terça-feira, 1 de novembro de 2022

BRV014.09 Ataque falhado ao cavaleiro de negro


Beatriz Block não se enganava. Não era já uma criança e, aos vinte e seis anos tinha vivido mais que qualquer outra mulher aos quarenta. Sabia que, tudo quanto dizia respeito a Roger Novack era fictício, tão fictício como ele.

Mas também não podia negar que, junto do «diabo negro», se sentira mais mulher e experimentava uns sentimentos jamais vividos. Houve momentos em que, inclusivamente, acreditou e caiu, deixando-se arrastar pela eloquência do cavaleiro, fechando os olhos sem os poder abrir e, às vezes, sem os querer abrir. Junto dele conheceu instantes maravilhosos ao mesmo tempo que, diante dela, se abria um mundo novo.

Recordava a noite anterior, os minutos vividos junto da pequena cascata, ouvindo o seu murmúrio e contemplando as suas águas prateadas ao caírem sobre as rochas brancas para se despenharem em seguida pelo terreno verde até encontrarem o seu leito e seguirem docemente, murmurando uma canção.

A lua, através das ramagens, branca e brilhante, enorme, quase ao alcance da mão, olhando-os silenciosamente, testemunhou a sua fraqueza. Por vezes parecia suspender-se entre os ramos assomando a sua face pálida para não perder um só pormenor da estranha aventura vivida.

O cavalo, perto deles, mordiscava tranquilamente salva doce que crescia junto dos salgueiros delgados e altos que se balançavam ao contacto da brisa, inclinando as suas copas para o arroio, indolente e harmoniosamente. De vez em quando o animal olhava-os com c seus olhos enormes e nobres a brilhar inusitadamente pestanejava e voltava a comer a erva fresca sem produzir qualquer ruído.

Roger, a seu lado, com o chapéu caído para as costas, os olhos perdidos na imensidade do desconhecido, deixava que os lábios pronunciassem as palavras que o coração ditava. Tudo nele era delicadeza viril: a posição do seu corpo, sentado sobre uma rocha, apoiando o ombro sobre o grosso tronco de um álamo.

Por vezes era um Roger apaixonado, fervente de paixão, que a olhava de uma maneira que se tornava irresistível e obrigara Beatriz a estremecer mais de uma vez. Um Roger que a aprisionou entre os seus braços poderosos e a atraiu para a abraçar.

Beatriz havia permitido que o seu rosto se apoiasse sobre o peito forte e acolhedor do homem, havia deixado que as mãos dele lhe acariciassem os cabelos suavemente enquanto dizia frases ardentes com uma facilidade e eloquência que embriagava os sentidos, com a sua voz agradável e o ardor inaudito que a fazia sentir-se mulher que a obrigava a desejar amar e ser amada.

Depois o regresso, montados no corcel que quase desaparecia submerso no mar de erva, cavalgando para sombra longínqua da cidade, uma mancha apenas na imensidade da extensa campina verde, odorosa, de céu aberto, azul apesar de ser noite, luminoso, salpicado de estrelas que seguiam o cavalo sem se adiantarem.

Haviam sido algumas horas maravilhosas. E agora sorria ao recordar que havia perdido o apetite e não tinha jantado.

Julgou Roger Novack capaz de prescindir de alimentos, nutrindo o seu corpo de poesia e beleza. Ela reconhecia que ele era um inconsciente. Um desavergonhado... Um agradável desavergonhado. Mas não fingia. O «diabo negro» era assim, sentia assim e por isso agia daquela maneira. A sua portentosa capacidade de amar empurrava-o para aquele modo de vida, sempre insaciado de amor e beleza, brincando com a morte, enfrentando-a, único freio das suas paixões.

Um bandido extraordinário. Um homem realmente assombroso. Não se podia acusar apesar da sua agitada vida. Era assim, sentia assim, havia nascido para ser assim e assim morreria. Era o diabo encarnado na terra, mas incapaz de reconhecer depois de uma meditação que agia mal e causava danos.

A noite tinha envolvido já a cidade apagando as silhuetas dos edifícios, animando as suas ruas, abrindo as portas de bares, «saloons», salas de jogo e de festas. O pó da rua principal era constantemente levantado pelos cascos dos cavalos dos cavaleiros que entravam na cidade. Os passeios estavam cheios de gente; parecia incrível, tendo-se visto a cidade durante o dia contemplar-se o formigueiro humano, cada vez maior, que se produzia ao anoitecer.

As portas do «Starlight Saloon» abriam-se e fechavam-se continuamente. Junto do «saloon», no edifício contíguo, com o interior iluminado e o exterior às escuras, entrava por vezes algum homem, enquanto outros paravam na esperança de verem alguma companhia sem necessidade de entrarem.

