Lucy olhava a imagem que o espelho lhe devolvia. Acabava de sair da cama, e um subtil roupão cobria a sua camisa cor-de-rosa.
O rosto mostrava os sinais da luta interior que a consumia desde há alguns dias. Profundas olheiras rodeavam as pálpebras, e uma crescente palidez ia-se fixando naquela sutis, noutro tempo tão branca como o leite. Mas tudo isso não diminuía a sua beleza natural; pelo contrário, dava-lhe um aspeto romântico, de acordo com o gosto da época.
Correu o pente pelo cabelo, e naquele instante qualquer coisa caiu ao chão. Voltou-se sobressaltada, observando por cima da almofada azul uma pedra à qual haviam atado um papel.
A janela, de estilo californiano que predominava em toda a casa, estava aberta, e era esse o caminho que o projétil tinha seguido ao ser atirado de fora.
Agarrou na pedra, desatou a mensagem, e leu: «Recorda-se ainda de Keith Yerbi, poderia conceder uns minutos a alguém que foi seu amigo? Se a sua resposta for afirmativa venha só, às onze horas de hoje, à cabana situada junto ao Barranco do Lobo, e não dê a conhecer a ninguém isto».
Repetiu a leitura duas vezes, estranhando a aparição naquela comarca de uma pessoa que se dizia amiga do homem que tinha amado. Por fim dobrou a carta e comprovou no relógio que dispunha de pouco tempo para ir ao lugar do encontro.
Despiu-se e vestiu-se em cinco minutos, e pouco depois das dez cavalgava para nordeste do rancho. O prado terminou o prado e os cascos do alazão pisaram uma terra dura, vermelha, e no chão cresciam arbustos espinhosos.
A paisagem foi mudando.
Aquela região era hostil, refúgio somente de cabras, lagartos e corvos. Acabara-se a uniformidade do chão, e começavam os montes e caminhos.
Lucy deixou para trás desfiladeiros, agora cercos, que na época das grandes chuvas se convertiam em poderosas correntes, rochas descomunais, negras, de origem vulcânica, que pareciam sentinelas montando guarda às portas do inferno.
O vento soprava pelas secas ladeiras, passando pelos interstícios da pedra, produzindo sinistros silvos.
Um bando de pássaros negros que estava em pleno banquete em cima duma rês morta, indubitavelmente extraviada, levantou voo, e o ar encheu-se de grasnidos e do barulho das asas a voar.
Por fim, Lucy viu a cabana a que se referia a carta. Achava-se ao pé duma ladeira, muito próximo do barranco denominado do Lobo, e tinha sido construída por seu pai, havia já várias décadas, para que os cowboys pudessem vigiar aqueles confins, que algumas vezes serviram de guarida a ladrões. Estes foram desaparecendo como bandos organizados, e então a cabana ficou abandonada à mercê do tempo e da natureza. Por isso o seu aspeto era de ruína.
O vento uivava pelas janelas, e a porta tinha terminado por desmoronar e descansava no chão. Deteve-se a umas jardas da lúgubre casa, e pondo as mãos em forma de concha, rodeando a boca, gritou:
—Eh!... Há alguém?
Por uns instantes esperou inutilmente uma resposta, e repetiu o chamamento:
—Está alguém aí?...
Então uma voz vinda do interior da cabana respondeu-lhe:
— Sim!... Estou!... Estou-a esperando!
Lucy sentiu repentinamente medo. Disse para si mesma que tinha sido demasiado leviana. Mas tudo o que tinha feito foi ao chamamento dum morto querido, Keith Yerbi. De que tinha, pois, que arrepender-se?
Tirou uma pequena «Derringer» do bolso do seu casaco, e desmontou. Foi andando passo a passo, lentamente, e assim transpôs a distância que a separava da cabana, olhando para a porta e para as janelas.
—Que se passa? — gritou de novo, sem deixar de andar. —Porque não sai a receber-me? Não é costume?... Sou sua convidada!...
Chegou à entrada, e deteve-se.
—Continua aí? — perguntou.
—Sim — responderam-lhe.
Então decidiu-se a entrar, e encontrou-se num aposento que tinha uma desmantelada mesa e um par de cadeiras velhas. Tudo estava coberto de pó. Ao fundo havia uma porta aberta que conduzia a um quarto interior, noutro tempo utilizado como quarto de dormir.
—E valente, senhorita Stanley — disse a voz oculta.
— Porque se esconde? — inquiriu ela, contemplando o espaço visível do outro quarto, enquanto apertava firmemente a «Derringer».
