiro apeou-se da sua montada à porta de um dos saloons, amarrou as rédeas do solípede à argola de ferro e entrou.
Os pouco frequentadores que, àquela hora, se encontravam no Estrela Grande esbugalharam os olhos de espanto quando repararam no tipo que tinha transposto o guarda-vento, e seguiram-no com o olhar até ele se abeirar do balcão.
— Queria comer qualquer coisa...
O barman coçou a cabeça no sítio da orelha.
— Tem com que pagar?
O desconhecido esboçou um sorriso, do género sempre a mesma coisa em todos os lados, fazendo brilhar por momentos os seus dentes branquíssimos a contrastar com a sua cor de pele, meteu a mão num bolso das calças, tirou um punhado de notas, escolheu uma de dólar e poisou-a sobre o balcão. O taberneiro tartamudeou uma desculpa.
— Carne, ovos e batatas fritas?
— Está bem.
Mas, antes que ele se afastasse, uma voz soou alto:
— Não sabes, Jim, que não queremos pretos a comer dos nossos pratos?
O forasteiro voltou-se, vagarosamente, à procura do dono daquela voz. Quem estivesse próximo notaria que o seu semblante apresentava uma ligeira mudança.
A voz provinha de uma mesa onde estavam três homens sentados e pertencia a um deles, que envergava uma camisa berrante, aos quadrados. Depois do dito, todos riram com gosto, mas, quando o negro se voltou os risos emudeceram e só continuou a rir o homem que tinha falado.
O forasteiro ficou encostado ao balcão. O taberneiro estava atrás de si.
— Quem é? — perguntou em surdina.
— Chama-se Graham Hook e é o homem mais rico das redondezas.
O outro voltou a falar.
— Os tipos da laia desse, servem-se nas escadas à entrada da porta.
O forasteiro comprimiu os punhos. Via-se que só uma grande força oculta o impedia de começar a zaragata, esmurrando o ricalhaço. O taberneiro sussurrou-lhe:
— Não arme barulho! Vou preparar-lhe os ovos. Venha daqui por um quarto de hora pelas traseiras.
O estranho pensou e depois disse:
— Está bem — e saiu do estabelecimento, ouvindo os risos de troça dos três provocadores.
Na rua, desprendeu as rédeas do cavalo e tornou a montar. Fez um galope curto, parando diante de uma porta encimada por uma placa, onde estava escrito:
XERIFE
Apeou-se, prendeu, novamente, as rédeas da montada e entrou. O xerife de Hayman City era um homem dos seus quarenta e tal anos, largo de ombros, testa alta e nariz aquilino. Olhou para o visitante e dissimulou muito bem a sua surpresa. Apertou a mão negra que o outro lhe estendeu e convidou:
— Sente-se!
A secretária de madeira, diante da qual o xerife estava sentado, era a única coisa que separava os dois homens.
— Acabo de entrar no seu povoado, xerife, e como tal achei bem em vir apresentar-me. Creio que a sua gente não achou bem que eu tivesse vindo. Há pouco, no saloon um tal Graham Hook tentou armar barulho comigo. Não gosto que me atirem em rosto o dito, generalizado, infelizmente, sai-daí-preto-que-me-farruscas. Venho em paz, fugindo da minha própria sombra! Procuro trabalho e a minha maior ambição é guardar para sempre, no fundo de uma arca, esta arma que trago à cinta. Chamo-me Franck McGinnis — abaixou-se e, de dentro das botas de couro, tirou diversos papéis que entregou ao xerife. — Aportei a esta terra por mero acaso. Ia a passar quando avistei o casario e aproximei-me. Não vou sair só porque um Hook-qualquer coisa, ou um qualquer-coisa-Hook, não quer que eu cá esteja!
Por aqueles papéis, o xerife tomou conhecimento que Franck McGinnis tinha sido um agente especial ao serviço do governo! Olhou admirado para aquele indivíduo de epiderme preta e devolveu-lhe os papéis que ele tornou a meter dentro da bota.
— Se quer ficar em Hayman City, ficará! Não tolerarei que alguém se intrometa consigo. Graham Hook é um grande rancheiro, o mais rico de todos. Por via disso, julga que Hayman City lhe pertence. Mas eu tenho uma credencial no bolso que me obriga a fazer que todos tenham os mesmos direitos nesta terra e que a Lei seja respeitada! Chamo-me Jack Flanagan, um amigo às suas ordens— o pistoleiro negro apertou a mão que lhe era estendida.
Desapertou o cinturão e poisou-o sobre a secretária.
— Esta é a melhor prova de que venho em paz, xerife. O meu cavalo também precisava de ser cuidado. Passamos os dois à reforma — e sorriu.
— Mandarei que tratem dele. Vou falar com Max Estapoole, um rancheiro desta zona, e estou certo de que terá o seu emprego.
— Obrigado — voltaram a apertar as mãos e McGinnis, o Pistoleiro Preto para as línguas-pequenas do povoado, saiu da delegacia.
Tal como tinha combinado com o taberneiro do Estrela Grande, deu a volta aos armazéns, procurando pelas traseiras a porta do saloon. Aquele esperava-o à porta. Levou-o para uma mesa coberta com uma toalha branca e onde fumegavam, num prato, os ovos, o fiambre e as batatas fritas. Ao lado deste, uma garrafa de uísque e um copo.
