quinta-feira, 29 de novembro de 2018

BIS170.06 O retrato do canalha Seth Markham

Dava a impressão de ser uma verdadeira povoação fortificada e não outra coisa a fazenda dos Cortés em Valle Hermoso.
Um muro de pedra e argila, de três jardas de altura, circundava o cabeço baixo e arborizado onde se erguia a casa dos donos, formosa e ampla, sólida, de estilo colonial. De espaço a espaço, havia guaritas no muro, preparadas para as sentinelas e apenas duas portas davam acesso ao interior, ambas grandes, resistentes e bem protegidas.
Os pavilhões de adobe dos vaqueiros agrupavam-se a ambos os lados do pátio, havia ainda um moinho de vento e um poço, um grande chafariz para os cavalos e um tanque onde algumas mulheres lavavam roupa, redis para guardar gado, hortas bem cuidadas, árvores de fruto...
Quando a caravana se aproximou saíram-lhe ao encontro vários cavaleiros, à frente, dos quais ia um rapaz espigado, muito parecido com Isabel. A rapariga adiantou-se ao seu encontro e os dois irmãos abraçaram-se alegremente. Depois, ela apresentou-o a Rand.
— Meu irmão Pedro. O senhor Rand Allen, de Marzdland.
O rapaz estendeu-lhe francamente a mão delgada e morena, nervosa como o seu olhar.
— Muito gosto em o recebermos em Valle Hermoso, senhor Allen. E obrigado por ter ajudado Isa.
— Não havia muito por onde escolher, acredite, senhor Cortés. Sua irmã ganhou-me uma bonita partida de cartas.
O rapaz olhou para Isabel de soslaio e pôs-se um pouco mais sério. Depois concordou e afastou-se para falar com Barclay. Isabel perguntou a Rand, quase irritada:
-- Era preciso dizer isso a meu irmão, senhor Allen?
— Na minha opinião, sim.
A rapariga mordeu o lábio inferior com um gesto de aborrecimento, voltou a sua montada e adiantou-se sozinha na direção da fazenda. Pedro Cortés regressou para junto de Rand e voltou a falar com ele.
— De modo que esses bandidos assaltaram-nos e quiseram acabar com vocês... Fez bem em trazer os feridos e o cadáver de Hevvitt. Suspenderemos os três dos ramos de um olmeiro no meio da praça de Waco...
— Enforquem Hewitt. Os outros pertencem-me.
— Para quê ?
— Isso é assunto meu, rapaz. Em todo o caso, discuti-lo-ei com seu pai.
D. Pablo Cortés era um homem de quarenta e cinco anos, um pouco alto, forte e ainda magro. Arrastava a perna direita e apoiava-se numa bengala com força para caminhar, mas de resto dava a impressão de estar cheio de vigor. Olhou francamente Rand e estendeu-lhe a mão forte e bem cuidada.
— Isa contou-me tudo, senhor Allen — disse com voz sonora em bom inglês. — Seja bem-vindo a minha casa. Tudo quanto há nela é seu desde agora.
Era um autêntico cavalheiro, a classe de homem que Rand havia encontrado em Cuba e na Europa anos antes. Um homem íntegro, um senhor de raça...
— Muito obrigado, senhor Cortés — respondeu apertando aquela mão. — O que fiz não merece tanto.
— Salvou a vida de minha filha e deu morte a um dos assassinos de minha esposa. Para mim trata-se de uma dívida dupla e que não poderei pagar, senhor. Mas teremos tempo de falar. Agora é preciso curar-lhe as feridas. Isa diz que trouxe dois desses canalhas para os poder interrogar à sua vontade. Guardá-los-emos vivos.
Isabel estava parada, junto do pai. E junto dela estava uma rapariguinha de uns treze ou catorze anos, espigado, e bonita, que contemplava Rand com vivo interesse. Apresentaram-lha como Merceditas, a irmã mais nova de Isabel.
O quarto que lhe destinaram era excelente, como há muito tempo não tinha. E duas mulheres, com um texano de barba branca e sorriso sério curaram-lhe cuidadosamente a ferida da coxa, desinfetando-a e fazendo baixar o inchaço que lhe provocara um princípio de febre.