De súbito, num extremo da rua formou-se um movimento desusado onde se destacavam as detonações de numerosas armas de fogo e depois o galope frenético de muitos cavalos e os gritos dos vaqueiros, gritos agudos que atravessavam as paredes mais espessas e se elevavam ao céu até alcançarem as estrelas.

Era sábado. Beatriz recordou-se inesperadamente. Teria gostado de ficar ali para ver o que acontecia na cidade, da janela do seu quarto do hotel.

Erdman tinha ido vê-la, pedindo-lhe que lhe permitisse acompanhá-la à missa no domingo. Devia ser a máxima ambição do fazendeiro, pois indiscutivelmente teria um lugar de destaque na igreja e toda a cidade seria testemunha do idílio que havia podido começar entre os dois. Poderia ser o primeiro anúncio das suas relações.

Ela não respondera nem afirmativa nem negativamente. Mudou o rumo da conversa, o que causara uma profunda deceção ao homem. Michael havia chegado animado, disposto a quebrar a resistência da mulher e não conseguira.

Beatriz, embora lhe custasse reconhecê-lo, estava a arrepender-se de ter provocado o dono de Wichita. Tinha-o enredado na trama dos seus encantos valendo-se de todos os ardis femininos, desfigurando a mentira e ocultando a verdade.

Havia sentido uma grande compaixão quando a cabeça do homem pendera vencida durante alguns segundos; segundos em que contemplara a cabeça grande, coberta de abundante e crespo cabelo louro, áspero, do qual se desprendia um profundo odor que ela não sabia definir bem senão com a palavra «homem». Talvez fosse o que mais lhe agradava no fazendeiro, o facto de cheirar a homem.

Quando ele levantou a cabeça, notou o seu mento pronunciado, duro, acinzentado pela barba espessa acabada de fazer, e tremia um pouco. Isso fê-la vibrar durante um instante. Viu os seus olhos nobres, de olhar simples. Apesar de toda a sua riqueza e grandeza, Michael Erdman era um homem simples.

— Lamentarei que esta noite os rapazes não te deixem dormir — dissera amavelmente—e amanhã estejas demasiadamente esgotada para poderes madrugar e vir à missa. Foi uma tonta pretensão da minha parte..., mas havia sonhado, com isso, perdoa.

Embora a magoasse um pouco o seu lamento, Beatriz não disse nada; mas quando Michael se foi, enquanto contemplava as suas costas amplas, pensou que madrugaria e faria o possível para que Erdman a encontrasse. Embora não soubesse se provocaria o encontro antes ou depois da missa.

Os vaqueiros entraram num bar que ficava mais abaixo, junto da esquina por onde deambulava uma mulher só, pertencente ao bordel e de quem todos troçaram. A rua pareceu ficar em silêncio quando o último dos vaqueiros da fazenda Erdman a abandonou, mas pouco a pouco começou a ouvir-se, o ruído de antes.

Beatriz, assomada à janela, esperou ver o «diabo negro». Distingui-lo-ia pelo brilho dos metais. Sobretudo pelas moedas que adornavam a sua sela de montar. Recordou a noite anterior, quando ela contemplava o magnífico cavalo negro ao qual Roger não havia tirado a sela. A lua arrancava reflexos prateados e dourados das moedas. Não soube porquê, mas encontrou nelas qualquer coisa de estranho, talvez porque a sua posição' carecia de estética.

— Têm algum significado? — perguntou.

— As moedas?

— Sim.

— São o amor e a morte.

— As de ouro?

— O amor.

— E as de prata a morte?

— Assim é.

—O amor vale mais para ti que a morte?

— Sim.

Caprichosamente contou as moedas. Daquele lado havia seis de ouro e treze de prata. Contou as do outro lado. Cinco de ouro e treze de prata.

— Onze amores — disse ele.

— Vinte e seis mortos?

— Sim.

— São muitos — e Beatriz estremeceu ao dizê-lo.

Onze moedas de ouro que representavam cada uma das mulheres que havia conhecido o amor de Roger. Vinte e seis moedas de prata que substituíam os clássicos talhes nas coronhas dos revólveres, representavam vinte e seis homens morrendo por causa do amor. Aqueles três que ela havia visto morrer tinham, pois, uma recordação póstuma na sela.

Pensou se uma das moedas de ouro era a dela. Propôs-se verificá-lo no dia seguinte.

Agora era o dia seguinte. Por fim apareceu Roger, mas antes de o ver ouviu a melodia que os seus lábios assobiavam e depois o ruído dos cascos de «Quick»

Roger Novack parou sob a janela, na frente dela. Deitou o chapéu para a nuca e levantou a cabeça. A entrevista com uns olhos, quando no céu brilham as estrelas, é como a entrevista com a morte quando um revólver aponta ao coração. Desmontou elegantemente e deixou o cavalo solto. Beatriz viu-o desaparecer na entrada do edifício. Pouco depois a porta do seu quarto abria-se.

