terça-feira, 29 de outubro de 2019

ARZ140.14 Um cavalo com uma conduta estranha e salvadora

Larsen parou um momento no meio da rua principal, a olhar com saudade os edifícios da pequena cidade. Jamais teria podido imaginar que um lugarejo tão insignificante como aquele penetrasse tão fundo no seu coração.
Estava numa aldeola perdida nas imediações da fronteira, num sítio ao qual quase não levava nenhum caminho, num recanto situado em parte alguma. E, no entanto, pelo simples facto de Ingrid viver ali, a povoação de Deming adquiria um significado diferente. Era um lugar doce, um sítio bom para viver e morrer.
Mas Larsen não viveria nem morreria ali. Larsen tinha de fugir, teria de fugir sempre, eternamente, enquanto ó xerife Rocket continuasse a persegui-lo com aquele ódio fanático. Estava a cavalo e mal levava provisões que lhe permitissem chegar ao México. Uma vez lá, pensaria no que devia fazer.
A ferida doía-lhe intensamente, mas não tinha febre. Aquela dor devia ser a inevitável consequência dos últimos esforços despendidos. Mais valia não pensar nela.
Mas enquanto Larsen estava mergulhado nestas reflexões, despedindo-se da cidade, alguém decidira que ficasse ali.


Que ficasse ali para sempre. Atrás da janela de um quarto do hotel, dois homens empunhavam as suas carabinas e dispunham-se a acertar naquele alvo fácil, situado apenas a trinta jardas de distância. Esses dois homens eram Percy e Len, os dois jogadores profissionais a quem Larsen, sem dar por isso, destruíra todos os planos. Percy disse baixinho:
— Tem de trazer todo o dinheiro com ele e grande parte desse dinheiro é falso. Já sabes o que pode acontecer se começa a querer gastá-lo e alguém dá por isso. Sim, intervirão os federais. Falsificar moeda não é o mesmo que fazer batota ao jogo. Poderíamos apanhar muitos anos de cadeia ou, pelo menos, não estaríamos sossegados em parte alguma dos Estados Unidos.
— Se o eliminarmos agora tudo será fácil. Levaremos o dinheiro e sairemos daqui a galope. Além disso — acrescentou Percy — tenho uma conta pendente com ele.
— Pois não se portou muito mal contigo, no fim de contas. Eu vi o que se passou. Se não interviesse, aqueles tipos enforcavam-te.
— De acordo. Mas foi o primeiro tipo que me meteu a ridículo em toda a minha vida — resmungou Percy — e isso não lho perdoo.
Ambos estavam às escuras no quarto e se sentiam seguros, o seu inimigo não poderia fazer nada contra eles. Só faltava decidir em que momento o mandariam para o outro lado da Grande Fronteira.
— Agora está demasiado perto do alpendre e, se não o matássemos ao primeiro tiro, talvez conseguisse saltar para lá e pôr-se a coberto. É melhor esperar que esteja umas jardas mais abaixo, completamente desabrigado.
Len observou a rua.
— Mas como sabes que irá para baixo? E se se lembra de partir em direção contrária, isto é, subindo a rua?
— Vai para o México, disso não tenho dúvida. Portanto, necessita de descer a rua, pois doutro modo iria ter às montanhas.
Percy tinha razão, toda a razão do mundo. Larsen ia para o México, e precisamente naquele momento fez girar o cavalo de todo, para descer, a rua. Inexplicavelmente, porém, o animal opôs mais resistência do que ele esperava. Andou duas jardas. Percy e Len tinham-no perfeitamente centrado nos seus pontos de mira. Ambos exclamaram ao mesmo tempo:
— Agora!
Mas naquele momento, quando Larsen tocava suavemente o cavalo com os calcanhares, para que este tomasse maior velocidade, sucedeu uma coisa inexplicável: o cavalo revolveu-se, furioso, pois queria ir precisamente em direção contrária à que lhe ordenava o cavaleiro. O seu movimento foi tão brusco e tão inesperado que até esteve quase a derrubar Larsen.
Naquela altura crepitaram as duas carabinas, com um diferença de apenas meio segundo. O corpo de Larsen saíra bruscamente dos pontos de mira, sem que ele próprio desse por isso.
Uma bala passou-lhe tão perto dos olhos que até sentiu nestes uma queimadura. A outra assobiou bastante por cima da sua cabeça.
