quinta-feira, 10 de novembro de 2022

CLT022.01 PRÓLOGO. Uma visão desagradável para o morto-vivo


Era meia-noite. A lua apareceu entre duas nuvens e os seus raios banharam o cemitério, fazendo brilhar as cruzes cobertas de orvalho.

Um mocho, encarrapitado num ramo seco dum carvalho, voou e soltou um gemido como se protestasse pela repentina claridade. Os seus grandes olhos olharam dum lado ao outro e depois ficaram imóveis, perdidos num largo caminho que atravessava o cemitério.

Tudo estava calmo e quieto, quando de repente duma sepultura que ficava próxima do carvalho, se desprendeu uma pedra.

O mocho grasnou e fixou o seu olhar lá em baixo.

Passou-se um minuto.

Subitamente outras pedras voaram ao mesmo tempo que um grito surdo, afogado, pareceu sair das entranhas da terra.

A ave retrocedeu para o ramo, como que assustada.

Durante um momento, o silêncio reinou sobre as sepulturas. Mas depois, aquele cogumelo de pedras que tinha começado a mover-se, precipitou-se como uma pequena avalanche, e a cruz que estava em cima estremeceu uma e outra vez, até que finalmente caiu.

Então, uma mão emergiu da terra. Uma mão de dedos comprimidos que se moveram no ar, parecendo querer agarrar qualquer coisa.

O mocho moveu a cabeça à direita e à esquerda grasnando, saltando sobre as patas, abrindo as asas...

A mão começou a subir e a subir, até que o braço ficou de fora. Agora uma respiração ofegante, entrecortada, filtrava-se entre as pedras que se desprendiam. Os compridos dedos começaram a agarrar-se aos bordos, atirando as pedras para o lado da sepultura.

E de repente, com um estrondo, o dorso de um corpo apareceu do solo. Era um homem. O rosto ficou banhado pelo suor. O sangue corria--lhe pela cara. Tinha uma sobrancelha partida, um lábio cortado, e as maçãs do rosto magoadas.

Apoiou as palmas das mãos na terra, enquanto o seu peito se agitava ao compasso duma ruidosa respiração. Pouco a pouco esta foi serenando. Quando o conseguiu, tirou as pernas e pôs-se em pé lentamente.

Então, pela primeira vez, olhou em volta, e ao ver as sepulturas estremeceu. Deu um gemido, escondendo o rosto entre as mãos. Assim esteve um momento e, quando as separou, viu-as manchadas de sangue, do seu sangue.

Com uma voz estrangulada, exclamou:

— Santo Deus!... Não pode ser!

As suas pernas tremeram, cambaleou, e todo o seu corpo se arqueou também. Olhou os pés, e viu a sepultura removida e o caixão negro donde tinha saído. Apertou as fontes e fechou os olhos, pensando que quando os abrisse já tinha passado o pesadelo.

Mas ao abri-los, continuava num cemitério, num cemitério onde tinha estado enterrado até há poucos minutos.

O seu olhar mirou o seu próprio corpo, observando-se, polegada a polegada.

De repente, junto da bota, viu a cruz. Abaixou-se muito depressa e agarrou-a. Tinha uma placa de cobre com uma gravação na junção dos braços. Os seus lábios trémulos leram num sussurro:

— «Keith Yerbi...»

Era ele! Keith Yerbi!

— «Nascido em 24 de Agosto de 186o. Morto em

—Morto em 6 de Outubro de 1887...

A cruz resvalou de suas mãos e caiu pesadamente no chão. O coração garrotou no peito enquanto repetia:

—Morto em 6 de Outubro de 1887...

Era verdade Morreu nesse dia! Recordava-se até ao último detalhe porque ele, Keith Yerby... fora enforcado!

Ao chegar a esse pensamento, instintivamente as mãos subiram-lhe ao pescoço. Pareceu-lhe sentir nele, a ferida deixada pela corda.

Em sua mente voltou a produzir-se a última cena, quando, com as mãos atadas nas costas, subiu para o carro, o ajudante do sheriff lhe passou a grossa corda pela cabeça e o deixaram só e pensou que o tempo se deteria para dar oportunidade ao milagre.

Mas alguém chicoteou o cavalo, o carro mexeu-se, ele ficou suspenso no vazio com aquele laço apertando-lhe mais a garganta até que os pulmões ficaram sem ar e os ouvidos rebentaram. Então, veio a morte...

Mas, estava vivo! Aconteceu, pois, esse milagre! Tinha ouvido falar de pessoas que foram enterradas pensando que estavam mortas. Era isso o que lhe tinha acontecido! Começou a rir com suavidade, e de repente soltou uma gargalhada histérica.

O mocho que estava no carvalho assustou-se, e afastou-se voando e dando grasnidos. Deixou de rir, e os seus olhos vítreos fixaram-se nas sepulturas que o rodeavam. Deu dois passos para a mais próxima, gritando nervosamente:

— Queridos companheiros!... Estou vivo!... compreendem?... Vivo!... Quem és tu, vizinho?... Se calhar nem te conheci em vida, e o destino pôs-nos lado a lado para o último... sono...

