segunda-feira, 26 de novembro de 2018

BIS170.03 Em defesa dos índios

Descobriu que o grupo de mexicanos os aguardava e que também havia um carro novo, sólido, pequeno, puxado por quatro excelentes mulas, onde foi metida a bagagem, bastante volumosa, de Isabel.
Com certa surpresa, viu que ela tinha pensado em tudo, pois havia ainda um baio de boa estampa preparado para ele. A jovem sorriu, divertida, quando se referiu ao assunto.
— Não se trata de bruxaria. Em Alexandria mandei um recado ao chefe dos meus homens por um barco que se preparava para zarpar quando nós chegámos. Não se lembra? De resto, eles estão aqui há apenas quatro dias. Quando nos encontrámos a primeira vez, eu não ia para Shreveport, mas sim para Galveston, para, dali, tomar um barco para Nova Orleães. Foi uma casualidade afortunada o facto de nos encontrarmos a bordo do outro...
Possivelmente. Mas agora ele, Rand Allen, sentia que tinha sido como aprisionado numa teia de aranha gigantesca, e aquela aranha tinha os olhos mais belos e mais aveludados do mundo.



Demoraram-se na cidade apenas o tempo necessário para carregar a bagagem e para Isabel mudar as suas roupas da cidade para outras, de amazona, que lhe ficavam maravilhosamente. Depois subiu para o carro e Torres subiu também encarregando-se de o conduzir.
Rand teve de cavalgar a um lado do veículo, enquanto Barclay se colocava do outro lado. E assim abandonaram a povoação, internando-Se nas terras do Texas...
Ao acamparem naquela noite, na margem dum ribeiro largo, bordejado de árvores, Isabel deu a primeira indicação acerca do destino que levavam.
—Faltam-nos onze jornadas de viagem, se tudo correr bem.
— Espero que corra. Pelo que sei, esta terra não é própria para ser percorrida por meninas.
— Nasci e criei-me nela. Não gosta do Texas?
— Gosto mais de Maryland. Mas a verdade é que, deste Estado, só conheço a parte mais desolada e selvagem.
— Um dia toda esta terra será povoada pelos brancos e encher-se-á de granjas, de povoações e de ranchos. Não há nenhum país como o Texas, senhor Allen.
— É possível.
— Quando vir a região onde vivo, ficará maravilhado e dar-me-á razão.
— Espero que os «comanches» nos permitam chegar a ver isso.
Ela esboçou um dos seus sorrisos enigmáticos e mudou o tema da conversa. Durante os cinco dias seguintes internaram-se profundamente no Texas, sem incidentes dignos de menção. Por três vezes viram sinais de fumo dos índios ao longe, mas os selvagens não apareceram.
No segundo dia, um grupo de brancos, cinco no total, aproximou-se... Eram tipos sujos, de mau aspeto e bem armados, mas muito poucos para os inquietarem. Perguntaram se lhes podiam dar algum sal e café, receberam o que pediam e mantiveram-se muito atentos a todos os pormenores. Isabel não apareceu à vista deles e foram-se embora sem a ver. Também encontraram alguns caçadores solitários, homens que estavam em boas relações com os índios e vagabundeavam pela pradaria.
Segundo parecia iam seguindo um verdadeiro caminho, embora só de espaço a espaço fossem percetíveis os rodados dos carros e as pisadas dos cavalos. Atravessaram três pequenas povoações cujos habitantes não deviam viver muito alegremente.
Pelo que Rand sabia, Texas era um Estado em plena formação, onde chegavam sem cessar caravanas de emigrantes, desde que poucos anos antes havia conseguido uma liberdade precária frente ao México, aprovada pelos Estados Unidos, que não faziam segredo do seu desejo de se apropriarem desse Estado.
Alguns milhares de selvagens por um lado, os nativos de raça mexicana por outro, os americanos por um terceiro pugnavam por dominar o país e a luta era contínua, sangrenta, encarniçada, sem ainda se poder prever um vencedor final.
Tiveram a prova na manhã do sexto dia de viagem ao chegarem a um pequeno e formoso vale, muito arborizado acima da nascente do Néchez. Barclay ia uma dúzia de metros adiantado, como em reconhecimento, e voltou-se para lhes indicar qualquer coisa que fez franzir as sobrancelhas a Rand.
— Queimaram alguma coisa — disse, quando se aproximou.
Estava muito sério.
— Havia alguma coisa para queimar?
— Possivelmente. Vamos ver.
— Que se passa, Kent? — perguntou Isabel aproximando-se deles.
Tinha vestido umas calças masculinas, calçando bonitas e elegantes botas vermelhas de montar com esporas de prata, vestia ainda uma blusa branca, um casaquinho de fazenda azul com bordados a ouro e o cabelo liso, recolhido sob o chapéu de abas largas.