Depois serviram-lhe um caldo suculento e uma refeição abundante, saborosa e completa e, após várias horas de sono reparador encontrou-se em perfeitas condições físicas. Uma criadinha jovem e bem parecida entrou no quarto levando as suas roupas limpas e engomadas, além doutro par de calças, colocando tudo sobre uma cadeira. Com ela entraram o texano que tinha conhecimentos de medicina e o próprio dom Pablo que o cumprimentou com deferência.
— Como se sente, senhor Allen?
— Muito bem, graças à sua comida e aos seus cuidados. Mas receio não estar ainda em condições de cavalgar.
— Não precisa de o fazer. Essa ferida sua é bastante séria para o obrigar a estar na cama durante duas semanas. O importante é que se trate bem.
Mais tarde ficaram sós e D. Pablo entrou no tema, com franqueza.
— Senhor Allen, minha filha Isabel contou-me tudo o que sabe a seu respeito e a maneira como conseguiu trazê-lo até aqui. Gostaria de lhe pedir que não tomasse a sua conduta como leviandade e não a interpretasse erroneamente. Isa é indómita como um potro selvagem, mas honesta como a primeira, toda uma senhora e toda uma mulher.
— Sobre isso não tenho a menor dúvida, senhor Cortês.
— Não? Obrigado por o ter dito. Isa adorava sua mãe, como todos nós, e odeia com toda a sua alma o canalha que a ultrajou e assassinou. O senhor já sabe o que sucedeu e a nossa situação presente. Estou impossibilitado de montar a cavalo e também já não posso atacar diretamente o meu inimigo, porque nós, os texanos de raça, não estamos em maioria como antes da nossa precária independência. Meu filho é ainda muito novo para a luta, meus cunhados não servem para isso. Isa informou-se da sua façanha em Westdale e, como é muito impulsiva, impressionou-se; pensou que um homem corno o senhor podia ser o instrumento da nossa vingança e ruminou essa ideia até que o destino os voltou a juntar a bordo daquele barco no Mississipi. Quando o senhor se negou a aceitar a sua oferta não encontrou outro meio de o prender senão convidá-lo para essa partida de cartas. É uma rapariga doida... Mas também é invencível com as cartas na mão. Um tal «Frenchy» Joseph Aubigny, meu velho amigo e de meu pai, que não tinha rival no manejo das cartas, desde Vera Cruz até Nova Iorque, teve de se refugiar aqui para escapar à vingança de certos inimigos encarniçados e aqui permaneceu até à sua morte que aconteceu o ano passado. Minha filha tinha então oito anos e converteu-se em sua discípula. Ele dizia, a sorrir, que ela já o suplantava...
Fez uma pausa. Sem dúvida estava a tentar afastar do ânimo de Rand qualquer má ideia a propósito de sua filha. Rand, entretanto, perguntava a si próprio até que ponto teriam ido as confidências de Isabel a seu pai e se lhe teria falado da sua promessa de dia antes, ao pedir-lhe que matasse Seth Markham.
— Não há dúvidas de que a sua intuição foi acertada, senhor Allen, porque o senhor foi providencial. É verdade que foi oficial no exército americano?
— Estudei em West Point e servi dois anos na milícia.
— Abandonou o exército?
— Matei um superior hierárquico num duelo por causa duma dama. Vi-me forçado a' renunciar ao uniforme e mais tarde ingressei no corpo diplomático. Estava na Europa quando soube da desgraça de meu irmão.
— Ou seja, o senhor é um cavalheiro, como eu suspeitei ao vê-lo e ao falar-lhe. Alegro-me muito, senhor Allen. E agora permita-me ser um pouco mais indiscreto. Pensa seguir a carreira diplomática?
— São essas as minhas intenções. Pelo menos eram quando sua filha me ganhou a partida de cartas.
— Compreendo. Bem, não farei mais perguntas, senhor Allen, porque é meu amigo e meu hóspede. Cure-se e quando estiver bom ficará livre para decidir se quer ajudar-nos contra os nossos inimigos ou regressar a sua casa. Em qualquer dos casos nunca esqueceremos a nossa dívida para consigo.
— Por agora não regresso.
— Ah... Não é obrigado...
— Sou. Não gosto que me assaltem em pleno descampado e me metam balas no corpo. Porque não me fala um pouco de Seth Markham ? Esse nome queima os lábios de sua filha. E o coração. A mim, também. Mas responderei a todas as suas perguntas.
— Há muito tempo que está no Texas?