Agachou-se e leu a placa da cruz.

— «Reginald Owen. Nascido em 2 de Junho de 1865. Morto em 14 de Janeiro de 1897...»

Aquele último número, 1897, foi um projétil lançado em seu cérebro, cujo embate sentiu até à última fibra do seu ser.

Rapidamente concebeu um pensamento, e este rolou na sua medula e fez uma grande bola de neve.

«Se aquele Reginald Owen havia nascido em 1897, ele Keith Yerbi, tinha estado nove anos enterrado!..., havia nove anos que tinha sido enforcado!...»

Teve que fazer um esforço para evitar cair no chão, porque as pernas recusavam a sustentá-lo. Era impossível. Devia ter lido mal.

O seu olhar voltou-se de novo para a gravação e aqueles quatro números, um, oito, nove, sete, apagaram definitivamente o ténue raio de esperança.

Então teve medo. Medo de si mesmo.

Deu um grito e lançou-se a correr pela ladeira abaixo. Correndo, tropeçando, cambaleando, chegou ao alto do caminho; ali deteve-se. A lua apareceu entre as nuvens, e enviou um raio de luz sobre a terra. Keith voltou a cabeça para contemplar as cruzes que pareciam salpicadas de pérolas.

— Santo Deus!... Porque será que me fizeste isto! Porque terei saído da sepultura?... Porquê ao fim de nove anos de estar enterrado voltei à vida com o mesmo corpo que tinha sido enforcado uma vez?

E de repente acreditou saber a resposta. Havia sido condenado por um crime que não cometera. Conhecia os assassinos, sabia porque o tinham morto.

Um jurado comprado havia ditado contra ele a sentença de culpabilidade. Aquelas palavras voltaram a soar nos seus ouvidos com um acento lúgubre...

«...e condenamos Keith Yerbi a ser enforcado numa árvore até que o seu corpo tenha lançado o último suspiro...»

Tinha voltado ao mundo para castigar quem burlara a Lei e a Justiça! Era essa a sua missão!

Não, não tinha pistolas. Os mortos enterram-se sem armas. Tinha que procurar um par de «Colt».

Olhou pela última vez o que havia sido a sua morada durante tão largo tempo, e depois começou a andar empreendendo a descida do monte.

Quando chegou lá abaixo, outro pensamento ocupou a sua cabeça. Surgiu como um fantasma e disse um nome. O de Lucy Stanley, a mulher que tinha amado.

Como não se tinha lembrado dela antes? Ela brindaria a oportunidade de saber que ele era realmente um ressuscitado?

Ao pensar no que havia lido na placa da sepultura vizinha, agora, recordando Lucy, surgia outra vez a esperança...

Andava cada vez mais depressa e, imaginando Lucy nos seus braços, dizendo-lhe que jamais tinha morrido...

Seguiu por um caminho longe da estrada, para não ser visto, e chegou ao rancho Stanley quando a aurora pintava de cor-de-rosa o céu. Queria ver Lucy, mas não queria assustá-la, e falariam em qualquer sítio onde não pudessem ser surpreendidos.

Escondeu-se atrás duns sacos próximo da casa, evitando vários cowboys que começavam o seu labor diário, e esperou.

Ao fim de algum tempo ouviu risos infantis, e estranhou. No rancho Stanley não havia crianças. Saiu do seu esconderijo, e dirigiu-se cautelosamente para a porta do celeiro que estava entreaberta.

Ali, pela fresta, viu uma rapariga de cabelos ruivos que brincava com uma boneca... Não devia ter mais de seis anos.

De repente, pela porta da casa, viu surgir Lucy, e sentiu que o pulsar do seu coração se acelerava. Estava mais formosa que nunca, mas... tinha mudado! As suas ancas eram mais largas, os braços um pouco anais grossos.

Não teve tempo de continuar a observá-la, porque ela chamou a menina.

—Lucy!

A miúda voltou a cabeça, e respondeu:

— O que é, mamã?

Aquela palavra foi como uma pancada que lhe tivessem dado na nuca. Pareceu-lhe que uma mão invisível lhe puxava a espinha dorsal, e que dum momento para o outro o seu corpo rebentaria em mil pedaços.

Quando voltou à realidade, Lucy e a menina tinham desaparecido. Ficou um momento fixo naquela porta que tinha tragado a sua definitiva oportunidade.

Bem, tudo estava concluído. Agora só restava a sua vingança. A partir desse momento moveu-se rapidamente, obcecado por essa única ideia. Dirigiu-se à cavalariça, e nos momentos propícios preparou um cavalo. Quando estava pronto, aproximou-se dum cowboy, pô-lo fora de combate batendo-lhe. Tirou-lhe o cinturão com as armas, e voltou para o pé do animal.

Minutos depois cavalgava pelo prado para Watson City, a cidade em que tinha sido julgado e condenado. E enquanto as patas do animal pisavam a fresca erva, recordou que por aquele mesmo tapete verde tinha chegado àquela comarca certo dia do Verão de 1887...

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