— Estava fechada — protestou assombrada.

— Não para o amor.

— O amor já estava dentro — respondeu ela, seguindo o jogo de palavras do homem.

— Isso é verdade?

Ela assentiu com um movimento de cabeça. Ele continuou indiferente, com aquela assombrosa serenidade.

— Mas a carne é fraca e necessitou de uma prova.

A mulher ofereceu-lhe as mãos e ele beijou-as depois de deitar para trás o chapéu.

— Não compreendi o que dizias antes.

— É inquieta a espera quando espera uma mulher, tanto como quando um revólver aponta a tua silhueta na obscuridade.

— Que quer isso dizer?

— Duas inquietações simplesmente que, por vezes, enchem um homem.

— Jantaremos esta noite?

— Esta noite é noite de amor.

— E ontem?

— Ontem o amor foi da noite.

— Devem ter-te visto entrar.

— Podem ver-nos sair.

— Aonde vamos?

— Fecharemos os olhos e deixaremos que a intuição de «Quick» nos guie.

— Ao mesmo sítio?

— O mundo é ridículo e pequeno, incapaz de saciar as ânsias de beleza, mas a alma sempre encontra novos caminhos de luz e paz.

— Vamos.

Montaram «Quick». Roger nunca fazia nenhum esforço para a subir para a garupa do cavalo e Beatriz tinha tido o cuidado de o verificar. Reconheceu que o homem tinha uma força portentosa... e uma prática espantosa nessa questão de subir damas para a garupa do seu cavalo.

Contudo, quando o cavalo começou a caminhar, ela sentiu-se feliz e desejou estar enganada, para poder continuar normalmente aquela comédia agradável, embriagadora, que a fazia saborear, de maneira muito diferente, uma vida que nunca poderia imaginar se tivesse ficado no Leste.

Saíram da cidade pelo lado sul, atravessando a via-férrea em direção à pradaria. Contornaram um outeiro que até então lhes ocultara a visão e, diante deles surgiu um bosque de abetos á entrada da pradaria.

Internaram-se pelas árvores, necessitando de inclinar muitas vezes os corpos para não se arranharem nas ramas baixas das copas. Numa clareira, Roger parou o cavalo e desmontou ajudando Beatriz a fazer o mesmo. Soltou «Quick» e escolheu um lugar onde se sentarem.

Beatriz sentou-se no próprio solo, deixando que a humidade da terra lhe atravessasse o vestido e transmitisse o frescor à sua carne. Respirou profundamente para se saturar do aroma que vinha dos abetos e da própria terra húmida. De súbito ocorreu-lhe perguntar uma coisa:

— Roger, sabes quem eu sou?

— Um anjo.

— Não insultes o céu. Creio que adivinhaste que nada tenho de anjo.

— Pois não fales disso, não quero saber.

Beatriz conformou-se. O homem sentou-se a seu lado. Reclinaram as costas no mesmo tronco de árvore, com os corpos muito juntos. O chapéu negro jazia no chão, ao lado dele. Sobre as copas pontiagudas dos abetos, descansava a lua, eterna testemunha do amor. Nem a brisa faltava, para dar movimento e música à paisagem, silvando suavemente ao passar por entre as ramagens e chegando até eles débil, suave e fresca, odorosa dos aromas dos montes.

De súbito, Roger Novack deu um salto ficando de joelhos na terra, imóvel, semelhante a uma estátua; só se ouvia o tilintar das esporas que vibraram uns segundos depois de haverem recebido o impulso. A sua mão desceu muito devagar na direção do revólver direito enrolando os dedos, como serpentes, em torno da coronha nacarada:

— Que se passa, Roger?

— Alguém nos seguiu.

— Quem?

— Alguém que procura a morte.

— Um homem?

— Vários.

— Quem serão?

— Serão muito depressa cadáveres.

Os seus olhos negros perscrutaram a obscuridade, a densa ramagem e os grossos troncos. Os seus ouvidos percebiam até o ruído que a lua fazia ao deslizar no céu.

Inopinadamente, mais bruscamente que antes, deu um salto de lado que o afastou dois metros da mulher, ao mesmo tempo que a detonação de uma potente espingarda «Sharp» quebrava o silêncio da noite. Na terra, no próprio lugar onde estivera o «diabo negro», incrustou-se um pedaço de. chumbo.

Beatriz quis fugir, mas conteve-se. Os seus olhos seguiram os movimentos de Roger que voltou a saltar novamente, desta vez para evitar várias balas que, raivosamente, procuravam o seu corpo, para se irem perder; burladas, nos troncos das árvores, arrancando pedaços produzindo ruídos secos.

