SEGUNDA PARTE
CLT022.08 O presságio do gato preto
O juiz Colmei Chandler acariciou o ombro de Betty, uma girl do «Blue Saloon», e disse:
—És muito formosa, Betty, muito formosa... Agradaste-me desde a primeira vez que te vi...
A rapariga, de uns vinte e cinco anos, ruiva, rosto gracioso e corpo de primorosas linhas, subiu o decote escondendo o ombro, e respondeu:
—Divirtamo-nos, juiz... Isto parece um velório...
Estavam num reservado do estabelecimento, e ali chegava, através dos delgados tabiques, o borborinho do público que estava na sala.
— Bem —concordou Chandler — que queres?
—Para começar, uma garrafa de bom whisky. Esses condenados dali de fora só são capazes de convidar-nos para um copo de vinte centavos...
O juiz riu, e prometeu:
—Terás uma garrafa de Kentucky...
— É verdade, avozinho?
Chandler fez um trejeito.
—Não sou tão velho, Betty...
—Oh, tens que perdoar-me. Não o disse com intenção de ofender-te.
—Claro que não, rapariga, claro que não... Anda, encomenda essa garrafa, e não demores muito a voltar...
Betty obsequiou o juiz com um grande sorriso, e saiu do reservado. Regressou passados poucos minutos, e trazendo ela mesmo a garrafa e os copos.
—Não é estupendo, Chandler? Whisky «Velho cavalo»!... O melhor do mundo!...
—Tu o mereces, Betty...
A rapariga tirou a rolha da garrafa, e riu. Ambos encheram um copo, e ela perguntou:
— Por que brindamos, querido?
— Por nós. Entrechocaram os copos, e beberam dum só trago o seu conteúdo.
Chandler aproximou-se mais de Betty, pôs-lhe a mão pela cintura, e atraiu-a para si.
—Magoas-me, juiz! — protestou, risonha, a jovem.
Ele procurou avidamente os seus lábios, colando-os com os seus. De repente a porta abriu-se um centímetro, gemendo. Betty separou-se de Chandler, franzindo as sobrancelhas.
—O que é que é? — murmurou.
—O vento abriu a porta.
Ela fechou-a, e então dentro do reservado ouviu--se um miau.
— Um gato! —exclamou Betty, levantando-se.
Estava ali, ao pé das pernas duma cadeira. Tinha o pelo negro, brilhante, e os seus olhos verdes rebrilhavam como dois carbúnculos.
A girl abriu os seus olhos, espavorida.
— Um gato preto! — gritou.
—E o quê? —disse Chandler. —Faço-o sair daqui mesmo agora!...
—Não, juiz!
Mas ele já se tinha levantado. Abriu a porta e deu um grito; o felino saiu correndo, miando muito. Quando se voltou viu Betty, horrivelmente pálida, com um cotovelo apoiado na mesa.
—Que tens, querida? Não te sentes bem?
A rapariga moveu a cabeça dum lado para o outro, e sussurrou:
— Esse gato, Chandler...
—Que tens? Já vi outros como este.
— Anuncia a morte...
—Bah!... Tu também acreditas nessas coisas?...
—E verdade, juiz!... Tens que acreditar-me!
—Não sabia que «Cavalo velho» fosse tão bom. Basta um só trago para que disparates. Tenho curiosidade por saber os efeitos que te faz o segundo. Bebamos?
—Não, juiz!... Tu não me entendes! —Betty falava nervosamente, apertando as mãos. —Dube Gallico viu um gato preto duas horas antes de cair morto em Sonora!...
—Parvoíces! Teria morrido da mesma maneira se não tivesse visto o bicho.
—Grant Wheeler viu um gato preto no dia em que o sheriff de Abilene o baleou!...
— Isso são histórias que o povo conta— arguiu Chandler.
— Grant era meu amigo, e eu estava com ele quando...
— Está bem!... Foi pura coincidência! — exclamou o juiz, um pouco irritado. —Esquece isso, queres? Viemos para aqui para nos divertirmos.
—Não — disse Betty. —E melhor que te vás embora... Podemos continuar noutro dia...
—Sou eu quem manda aqui! — gritou o juiz. —Entendes? Para isso pago!
Agarrou-a pela cintura, e ela debateu-se tentando escapar.
—Quero-te, Betty!... Não podes estragar-me a noite por causa de um maldito gato!
— Solta-me, Chandler!... Solta-me.
O juiz beijava-lhe enlouquecido o pescoço, o rosto... Mas Betty deu-lhe um forte empurrão, e atirou-o para longe de si. Chandler tropeçou numa cadeira, e caiu no chão. A jovem chorou assustada.
—Não quis fazer-te isto... Perdoa-me, juiz...