— Agradeço-lhe por não ter armado zaragata há bocado no bar — disse-lhe o taberneiro. — Não tenho nada contra os meus fregueses, quer sejam de cá ou não. Procuro fazer o meu negócio e mais nada. Mas, Graham Hook é, além de muito rico, vingativo! Se quiser lavar-se tem ali uma bacia com água.
McGinnis despiu o blusão de couro, desnudando-se da cinta para cima, mostrando os músculos bem constituídos realçados pela negrura envernizada da sua pele. Lavou-se com sabão e água.
— Oh! Oh! Temos forasteiros! — esta voz feminina alertou-o.
Voltou-se já a enxugar-se a uma toalha. Ela era nova e bonita. Vinte anos num corpo bem constituído! A sua epiderme estava bronzeada, tinha cabelos loiros, olhos azuis. A altura — bom! — dava-lhe pelos ombros. O vestido branco, de laçarotes, ficava-lhe, realmente, bem. A mulher parou a admirá-lo, também. Sorria zombeteira, mas não era um sorriso do género preto maldito, mas sim sou bonita e estás a gostar de mim.
— Bons dias!
— Bons dias, forasteiro. Chamo-me Lily Carmena...
—E eu, Franck McGinnis!
Ouvindo-os falar, o taberneiro voltou à cozinha. Alarmou-se com a presença dela.
— Vai-te embora — empurrou-a para a porta. — Graham Hook está no bar e pode ouvir-te!
— Oh! — murmurou ela e saiu.
Depois tornou a entrar e disse para o forasteiro:
— Tornar-nos-emos a ver, preto musculoso!
«Coisa estranha — pensou Franck — a expressão preto, dita pela boca daquela rapariga, não me magoou tanto como quando o tal Hook se me dirigiu».
O taberneiro voltou ao bar e McGinnis atirou-se ao prato fumegante. Quando estava a terminar o taberneiro voltou, trazendo o troco da nota de um dólar que deixara sobre o balcão.
— Quando acabar pode sair.
Franck enfiou, novamente, o blusão de couro e saiu. Foi uma surpresa para si quando avistou Lily encostada nas traseiras de um barracão e mais ainda, quando esta o chamou pela seu nome.
— Franck McGinnis!
— Porque é que o taberneiro não te deixou estar lá? Que tens que ver com o Graham Hook?
— Jim é um egoísta e tem medo de Hook! Mas, quando sabe que o Hook não está cá, pede-me para ir ter com ele. Nunca acedi! Hook é, para mim, o que um chefe de família é para a sua mulher. Não é bem assim, mas é quase a mesma coisa! Dá-me o dinheiro e vestidos —apertou-se contra McGinnis. — Tens uns músculos duros! Há bocado gostei de te ver. Anda comigo. Preciso de falar contigo.
E, dando-lhe a mão, arrastava-o com ela. McGinnis não queria ir, lembrava-se que não entrara naquele povoado para armar barulho, mas também havia muitos meses que não falava com uma mulher! Lily habitava uma casa ao fundo dos barracões. Entraram pelas traseiras.
Um quarto com uma cama e pouco mais do que um armário e duas cadeiras.
***

Quando a porta se abriu de rompante, Franck começava a pensar que não tinha procedido bem em acompanhar a rapariga. Ela era de Hook e ele, como qualquer outro, não gostaria... Mas, Hook estava ali! Cadavérico, com os olhos desorbitados... As mãos do rancheiro baixaram-se e agarraram as coronhas dos Colts. McGinnis pensou que ia ser morto ali mesmo, como um cão, sem possibilidade de defesa. E pensou com tristeza na sua arma, deixada em cima da secretária do xerife...
— Preto maldito!... — balbuciou Hook a arfar como se tivesse feito uma grande corrida. — Vou matar-te, mas vai ser de modo diferente! — Aproximou-se da porta, sem o perder de vista, e chamou: — Eh, rapazes, venham cá!
Os dois companheiros do Saloon Estrela Grande entraram em conjunto, e ficaram parados a ver a cena.
— Amarrem-no!
McGinnis teria resistido se Hook não o vigiasse, cuidadosamente, com os seus Colts. Em dois segundos estava amarrado, com uma tira de couro que um deles trazia.
Graham guardou então os Colts e aproximou-se da rapariga. Lily encolheu-se ainda mais, estendendo as mãos para a frente e suplicou:
— Não! Não! Não, Hook!
Desapiedadamente, ele deu-lhe um pontapé na barriga e socou-a até ela vomitar sangue.
— Hás-de pagar-me o que estás a fazer! — gritou McGinnis com desespero, tentando libertar-se.
— Levem-no! — berrou o rancheiro e continuou a bater na rapariga que tinha caído por terra.
Os dois acólitos arrastaram Franck para fora e esperaram pelo chefe. Quando Hook regressou vinha salpicado de sangue.
— Tragam-no!
Levaram-no para o meio da praça. Alguns populares vieram ver o que se ia passar. Hook postou-se diante de McGinnis. Tinha os olhos desorbitados e raiados de sangue.
— Agora tu, maldito! Vou matar-te da mesma maneira que a matei a ela!
Desferiu-lhe um pontapé que o fez cair. Depois pisou-o com as botas, até se cansar. E continuou a bater-lhe até ele perder os sentidos e o xerife chegar...

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