— Permite-me que entabulemos o diálogo nas nossas atuais posições?
—De que quer que falemos?
—De Keith Yerbi.
A jovem sobressaltou-se, e passados uns segundos interrogou:
—E o irmão dele?
— Tem alguma razão particular para que pense assim?
—A sua voz. É muito parecida com a de Keith.
—Ainda a recorda?
— Ainda — sussurrou.
Fez-se um grande silêncio como se ambos os interlocutores o tivessem acordado tacitamente. Por fim, a pausa foi interrompida pelo homem.
—Ê estranho.
— Porquê?
—Já passou muito tempo desde então.
— Séculos — concordou ela.
E de repente recordando que ele ainda não tinha afirmado ou negado, insistiu:
—Ê o irmão dele, não é verdade?
—Digamos que sou uma pessoa muito chegada a Keith. Porque não se foi embora da comarca?
Lucy franziu as sobrancelhas, perguntando:
— Como sabe que eu queria abandoná-la?
—Ele escreveu-me uma carta poucos minutos antes que fosse enforcado.
—E contava-lhe tudo?
—Sim, tudo.
— Que lhe dizia de mim?
O homem demorou tempo para responder.
— Que lhe queria mais que à sua própria vida — declarou roucamente. — Que desejava tê-la encontrado antes, e que isso tivesse acontecido...
Lucy emitiu um soluço, e ele interrompeu o que dizia. Ao fim dum minuto desculpou-se:
—Sinto muito, senhorita Stanley.
—Não se preocupe. Continue.
—Para quê? O que ele disse não importa já.
—Importa-me a mim.
— Não se atormente inutilmente. Você tem deveres para a sua filha.
—Para minha filha?... Quem lhe disse que tenho uma filha?
—Vi-a outro dia. Não se envergonha de ter casado com outro homem?
—Quem lhe contou essas coisas? Eu não estou casada nem tenho nenhuma filha!... Não sei o que lhe dizia Keith nessa carta…
O homem que estava no outro quarto pareceu impressionado por tal declaração.
—Mas... Eu ouvi a menina chamar-lhe mamã!...
Lucy riu pela primeira vez.
—Você confundiu-me com a minha irmã. Chegou há alguns dias ao rancho. Ê viúva, e tem uma miúda muito linda de cinco anos. São elas que você viu...
—É... é verdade? —titubeou o homem.
— Ana parece-se muito comigo, apesar de não sermos gémeas. Mas se nos contemplasse juntas, comprovaria que somos diferentes em algumas coisas, e além disso eu sou mais magra.
—Santo Deus!
A jovem perguntou:
—Passa-se alguma coisa?
—Não, nada. Pensei que pelos anos que já passaram desde aquilo, você poderia ter contraído matrimónio...
—A que anos se refere? Não consigo compreender...
—Foi há nove anos. Ou por acaso não se recorda quando viu pela última vez Keith?
— Está a fazer pouco de mim? — murmurou ela em plena confusão, passando uma mão pela testa. — Que pretende com tudo isto? Keith morreu somente há duas semanas...
O tempo pareceu deter-se. Um golpe de vento trouxe uma nuvem de areia que bateu nas paredes da cabana, entrando pela porta e janelas.
— Que diz! — gritou o homem.
— Cada vez mais me parece incongruente esta conversa. Porque não se deixa ver? Que motivos o fazem esconder-se?
—Que dia é hoje, menina Stanley Por favor diga-mo rapidamente, ou ficarei louco antes de poder ouvi-lo.
— 20 de Outubro.
—De que ano?
—Mas, é possível que não saiba em que ano vive?
—Não discuta, peço-lhe. Que ano?
—Mil oitocentos e oitenta e sete.
—Não!
A perplexidade de Lucy ia aumentando.
— Porque não? — inquiriu.
O homem que se encontrava do outro lado da parede pareceu falar consigo mesmo.
— Claro que sim! Não podia haver outra explicação!... Foi em 6 de Outubro, e essa noite despertei!... Não me mataram! Estou vivo!... Vivo!...
A «Derringer» que Lucy agarrava resvalou da sua mão, e caiu no chão. Por um instante acreditou que ia desmaiar. Quis articular algo, mas as palavras não afloravam aos seus lábios. Então, Keith Yerbi apareceu no umbral da porta.
—Lucy! —exclamou.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
—Keith!... Keith!...