— Chegou pouco depois de El Álamo e entregou-se à tarefa de roubar e saquear a terra enquanto os outros combatiam pelo nosso país. Eu, senhor Allen, nasci espanhol, de pai espanhol e mãe cubana, quando quase toda a América pertencia à coroa de Espanha e os Estados Unidos eram apenas um pequeno país em formação. Meu pai era castelhano, funcionário real no porto de Nova Orleães e mais tarde em Tampico e em Galveston. Depois fui súbdito mexicano, sou agora cidadão do Estado livre e independente de Texas e suspeito que morrerei sendo cidadão dos Estados Unidos se Deus não nos acode. Nasci em Galveston, quinto filho varão de nove de ambos os sexos. E meu pai não era rico, embora fosse nobre, compreende? Aos quinze anos já negociava com os índios, ao serviço do que havia de ser meu sogro, um rico negociante de Nova Orleães, de origem francesa. Aos vinte instalei-me aqui com minha mulher, nesta terra adquirida aos «comanches» por meu sogro. Valle Hermoso foi criado por mim, pertence-me com todos os direitos e títulos legais. Sou rico, respeitado e forte só pelo meu esforço, pela minha persistência de longos anos. Toda a gente me conhece no Texas e sabe o que de mim se pode esperar. Contudo, como as coisas se puseram, nem sequer posso conseguir o auxílio da lei para castigar os assassinos de minha esposa.
Fez uma pausa e acrescentou no mesmo tom:
— Seth Markham é um assassino nato, um homem incapaz de sentimentos nobres. Segundo parece descende de uma família respeitável em que é a ovelha ronhosa e que o expulsou do seu seio, mas não até ao extremo de lhe retirar todo o seu apoio. Seu pai era um dos chefes do partido no poder e um tio materno é a mão direita de Tyler, na presidência; é senador e pessoa de grande influência. Tem também irmãos mais velhos e mais novos influentes e bem situados. Isso serviu-lhe e continua a servir-lhe como um escudo protetor contra os seus inimigos. Por outro lado encheu o seu rancho com a escória dos aventureiros que caíram sobre o Texas, arranjou-se de maneira a convencer os seus compatriotas, gente inculta na sua maioria, ambiciosa e ingénua, que é uma espécie de caudilho seu contra os peles-vermelhas e contra nós, os velhos texanos. Ë inteligente, audaz, não tem escrúpulos nem piedade, apenas procura satisfazer os seus instintos. Porém, falta-lhe alguma coisa para ser grande, mesmo no mal. Há nele qualquer coisa de ruim, cobarde e débil, que anula a sua crueldade, a sua inteligência e a sua ambição. É dominado pela luxúria e pela cobiça, teme-me e odeia-me, deseja Valle Hermoso, deseja Isa também... Estamos empenhados numa guerra que só terminará com o aniquilamento de um dos dois.
— Que me diz do seu rancho?
— Construiu-o há dois anos a umas setenta milhas daqui, quando da fundação de Waco por alguns imigrantes, um pouco para além do limite norte das minhas terras. Apoderou-se de um amplo vale à direita do rio Braços, expulsando pela força uma pequena comunidade de velhos texanos que vivia pacificamente com toda a gente e construiu uma verdadeira fortaleza, tão forte como esta fazenda, atraindo para lá a pior gentinha da fronteira e formando com ela uma quadrilha que depressa espalhou o terror numa vasta região. Os seus homens roubam gado em toda a parte, levam-no para o rancho e alteram-lhe as marcas, assassinam quem encontram e é menos forte que eles, raptam mulheres, incendeiam granjas isoladas, inclusivamente dos seus próprios compatriotas, povoados, tudo... Disfarçam-se de índios por vezes e deixam propositadamente algum sobrevivente aterrorizada ou moribundo para que atire para cima dos peles-vermelhas as culpas dos ataques, armam-se em vingadores das suas próprias tropelias... Poderia estar a contar-lhe horrores semelhantes a estes durante horas inteiras, senhor Allen, e não acabaria, mas receio que pense que estou a exagerar levado pelo meu ódio.
— Parece-me que não exagera muito. Conheci um homem chamado Seth Markham.
— O senhor? — Don Pablo pigarreou e ficou a olhar para ele com assombro.
— Aqui, no Texas?
— Em West Point. Trata-se de um homem de uns trinta e cinco anos, um pouco mais baixo e forte que eu, de cabelo e bigode cor de palha...?
