quarta-feira, 2 de novembro de 2022

BRV014.10 Duelo à porta da igreja traz a dor do verdadeiro amor


Embora naquela noite mal tivesse conseguido dormir, na manhã seguinte acordou cedo. Recordou-se imediatamente do que havia sucedido no bosque e, como uma sonâmbula, saiu da cama e aproximou-se da janela.

Se esperava ver alguma luta, teve um desengano. A rua estava tranquila, o sol já havia surgido no horizonte e começava a subir no céu, ameaçador como sempre.

Naquele dia, Main Street tinha um ar domingueiro. Nos passeios viam-se crianças de calças compridas e estreitas e altos chapéus, lenços de cores ao pescoço, laços ou gravatas, casacos de desenhos berrantes ou de pano negro, apesar do calor.

As mulheres, muito diferentes, abriam as suas sombrinhas até mesmo à sombra, ralhavam com as crianças que se deitavam ao chão ou faziam gritaria falando todos ao mesmo tempo.

Os homens, orgulhosos, mostrando (nunca se soube porquê) os seus coletes atravessados por uma ou mais cadeias de ouro ou prata, deixando ver a corrente do grande relógio, cobertos todos com chapéus novos, a maioria de abas estreitas e cor escura, embora se vissem muitos de palha pintada, mas em menor número.

Vários carros entravam na rua principal para depois se ocultarem em qualquer ruela para deixarem a passagem aberta.

A igreja ficava na própria rua principal, mais para o Norte. Da janela do hotel via-se o seu alto campanário, notava-se bem o bronze dos sinos que começavam` a tocar enviando ténues reflexos acobreados e um som agradável pelo sabor familiar que contém.

Beatriz compreendeu então que a população ainda não conhecia a tragédia. Possivelmente, Erdman não estava ainda informado da morte de seu irmão e, naquela, altura, chegaria à cidade no seu carro puxado por dois formosos alazões. Sentiu uma pena profunda dele, sentiu uma dor tão intensa que se podia considerar semelhante à que o homem experimentaria ao saber da sorte sofrida por Jim.

E de súbito sentiu a necessidade de ir para junto dele. Sabia que não o poderia consolar, porque ela não era nada nem ninguém para o conseguir; mas esse desejo, instintivo em toda a mulher que a leva a oferecer proteção e carinho, obrigou-a a procurar desesperadamente o vestido menos audacioso de quantos havia trazido e a vestir-se com a máxima rapidez.

Viu-se ao espelho e notou-se pálida, de feições quase maceradas; pintou um pouco os lábios para ocultar a cor triste que tinham e dissimulou as rugas que se formavam nas comissuras dos olhos, com um pouco de lápis.

Saiu para a rua sem sombrinha, servindo-se de um chapéu de abas muito largas que lhe chegavam aos ombros. Caminhou pelo passeio até à transversal mais próxima e depois continuou pelo pó da rua sem se importar muito que a bainha do seu vestido se sujasse. Sentia-se inquieta e nervosa.

Ouviu aproximar-se um carro atrás de si e voltou-se. Podia ser ou não Erdman. Mas era. Ia sorridente, parecia alegre e, indubitavelmente, o era porque a havia visto e suspeitava que ela havia madrugado por sua causa.

— Bons dias, Beatriz.

— Olá, Erdman — disse ela, em voz fraca.

— Sobe. A missa só começa mais tarde.

Ela assim fez. Percorreram a rua principal, deram a volta por outra ruela e voltaram a entrar na mesma rua. Beatriz não disse nada, não encontrava palavras para começar. Sentia um vazio tão grande dentro do peito que receou desmaiar mal começasse a dizer ao fazendeiro o que se havia passado. Contudo, Erdman mostrava-se animado, falador.

Em certa ocasião ela interrompeu-o, mas não se atreveu a continuar. As pessoas cumprimentavam-nos amavelmente quando passavam e quando deteve os cavalos à porta da igreja todos os que ali estavam se inclinaram cerimoniosamente.