Abraçaram-se desesperadamente, como se em lugar de um encontro, aquela cena fosse um prolongamento da horrível despedida na antessala da morte. Os seus lábios juntaram-se uma e outra vez, até que ela, despedaçados os nervos, começou a chorar entrecortadamente.
—Não posso acreditar... É algo irreal... Mas continua a abraçar-me, querido!... Sim é um sonho, não desejo despertar jamais!...
—Não é um sonho, Lucy. Estamos os dois na Terra.
Olharam-se nos olhos larga e profundamente, e ela foi serenando.
— Como aconteceu, Keith? —perguntou-lhe depois de passada a primeira impressão, secando as lágrimas.
—Há coisas que não têm explicação. O que te posso dizer é que saí da sepultura e pensei ter ressuscitado. É evidente que me adormeceram, e não quiseram matar-me.
—Mas deram-te por morto.
— Não, nesse caso ter-me-iam enterrado mais profundamente. Além disso voltei ao cemitério e comprovei que o caixão tinha furos a fim de que pudesse respirar. Só puseram em cima um monte de pedras para que pudesse chegar-me o oxigénio suficiente.
—Quem o fez?
—O sheriff ou o seu ajudante.
— Porquê?
— Beerman sabia que eu era incapaz de assassinar o juiz especial. Sem dúvida, teve qualquer coisa com a minha presumível ressuscitação...
—O quê? Na sepultura ao lado havia uma cruz com a data do falecimento do seu ocupante. Era o ano de 1897.
—Não acreditas que quem fez a gravação possa ter-se enganado?
— Seria demasiado casualidade. Tem em conta o que houve no caso da tua irmã. Regressou quando eu saía da sepultura para que a confundisse contigo!
—Mas então, é impossível. Que ganhava o sheriff em mudar o ano, dessa cruz?
—Não sei, Lucy—disse Keith, pensativamente. —Não o sei.
De repente, o rosto da jovem tornou-se sombrio.
— Que tens querida? — murmurou ele.
— Então, tu... tu mataste Chandler e Greene...
Separou-se de Yerbi, esperando uma resposta:
—Sim, matei-os. Que teria feito qualquer outro, que se encontrasse nas minhas circunstâncias? Por inverosímil que pareça, tudo estava preparado para que acreditasse realmente na minha ressuscitação, e, admitida ela, só tinha que pensar no castigo dos homens, que me tinham condenado injustamente, sabendo que era inocente. Mas não os assassinei, Lucy. Juro-to. A ambos dei uma oportunidade. Não só de defenderem-se, mas também que pudessem ser eles que me matassem outra vez...
—Oh, Keith!... Mas, e agora? Vais continuar a matar?
— Ameacei Koehler convidando-o a que faça um relato dos crimes de Hayden. A estas horas a sua carta deve ir a caminho de Austin...
—E que se passará?
— O Tribunal de Apelação do Estado investigará o assunto. Saber-se-á quem foi o autor do assassinato do juiz especial, e a forma como Hayden conseguiu a sentença favorável. Todos quantos tiveram relação com ela serão julgados, a verdade aparecerá, e os agricultores poderão cultivar os seus campos...
—Foram-se embora todos...
—Voltarão a estas terras regadas já pelo sangue dos seus.
Lucy abanou a cabeça, argumentando:
— Parece-me demasiado fácil tudo isso. Tu não conheces Clinton. Não vacilará em arrasar e matar, se supõe que a conjetura será desmascarada.
—A única coisa que conseguirá é precipitar a sua desaparição do mundo dos vivos.
—Como sabes que Koehler mandou a carta?
—Tem demasiado medo para fazer outra coisa. De qualquer forma, esta noite visitá-lo-ei para certificar-me disso.
Agarrou-a pelos braços, e juntou:
— Agora tens que te ir embora ou eles estranharão a tua ausência. Suponho que Clinton continuará com o seu costume de ir muito amiúde ao rancho.
—Desde que morreste oficialmente, espaçou as visitas. Estou convencida que o meu matrimónio com ele é um facto, e o cerco não é tão severo. Quando te verei, querido?
—Vem depois de amanhã a esta cabana.
—E porque não amanhã?
—E melhor que deixemos passar quarenta e oito horas.
Lucy confirmou com um sorriso de contrariedade, e finalmente trocaram um grande beijo. Ele acompanhou-a até à porta. Lucy montou o cavalo, e levantou um braço, olhando sorridente Keith.
— Toma cuidado, querido! —gritou, e imediatamente picou as esporas para o cavalo se dirigir para o rancho.
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