Parecia um rapaz altivo cavalgando a égua forte, de bela estampa. A espingarda na sela, a pistola no cinturão de couro e o punhal pendente junto da anca redonda aumentavam, de longe, a impressão de se tratar dum rapaz.
— Suspeito que os índios fizeram uma das suas, menina Isabel.
— Ah... — ela olhou para as colunas de fumo que se viam à distância e concordou. — Vamos ver.
E assim era. Uma granja acabava de arder lentamente e, pelo pátio, viam-se espalhados restos do que fora o mobiliário, objetos de uso pessoal...
Um homem jovem estava caído a meio do pátio, numa posição forçada, contorcido. No corpo não tinha cravadas menos de quatro flechas, além de outra na cabeça.
A alguma distância, junto dum carro incendiado, estava o cadáver duma mulher de meia idade, com as roupas revolvidas. No alpendre, jazia também um homem duns cinquenta anos, crivado de flechas.
Dentro de casa, meio carbonizado, estava o corpo de uma menina de uns dez anos. Tinham arrancado as cabeleiras a todos. Rand tinha visto cenas como aquela em muitos sítios. Mas sempre lhe revolvia o estômago ver mulheres e crianças violadas e assassinadas pelos selvagens.
Expressou secamente os seus sentimentos, olhando para Barclay que tinha os lábios apertados e não lhe respondeu.
Torres e os outros mexicanos também se conservaram silenciosos, embora a cena os impressionasse, sem dúvida. Quanto a Isabel, a sua reação foi surpreendentemente serena, apesar da sua palidez.
— Abram sepulturas e enterrem-nos, Manuel. Senhor Allen, acompanhe-me.
Afastaram-se um pouco. Ele estava sombrio e, quando a rapariga desmontou agilmente e se foi sentar em silêncio num tronco de árvore, desmontou por sua vez, olhando-a fixamente.
— Não parece muito afetada pelo que viu, apesar de ser mulher.
Ela suportou o olhar do homem.
— Estou «muito afetada», senhor Allen — disse. A sua voz era cortante e fria. — Não tenha dúvidas a esse respeito. Não é agradável contemplar tais coisas, principalmente quando se é mulher. Mas não foram os índios que desencadearam estes horrores.
— Sério? Quem foi, então?
— Os seus compatriotas, senhor Allen.
—Não acredito. Sei que é mexicana e...
—Não tenha dúvidas! Não sou mexicana, mas sim natural do Texas, o que não é o mesmo. O meu sangue é espanhol, misturado com francês e índio, mas não tenho nada a ver com o México. E o que lhe disse é a pura verdade.
Allen puxou pelo tabaco e começou a enrolar vagarosamente um cigarro, sem tirar os olhos dela.
— Custa-me a crer. Cavalguei muito pelo Oeste e em toda a parte vi os índios assaltarem, queimarem, assassinarem, violarem e arrancarem cabeleiras, sem perdoarem a velhos ou a crianças...
— Acaso os brancos perdoam aos seus? Senhor Allen, há vinte anos os «comanches», os «pawnees», os «apaches», os «osages», todas as tribos índias de Texas, viviam em paz connosco, os brancos, comerciavam connosco, permitiam-nos ir às suas aldeias, deixavam as suas mulheres casar com os brancos. Texas era e é muito grande, sobrava e sobra terreno para toda a gente, a população branca estava concentrada a sul do rio Colorado e ao longo da costa, em algumas cidades por onde saiam os produtos do país. A região do rio Braços, a do Trinidad, a do Sabine, tinham alguns povoados nos vales desses mesmos rios. Tudo o mais pertencia aos peles-vermelhas e eles moviam-se com liberdade, com inteiro domínio da terra. Os missionários iam visitá-los, conseguiam conversões... Não direi que isto fosse um paraíso, porque mentiria; mas podia-se viver, vivia-se e prosperava-se...
Calou-se. Havia-se exaltado pouco a pouco e agora tinha as faces coradas. Depois de se recompor um pouco voltou a falar, mas depressa o começou a fazer com o mesmo fogo e o mesmo tom acerado.