Ao descerem do carro, Beatriz viu uma sombra negra e ficou imóvel, como paralisada. Não se atreveu a olhar, mas uma força misteriosa e irresistível obrigou-a a levantar os olhos. Roger Novack estava ali.

De pé, no alto da escadaria que dava acesso ao templo, com as pernas ligeiramente arqueadas, a mão esquerda pendendo inerte ao longo do corpo, o braço direito ligeiramente curvado, com os dedos a tocar o coldre da sua única arma. Não trazia chapéu e os seus cabelos negros, despenteados, caíam pela fronte até quase lhe cobrirem um olho. Levava a mesma camisa da noite anterior, rota e ensanguentada, rotas e ensanguentadas também as calças, sujas de pó.

Beatriz não conseguiu reprimir um grito e Erdman olhou-a admirado, depois seguiu o olhar da mulher e viu o homem vestido de negro. Todos pareceram então notar a sua presença e o murmúrio das conversas transformou-se em silêncio mortal.

A posição do «diabo negro» era eloquente, falava de morte. Ninguém duvidou, a sua fama e a presença da mulher garantiam-no. Erdman olhou-o francamente, afastando-se ligeiramente de Beatriz e interrogando-o com o olhar.

— Vim matar-te, Michael Erdman — disse Roger com voz glacial.

Ninguém falou. Erdman continuou na mesma, sem se mover.

— Porquê?

— Por esta mulher.

O fazendeiro olhou para Beatriz e viu-a tão pálida que começou a compreender que o homem não era desconhecido dela.

-- Queres disputar-ma?

— Tu começaste.

Erdman não compreendeu. Voltou a olhar para Beatriz. Não teve muito que pensar. Decidiu arriscar a vida para conseguir a sua companhia.

— Não comecei eu, Novack... mas aceito o repto.

— Procura um revólver.

Erdman ia desarmado; voltou-se para procurar alguém que lhe oferecesse um revólver. Ninguém ia à missa com armas, mas começaram a chegar curiosos e um deles levava o seu cinturão-cartucheira com um pesado «Colt», de calibre 45. Alguém lho pediu.

O dono do revólver não o quis emprestar; era amigo de Erdman. Beatriz interpôs-se também na frente do fazendeiro dizendo:

—Não te batas por mim, Michael... não vale a pena.

Erdman pensou. Mas já não podia retroceder. Fez-se um curto silêncio quando o homem se negou a emprestar a arma. Novack não dispararia contra ele estando desarmado.

— Está pendente também a morte de teu irmão — disse Roger — a morte do teu capataz e de três dos teus homens. Não os queres vingar?

Desta vez Erdman empalideceu e olhou para Novack surpreendido e depois para Beatriz que moveu lentamente a cabeça num gesto afirmativo. Empalideceu. A sua mão trémula estendeu-se para o seu amigo armado, que não teve coragem para lhe negar a arma e, desapertando a fivela lhe deu o cinturão com o coldre.

Erdman fixou-o nas ancas com um gesto mecânico. O seu rosto havia adquirido a cor da cinza ao ficar sem sangue. As pessoas que estavam perto dele começaram a afastar-se e os que estavam atrás dele fugiram deixando-o só. Beatriz não compreendeu. Num esforço desesperado agarrou o braço do fazendeiro suplicando:

— Não lutes, Michael. Não! Ele mata-te.

Mas no rosto pálido do homem havia coragem e decisão. Beatriz sentiu-se desarmada, impotente. Afastou-se um pouco dele. Erdman teve de estender o braço para a afastar mais, depois do que deixou pender os dois braços e, com as pernas abertas, ficou em frente do cavaleiro negro.

falaram, contemplaram-se um instante em silêncio e os dois moveram ao mesmo tempo o braço direito. Roger teve um entorpecimento, a sua mão hesitou um pouco antes de «sacar» o revólver. Foi um movimento pouco percetível que ninguém teria notado se não tivessem visto «sacar» outras vezes. Alguma coisa falhou. Mas, mesmo assim, adiantou-se a Erdman e disparou primeiro.