Ele levantou-se ébrio de ira, e esbofeteou-a duas vezes no belo rosto. Betty deu um grito, e retrocedeu até que as suas costas nuas chocaram com a parede.
— Não me batas!... Não é culpa minha!... Foi o gato preto!...
—Para o inferno tu e ele! —gritou Chandler, enchendo um copo de whisky.
Bebeu metade, e o resto lançou-o na cara da rapariga, exclamando:
— Devia expulsar-te da cidade!...
— Ir-me-ei embora! —disse ela chorosa, enquanto o whisky lhe corria pela cara e manchava o seu vestido.
Chandler lançou outra maldição, e saiu do reservado. Estava de mau humor, quando chegou à rua e encaminhou-se para casa. Abriu a porta, e dirigiu-se diretamente para o seu quarto de dormir. Abriu a janela, e como a noite era de lua cheia não acendeu o candeeiro.
Começou a despir-se. Tinha tirado a jaqueta e o colete, quando notou uma sensação muito estranha. Não soube exatamente o que era, e perguntou a si próprio, em voz alta:
— Vou-me deixar sugestionar por uma estúpida mulher? Sentou-se na cama e tirou uma bota.
De repente, julgou ouvir um ruído, e endireitou a cabeça deitando um olhar pelo quarto. Não viu nada de anormal até que os seus olhos chegaram ao canto à sua esquerda. Estava escuro, muito escuro, mas nessa escuridão havia dois pontos brilhantes. Sacou do «Colt» que tinha deixado em cima da cama, e então daquele canto partiu uma ordem:
— Não o faça, Chandler... O juiz deteve o movimento da sua mão.
— Levante-se! — comunicaram-lhe.
Levantou-se lentamente, sentindo bailar o whisky em sua garganta.
— Que... quem é você? — inquiriu.
— Que importa isso?
—Não tenho muito dinheiro aqui.
—Não. Ê estranho. As suas sentenças devem ter produzido muito.
—Os juízes cobram pouco. Todo o mundo sabe que o Estado não é muito generoso...
—Mas se um se põe à venda, as sentenças são muito caras, não é verdade, juiz?
—Talvez o façam outros, mas eu sempre tive uma conduta honrada...
— As suas vítimas não pensam o mesmo.
Chandler notou que as pernas lhe tremiam.
—As minhas vítimas? —disse, e intentou sorrir. —Ê verdade que enviei muitos homens para a forca e para o cárcere, mas esse é o castigo lógico para os que se afastam da lei. Eu não sou quem a fez, mas sim o que a há-de aplicar...
—Esse é o mal. Aplicar segundo as suas conveniências.
— Não é verdade! Demonstre-me que fiz como você diz!... Quem é você... Nem sequer se atreve a mostrar o rosto!...
Não era a coragem que impelia Chandler a falar assim, mas um crescente medo que fazia tremer os seus pés, e que pouco a pouco subia-lhe pelo corpo acima. A voz da escuridão replicou:
—Posso apresentar-lhe uma testemunha da sua desonestidade, Chandler...
—Desafio-o a que o faça!
Passo a passo, do canto da sala emergiu a figura dum homem. Os raios lunares alumiaram-lhe primeiro as pernas, depois a cintura, depois o peito... Subitamente, o juiz lançou um grito de horror, exclamando:
— Não!... É impossível!...
O seu visitante deteve-se.
— Recorda-se de mim, Chandler? — perguntou. Os olhos do magistrado pareceram sair-lhe das órbitas.
— Não pode ser!... Você foi enforcado!... Eu vi!...
—Mas voltei, juiz. Toque-me. Sou de carne e osso...
Chandler retrocedeu cheio de medo:
—É impossível!... Estou bêbado!... É isso!...
—Não, juiz. Está completamente sóbrio, contemplando um dos homens que condenou, sabendo pela certa que era inocente...
O juiz emitiu um ronco.
—Vou dar-lhe uma oportunidade de defender-se, Chandler... Empunhe o revólver que tem em cima da cama!...
—Não! —Obedeça ou terei que matá-lo como um cão!
O terror em Chandler chegou ao paroxismo. Os seus dedos estavam moles.
—Não o faça! —exclamou. —Eu não o condenei!... Foi um júri!
—Um júri que você aliciou. Dou-lhe cinco segundos para que se defenda!... Passou um!... Aproveite o seu tempo!... Dois!...
O juiz aproximou-se da cama, e não lhe foi difícil agarrar na arma. Manteve-se agachado, e voltou-se rapidamente apertando o gatilho. Produziram-se dois estampidos, mas só um projétil chegou ao seu destino.
Chandler sentiu que uma agulha o queimava vivo enterrando-se no seu peito, e, enquanto caía, murmurou baixinho:
—O gato... preto...
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