Larsen caiu no solo e revolveu-se em terra, enquanto tirava o revólver que trazia metido entre a camisa e as calças, o que arrebatara a um dos pistoleiros enviados contra ele em casa de Ingrid. Não chegara a ver as línguas de fogo, mas pôde distinguir o fumo branco da pólvora, a pairar na escuridão de uma das janelas do hotel.
Deu um salto para o alpendre, enquanto as carabinas crepitavam de novo e duas balas se cravavam no solo, justamente no lugar onde estivera momentos ante. Deu uma cambalhota nas tábuas do alpendre e entrou nu vestíbulo do hotel, onde só uma luz fraca dissipava um pouco as trevas.
Mas não subiu ao primeiro andar, pela escada, porque calculou que os seus inimigos disparariam contra ele através dos intervalos da balaustrada, quando não os pudesse ver. Além disso, o mais provável era que fugissem pela janela. Convinha-lhe esperar.
De facto, foi o que sucedeu. Percy resmungou, do seu esconderijo:
— Falhámos o tiro! Esse maldito cavalo...
— Pois o tipo entrou no hotel e subirá para nos procurar. Temos de saltar. pela janela e de fugir enquanto ele sobe!
— Vamos!
A janela dava para o telhado do alpendre e puderam saltar sem nenhuma dificuldade. Do alpendre ao chão a altura não era excessiva. Primeiro saltou Percy e depois Len. Tinham abandonado as carabinas, para empunhar os revólveres, mais úteis a curta distância. Quando acabavam de pôr os pés em terra, uma voz gritou:
— Quietos!
Ambos giraram ao mesmo tempo e apontaram para a porta do hotel, onde acabava de soar a voz. Dispararam sem aviso 'prévio e a matar contra o homem que não trazia chapéu e que estava agachado junto da porta.
Percy e Len tiveram a certeza de lhe acertar em cheio. Um grito de triunfo saiu-lhes da garganta, grito que se converteu em estertor de agonia quando duas balas lhes traspassaram o coração.
Larsen retirou de junto da porta a cadeira com uma sobrecasaca posta no espaldar, que antes encontrara junto do balcão da receção e que se aproximara da saída, prevendo o que ia acontecer. A sobrecasaca tinha dois belos orifícios no centro.
— Não sei de quem é, mas terei de lhe pagar uma nova — murmurou para consigo mesmo.
Contudo, este pensamento mal chegou a formular-se. O que o preocupava deveras era a estranha, a quase incompreensível conduta do cavalo. Não o castigara em nenhum momento nem justificara a irritabilidade do animal. Por que motivo então...
Saiu para o alpendre. Algumas luzes começavam a acender-se aqui e ali e uma delas permitiu-lhe reconhecer perfeitamente os dois cadáveres. Um era de Percy, o jogador batoteiro; o outro devia ser do cúmplice dele. Mas outra vez teve a sensação de que não era aquilo o que lhe importava, mas sim outra coisa.
O cavalo. Porque se comportara assim? Porque queria ir sempre na mesma direção? Larsen não formulara mais cedo estas perguntas devido ao aspeto tempestuoso dos acontecimentos que se tinham abatido sobre Si, mas agora descobria que algo muito importante, terrivelmente Importante, dependia da resposta.
E, de súbito, compreendeu. O cavalo queria ir sempre para a cavalariça da casa de Ingrid e Roland. Instintivamente, levara-o até lá quando ele perdera os sentidos no seu lombo. Porquê? Simplesmente porque o cavalo pertencia àquela cavalariça e porque a querença o levava até lá. E se ele tirara o cavalo a um dos bandidos contratados pelo xerife, «era porque aqueles bandidos tinham alguma coisa a ver com a casa onde vivia Roland». Porque, sem dúvida, eram os mesmos que haviam assaltado a diligência. A brusca descoberta produziu-lhe tal choque que por um momento foi incapaz de pensar, de respirar sequer.
De modo que o assalto à diligência podia perfeitamente ter sido preparado pelo próprio Roland... De modo que o marido de Ingrid...
Sem pensar mais, ia a montar a cavalo para decifrar o mistério naquela mesma noite, para verter o seu sangue se fosse preciso, mas antes de alcançar o animal uma voz fria e metálica soou no meio da rua:
— Quieto, Larsen. Quieto ou mato-te aqui mesmo.

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