Fê-lo com certa precipitação, mas no lado direito do peito do rancheiro apareceu uma pequena mancha vermelha. O pesado revólver escapou-lhe dos dedos e dobrou as pernas até cair de joelhos. Roger, implacável como sempre, voltou a levantar o percutor do seu revólver «Walter»; fê-lo lentamente, como sempre fazia quando, em vez de um duelo, se tratava de uma execução.

Beatriz, movida por um misterioso impulso, interpôs-se entre o revólver e o fazendeiro.

— Não!

A arma não falou, continuou silenciosa, apontando para a mulher.

— Afasta-te, Beatriz.

— Não, Roger! Se quiseres, terás de me matar primeiro a mim.

— Não posso matar uma mulher, mas também não posso perdoar a um homem.

— Ele não mandou o irmão! Não sabia nada! Juro-te!

— Custa-me a acreditar.

— Ter-te-ia enfrentado agora? Teria estado tão tranquilo e alheio à tragédia?

Roger moveu o revólver, mas continuou a apontar para ela.

— Ficas tu, Beatriz; ele aceitou que te disputássemos e assim terá de ser.

— Disputar? Não posso escolher eu? És um malvado, Roger!

— Ainda há pouco me tinhas amor, Beatriz.

— Nunca te amei!

— És minha... Não posso permitir que ele te roube.

— Eu não sou tua!

— Foste-o na outra noite... estiveste nos meus braços...

— Outros homens me tiveram nos seus braços — disse Beatriz com ódio. — Não és o primeiro. Que julgavas? És um fátuo, um vaidoso.

Estava desesperada. Nunca acreditaria que fosse capaz de actuar assim. Nas pernas sentia o contacto da cabeça vencida de Erdman e no peito um estranho ódio. Voltou a falar.

— Falas de me disputar? Com quantos homens me disputarás? Vai-te e não voltes! Pensa que, em vez de te oferecer o máximo que uma mulher pode dar, te ofereci cem dólares!

O revólver caiu por terra, vencido, ao mesmo tempo que a mão descia e ficava pendente, sem força. Roger Novack desceu os degraus muito lentamente. Ao chegar ao último, um cavalo negro aproximou-se dele. Pouco depois desapareciam ambos por uma ruela que dava para a pradaria. Beatriz perdeu a coragem ao vê-lo ir-se embora e começou a chorar desconsoladamente.

Quando as pessoas correram para ajudar o ferido, ela foi-se afastando até que uma voz a chamou.

— Beatriz — disse Erdman com um esforço. — Não te vás... não me deixes... Preciso de ti...

— Deixa-me ir embora, Michael... Eu não sou a mulher que mereces. Enganei-te. Não compreendes?

— Amo-te... Preciso de ti. Não me importa o teu passado, só o presente e o futuro.

O choro dela aumentou. Erdman voltou a falar, fazendo um esforço para se livrar dos que tinham vindo a ajudá-lo a levantar-se.

— Teria morrido por ti e se continuo vivo também é por ti. Não podes ir. Para mim és uma mulher boa... Já não tens nenhum segredo que ocultar... ninguém o descobriu; apregoaste-o tu... nunca te poderão ferir. Aceita-me, Beatriz e converter-me-ei no homem capaz de te fazer feliz.

Não conseguiu reprimir o impulso e caiu de joelhos, abraçando-se às pernas do homem e assim continuou a chorar.

— Levanta-te, Beatriz. Se meu irmão morreu por nós, não deixemos que o seu sacrifício seja inútil.

Uns braços ajudaram-na a levantar-se. Quando, por entre as lágrimas, viu o rosto de Michael Erdman, sentiu que o peito se lhe enchia de ternura, as palavras dele repetiram-se nela como uma bendição e vislumbrou a entrada de uma vida nova, maravilhosa. Uma vida verdadeiramente nova.

Uma existência que não merecia, mas estava disposta a ganhar com a dor do verdadeiro amor.

 

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