— Depois, mais ou menos na época em que eu nasci, os americanos começaram a entrar no país, infiltrando-se pouco a pouco mercê, precisamente, da vastidão do território e também das facilidades que o governo mexicano lhes concedeu, com uma política inábil e cega que a coroa espanhola nunca teria seguido. Vieram primeiro comerciantes e caçadores, alguns agricultores, pobres demais na sua terra de origem... Depressa, demasiadamente depressa, começaram a chegar aventureiros sem nada a perder, bufarinheiros sem consciência, o pior que vagabundeava pelo Mississípi e pelos Estados fronteiriços. Eram pessoas ambiciosas e sem escrúpulos que caíram como uma praga de gafanhotos sobre um país pacífico. Homens sem fé nem lei subiram as correntes dos rios do Texas e foram levar álcool às aldeias dos índios, além de armas de fogo, envenenaram-nos, saquearam-nos, enganaram-nos e ultrajaram as suas mulheres. E também nos enganaram, roubaram e ofenderam a nós, os naturais do Texas, os que tínhamos muitos anos, gerações inteiras de permanência nesta terra. Eram brutais, soezes, mais selvagens e muito piores que os índios. Continuaram a vir, cada vez em maior número, continuaram a infiltrar-se por toda a parte. E, quando se julgaram bastante fortes e contaram com o apoio do seu país, revoltaram-se contra o México, em defesa duma pretensa liberdade para o Texas. Mentirosos e traidores!
— Pretende dizer que Stephen, Austin, Davy Crockett e Sam Houston eram mentirosos e traidores?
— Pretendo, e prová-lo-ei. Eles não desejavam um Texas independente, livre e forte, senhor Allen. Não o desejaram e, no caso de Crockett, que conheci bem, nem sequer lhe interessava o que pudesse acontecer ao Texas ou aos seus habitantes. Era uma excelente pessoa em muitos aspetos, um dos melhores americanos que vieram para o Texas. Mas era apenas um caçador de escassa cultura, valente, cruel, astuto e muito apegado ao dinheiro. Viu-se metido em El Alamo por casualidade, nunca impulsionado por um patriotismo que não podia sentir. Morreu como um herói, porque tinha fibra de herói, mas não por altos ideais. Quanto a Austin e a Houston, trata-se de dois demagogos, dois hábeis políticos, dois estrangeiros audazes e sabedores do que desejavam conseguir.
Toda a gente, no Texas, sabe que estavam a soldo do Governo americano que, com os seus dólares, financiou a revolução contra Santa Ana e que o seu propósito era e continua a ser anexar Texas ao território dos Estados Unidos.
— Está a devanear, menina Cortés...
— Não devaneio. Posso oferecer-lhe as provas que quiser; apenas o senhor não as aceitará porque é americano. O senhor pensa que os seus heróis venceram em Santa Ana por si sós, erguendo uma bandeira nobre? uma ingenuidade boa para se acreditar do outro lado do Mississípi, mas não no Texas. Sete em cada dez combatentes sob a bandeira da estrela solitária eram naturais do Texas, de pura raça, descendentes de espanhóis, franceses, mexicanos e índios, mas sem uma gota de sangue anglo-saxão. O que Houston e Austin fizeram foi aproveitar-se em benefício próprio do fermento separatista que existe no Texas há muitos anos. Poderia continuar a dar-lhe provas desde agora até chegarmos a minha casa, mas não o farei porque não vale a pena. O que farei, isso sim, é demonstrar-lhe que foram os seus compatriotas quem primeiro assassinou, roubou, saqueou e violou mulheres no Texas, quem levou bebidas alcoólicas aos índios, quem não hesitou em recorrer a qualquer meio para enriquecer depressa e satisfazer os seus baixos apetites. E, quando a paciência dos índios se acabou, quando as bebidas que não estavam acostumados a tomar os enlouqueceu, quando o clamor das suas mulheres ultrajadas lhes encheu os ouvidos e se lançaram na senda da guerra que lhes tinham ensinado, então os seus compatriotas, senhor Allen, ergueram gritos ao céu, disseram que o único índio bom era o índio morto, lançaram-se abertamente a exterminar povoados, tribos inteiras... Eu vi, senhor Allen, mulheres índias com o ventre rasgado à machadada, crianças índias servindo de alvo a ébrios de sangue e de álcool, famílias inteiras degoladas ou enforcadas nas árvores, sem terem cometido outro delito senão o de serem índias, aldeias inteiras queimadas, arrasadas, com os cães a lamberem o sangue dos cadáveres. Eu vi e ouvi como um americano, de bela oratória, presidente eleito duma comunidade importante, oferecia publicamente um dólar por cada cabeleira índia que lhe apresentassem no edifício da Câmara. Sim senhor Allen. E também vi como a fúria selvagem dos seus compatriotas, de alguns, não todos, admito, mas apesar de tudo muitos, os levava a assassinar naturais do Texas de descendência espanhola e francesa, ou mexicanos, porque os seus cabelos negros ou simplesmente escuros podiam passar por «scalps» de índios e valer-lhes um dólar. Um dólar, senhor Allen, por uma vida humana, pela vida duma rapariga dum velho, duma criança...!