Roger rolava pelo solo violentamente. Houve um momento em que se endireitou. Tinha já os dois revólveres na mão e os dois cuspiram fogo ao mesmo tempo. Um gemido respondeu às detonações e, no curto silêncio que se fez depois, ouviu o bater de um corpo no chão.

Esse silêncio foi curto. Quebraram-no várias detonações, enquanto entre os troncos das árvores brilhavam repentinas chamas que iluminavam por um instante o bosque, dando-lhe formas fantasmagóricas.

Nem só uma das balas que ricocheteavam entre as árvores feriu o corpo do jovem vestido de negro. Ninguém teria imaginado tanta agilidade e violência em Roger. Saltava de um lugar para outro como se tivesse asas. Agora, Beatriz via-o lançar-se contra o tronco de uma árvore com a qual chocou bruscamente, ao mesmo tempo que utilizava o revólver esquerdo.

Atrás de um gigantesco abeto surgiu um homem que levou as mãos ao ventre, gritando desesperadamente. Caiu por terra revolvendo-se e gritando incessantemente.

Outra vez pareceu que o bosque se acendia. Novack perdeu um revólver ao ser ferido num ombro, mas, suportando a dor, atirou-se por terra evitando os novos projéteis e recuperando o revólver que voltou a utilizar com um sangue-frio extraordinário.

Do seu ombro esquerdo começava a jorrar uma serpente de sangue tingindo de vermelho a sua camisa negra, atingindo a cintura e parando ali para banhar os cinturões, molhando de líquido vermelho as fivelas e os cartuchos.

Outro homem rolou pelo solo, levando a mão à fronte onde havia sido ferido certeiramente.

Roger saltou de uma árvore para outra. Outra vez o chumbo rasou perigosamente o seu corpo, mas já eram menos os zangãos de chumbo que cruzavam os ares. Só restavam dois inimigos.

Um deles descobriu-se para apontar com a sua espingarda e recebeu um tiro na têmpora que o atirou bruscamente para trás até o fazer cair de costas, batendo com a cabeça num tronco de abeto que vibrou uns instantes.

O último homem quis fugir. Voltou as costas ao «diabo negro» e desatou a correr.

Mas Roger puxou o gatilho e, implacavelmente, disparou. O homem que fugia pareceu tropeçar em alguma coisa e caiu, de bruços, no solo. Teve forças para se levantar e tentar de novo a fuga, mas outro tiro abateu-o tirando-lhe a vida.

Beatriz levantou-se aterrada.

— Roger!

Roger Novack aproximou-se dela. Já havia guardado as armas e com o lenço do pescoço tentava vedar a ferida aparatosa do ombro. Da fronte resvalava-lhe um fio de sangue que lhe atravessava o rosto em ziguezague e descia até desaparecer dentro da camisa.

— Estás ferido!

— Não é nada, Beatriz; sossega.

Afastou-se dela e foi verificar a identidade dos seus inimigos. Aproximou-se do que havia caído a gritar, mas já estava imóvel; vestia roupas de vaqueiro e era-lhe desconhecido.

Reconheceu um dos mortos. Era Jim, o irmão de Michael Erdman.

Beatriz, que se colocara a seu lado, compreendeu tudo tão bem como Roger, embora lhe tenha dado diferente significado.

— Acaso é tão cobarde que manda o irmão matar-me enquanto ele fica em casa? — perguntou Roger, mordendo as palavras.

— Não creio que ele o tenha mandado — protestou a mulher.

Roger pareceu não a ouvir. Continuou a verificar a identidade dos outros inimigos. Também estava o capataz. Quando o encontrou julgou que iria encontrar o cadáver do fazendeiro, mas isso não aconteceu.

Não disse nada à mulher. Deixou que ela lhe vedasse a ferida, para evitar que perdesse sangue demasiado antes que um médico o observasse. Limpou ele próprio o sangue do rosto com a manga da camisa e chamou o cavalo que havia fugido ao ouvir as detonações refugiando-se alguns metros mais longe.

Beatriz não pôde deixar de sentir mais admiração por aquele homem. Agora já não era o elegante cavaleiro vestido de negro, belo e refinado. O seu rosto estava sujo de sangue e de lama, dando-lhe um aspeto quase sinistro, sujas de lama e sangue também a camisa e as calças. Um rasgão nas calças deixava à, mostra a carne bronzeada da coxa. Mesmo ferido subiu Beatriz para a garupa do seu cavalo, apesar dos protestos desta. Regressaram à cidade. Deixou-a à porta do hotel.

— Vais ao médico?

— Sim. Não te preocupes.

— É que não me agrada deixar-te nesse estado.

— Já tenho estado em situações piores, não te preocupes; a casa do médico é longe.

Pôs o pé esquerdo no estribo do cavalo e, de um impulso, montou. Afastou-se, acto continuo, sem voltar a cabeça uma só vez.

 

 

 

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