— Está a fazer o seu retrato. Mas... esse homem em West Point...
— Foi degredado e expulso ao fim de cinco meses de entrar na academia por fazer batota ao jogo e ter roubado a caixa da sua companhia, que estava à sua guarda naquele mês. Seth C. Markham... É curioso como as coisas se enredam...
Não quis alargar-se contando ao seu interlocutor que ele havia sido um dos que faziam parte da partida de cartas em que se descobrira que Markham fazia batota nem outras coisas anteriores.
Também não valia a pena dizer-lhe que os Markham e os Allen tinham propriedades contíguas, lá em Maryland, que Elissa Markham e ele estavam noivos desde há quatro anos e que ela o esperava havia três. Era melhor deixar que tudo corresse por si.
Isabel veio vê-lo já à hora do crepúsculo. Sem dúvida conhecia a notícia, porque entrou sozinha e falou nisso mal fechou a porta do quarto:
— Porque não me disse que conhecia Seth Markham?
Estava muito formosa, com um vestido branco, decotado e de mangas acima dos cotovelos. Formosa, jovem, desejável, um magnífico prémio pela morte dum completo canalha.
— Não achei então conveniente.
— De modo que o expulsaram de West Point por roubo e batota ao jogo... Não me surpreende sabê-lo. Que mais sabe dele?
— Muitas coisas. A sua família e a minha habitam propriedades que confinam umas com as outras, desde há meio século bem contado. Eu voltava para casar com uma prima-irmã dele, quando a menina me ganhou essa partida de cartas.
Viu mudar percetivelmente a expressão da rapariga.
— Uma... prima dele? — repetiu vagarosamente.
Rand confirmou.
— Sim. Agora não o poderei fazer, porque os Markham constituem um clã muito unido. Já antes as coisas não estavam muito firmes pois militamos em partidos políticos opostos e não agradava a meu pai ver em sua casa uma neta do seu velho rival na política.
— Que quis dizer com isso, Rand Allen?
— Bem sabe. vou matar Seth Markham logo que a minha perna esteja curada.
Ela aproximou-se do leito olhando-o com intensidade.
— Por mim? Para eu ser sua?
— Por vários motivos, nem todos tão modernos e agradáveis. Há uma velha conta pendente entre Markham e eu.
— Quero sabê-la
— Bem. Uma jovenzinha de quinze anos foi violada e estrangulada com uma das suas próprias meias. Foi acusado um escravo negro, acusou-o o próprio Seth Markham e o homem que matei em Westdale apoiou a sua acusação. O escravo e dois irmãos foram linchados bestialmente por uma multidão enfurecida e deu bastante trabalho impedir uma matança geral de negros na zona. Algumas semanas mais tarde alguém descobriu que os verdadeiros culpados tinham sido Seth Markham e outro amigo seu, mas não tornou pública a sua descoberta, embora tivesse obrigado os assassinos a abandonarem o Estado para sempre. Quem descobriu foi o próprio pai de Seth. Eu informei-me mais tarde, anos depois, por uma confidência da minha noiva, que, por sua vez, a tinha ouvido a seu pai, primo-irmão de Seth. Aquela jovenzinha, era filha dum dos meus melhores amigos. A mãe quase enlouqueceu de dor e o meu amigo não voltou a levantar cabeça. Jurei que, se algum dia encontrasse Seth Markham, lhe meteria uma bala nos miolos como a um cão raivoso. E encontro-o por estes sítios quando menos esperava.
Calou-se e, durante alguns instantes, reinou o silêncio entre os dois. Depois Isabel disse com voz suave mas clara:
— Mate Seth Markham e, quando o tiver feito, peça-me o que quiser. Não me importa saber quais são os verdadeiros motivos que o levem a matá-lo, nem o preço que peça; mas mate-o. — Eu não recebo para matar um homem e muito menos para fazer justiça na pessoa dum canalha, Isabel Cortés. Se algum dia lhe pedir alguma coisa não será em pagamento seja do que for, compreende? Nem nada de degradante ou ofensivo para si.
Ela demorou alguns segundos a responder. E havia qualquer coisa na sua expressão que impressionou fortemente Rand Allen. A sua voz doce também lhe provocou reações desconhecidas quando disse:
— Se me vier pedir alguma coisa que lhe possa dar honestamente, Rand Allen, pode ter a certeza de que lha darei...

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