Estava pálida novamente e muito agitada; os seus olhos brilhavam como brasas e tinha-se posto em pé, desafiando-o. Muito impressionado, a seu pesar, Allen resmungou:
— É incrível, não posso conceber isso...
— Evidentemente que não. O senhor pertence a essa classe de americanos decentes que não podem conceber certas coisas. O senhor é um homem educado, ensinaram-lhe que a vida humana em um valor concreto. O senhor cavalgou durante muito tempo para matar o homem que seduziu sua cunhada e a levou. Que faria, que teria feito para vingar a morte de sua mãe, senhor Allen?
Rand demorou algum tempo a responder. E fê-lo com uma pergunta cautelosa:
— Minha mãe?
— A minha foi assassinada há três anos por um grupo de bandidos americanos, de vagabundos selvagens sem freio e sem lei. Era uma autêntica senhora, o próprio Sam Houston se honrava com a nossa amizade, e ninguém no Texas, desde o Rio Grande até Galveston, tinha mais direito do que ela ao respeito dos seus concidadãos. Por isso viajava tranquilamente, apenas com a escolta habitual, de regresso a casa, vinda de Galveston, em companhia de um dos meus irmãos, coronel do exército do Texas que havia combatido contra o México. Assassinaram os dois e ela... — interrompeu-se, crispada pela dor intensa da recordação, acrescentando depois com fogo nas pupilas —, ela, minha mãe, senhor Allen, foi ultrajada! E não eram índios «comanches», mas brancos americanos, o que o fizeram!
Calou-se, tapando a cara com as mãos. Rand respeitou o seu silêncio, muito impressionado pelo que acabava de ouvir. Ao fim de algum tempo Isabel levantou o rosto e pareceu muito mais senhora de si.
— Já sabe porque não exteriorizo os meus sentimentos à vista de cenas como a que acabamos de presenciar, senhor Allen — disse com voz clara e cortante. — Vi minha mãe quando a trouxeram.
— Não... não sei que dizer, a verdade...
— Não é preciso. De qualquer maneira, obrigada. Não... não deram caça aos assassinos?
— Claro que o fizemos. Nós, os Cortés sabemos vingar os nossos. Meu pai e meus tios perseguiram aqueles homens durante meses, apanharam alguns e deram-lhes o que mereciam. Mas outros conseguiram escapar, entre eles o seu chefe, precisamente quem ultrajou minha mãe. Está vivo, capitaneia uma forte quadrilha formada por homens escolhidos entre os piores de todo o Texas. Apesar do próprio presidente Houston ter prometido ajuda a meu pai, apesar de os Rurais nos terem dado o seu auxílio várias vezes, ele continua vivo, desafiando o nosso ódio. Sabe porquê? É sobrinho de um político influente de Washington, graças ao que conseguiu realizar uma grande fortuna com as suas depredações, possui um rancho e milhares de cabeças de gado, na sua maioria roubadas, intitula-se libertador do Texas, paladino dos texanos de origem anglo-saxã... Gasta muito dinheiro e sabe como convencer os seus compatriotas. Não só não conseguimos castigá-lo, mas ainda por cima quase nos obrigou a remetermo-nos à defensiva e nem o próprio Sam Houston se atreve agora a apoiar-nos abertamente porque receia perder popularidade entre os que o colocaram onde está. Ao fim e ao cabo minha mãe não pode ser ressuscitada e nós somos de origem mexicana, segundo eles e o México é um inimigo declarado do Texas...
Percebia-se agora uma intensa amargura nas suas palavras, patente também no seu rosto. Rand julgava por fim ter dado com a chave do mistério. Deixou passar quinze segundos antes de falar e fê-lo medindo as palavras:
— Espera que eu mate esse homem, não é verdade?
Ela sustentou o olhar do homem.
— Sim, espero. O senhor foi capaz de percorrer milhares de milhas atrás da pista do raptor de sua cunhada; pertence à categoria dos homens que não temem o perigo nem o procuram, sabem manejar as armas e têm suficiente sangue-frio. O senhor é um homem honrado, verifiquei-o bem ultimamente...
— Mas não sou um matador a soldo, nem um pistoleiro. Nada tenho a ver com a sua vingança. Admito a plena justiça dos seus propósitos, gostarei de a ajudar no que for possível, mas creio que o assunto compete a seu pai e as seus tios, irmãos...
— Meu pai está inválido, desde que recebeu um tiro num joelho, lutando precisamente contra esse canalha. Meu irmão tem apenas quinze anos. Os dois irmãos de minha mãe não são homens de luta, nunca conseguiriam chegar até ao nosso inimigo na sua guarida. Mas o senhor sim. O senhor, Rand Allen, fá-lo-á; e, quando o tiver feito, quando nos tenha vingado, venha buscar-me e peça o que quiser...

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