quarta-feira, 23 de outubro de 2019

ARZ140.08 O coiote que uivava com precisão de relógio

Deviam ser três horas da madrugada e a noite estava muito escura quando aquele coiote se pôs a uivar nas montanhas.
Roland, que estava no leito contíguo ao da esposa, no grande quarto com duas camas, levantou a cabeça ao ouvir aquele prolongado e agoirento uivo. Este repetiu-se. Pelos vistos, o coiote procurava a fêmea.
Em silêncio, levantou-se, procurando não acordar a esposa, embora soubesse que não eram necessárias muitas precauções, porque lhe pusera umas gotas de narcótico no copo de vinho do Porto que em geral tomavam ambos depois do jantar.
Vestiu-se com rapidez, para sair de casa, e calçou botas de montar, mas sem esporas. Depois, afivelou um cinturão-cartucheira com um revólver e saiu pela janela, silenciosamente. Os criados dormiam nas traseiras da casa, de modo que nenhum deles, logicamente, deveria dar pela sua saída.
Aproximou-se da cavalariça, mas no último momento pareceu pensar melhor e caminhou velozmente, procurando pisar a erva fresca, até se afastar do rancho umas quinhentas jardas. Então, abandonou todas as precauções e estugou o passo, embora fizesse barulho ao pisar as pedras.
Não foi em direção a Deming, a pequena povoação vizinha, mas sim em direção às montanhas que ficavam a leste, onde o coiote continuava a uivar regularmente, com uma exasperante monotonia, de três em três minutos. Por fim, entre uns penhascos, encontrou o tipo que imitava tão bem o uivo do animal.


Era um indivíduo baixote, meio corcunda, mas cujos músculos se adivinhavam fortes e duros debaixo da camisa vaqueira. Ao ver aparecer a sombra de Roland, virou a carabina para ele.
— Alto!
— Sou eu, imbecil!
O tipo, que já ia a lançar outro uivo, limitou-se a emitir um resmungo.
— Esperava que viesse pelo outro lado. Por minha vontade, teria vindo a voar e dar-te-ia uma machadada, imbecil. Uivaste justamente de três em três minutos.
— E depois?
— Quando ouviste um coite que se pusesse a uivar com o relógio na mão?
O tipo resmungou.
— Bom, não seria caso para tanto... Pelo menos reconhecerá que uivei como uma autêntica fera.
— Como um autêntico animal, que não é exatamente o mesmo. Por sorte, não te deve ter ouvido mais ninguém, a não ser eu. Onde estão os outros?
— Siga-me.
O tipo precedeu Roland por entre uns penhascos, até chegarem a uma espécie de pequena praça circular, completamente rodeada de altas rochas. Como não havia medo de que ali a claridade se filtrasse para o exterior, os indivíduos que aguardavam tinham acendido uma pequena fogueira.
Aqueles indivíduos teriam feito as delícias de um xerife desejoso de adquirir fama. Eram quatro e os seus rostos correspondiam exatamente aos dos homens que haviam assaltado a diligência no dia anterior. Até num excesso de confiança que raiava já a temeridade, usavam as mesmas roupas. Um deles olhou o recém-chegado.
— Olá, Roland.
— Olá, Monty.
— Ninguém te viu vir?
— Não.
— Nem a tua mulher?
— Pus-lhe umas gotas de narcótico, num copo de vinho, para que não desse por nada. Dormirá tranquilamente até meio da manhã e nessa altura já eu estarei junto dela. Os criados também não deram por nada. Não se preocupem, porque eu sei fazer bem as coisas.
— Um descuido poderia deitar tudo a perder.
— Não é fácil que eu o cometa. O chamado Monty indicou uma caixa na qual se encontrava sentado e que quase se não via devido à pouca luz projetada pelas chamas. Era, nem mais nem menos, do que o baú roubado na diligência. Está aqui tudo o que tirámos, Roland.
— E o que roubaram aos passageiros? Dividimo-lo entre nós. Era o que estava combinado.
-- Têm de me devolver as minhas coisas.
— Claro. Toma. Estendeu-lhe uma pequena bolsa, na qual Roland encontrou a sua aliança de casamento, o relógio e o dinheiro que lhe tinham tirado, tal como aos outros passageiros.
— Tudo saiu perfeito — disse por fim. --- Ninguém suspeita.
— Pois tu — resmungou Monty — não pareces muito alegre...
— Surgiu um imprevisto, uma coisa com que não contava. Todos os bandidos estenderam a cabeça, como um só homem.
— Um imprevisto?...
— Não tenham medo, no que se refere a vocês.
— Que se passa?
— Julgava que o banco suportaria a perda, visto se tratar de um roubo comprovado, mas não é assim. Apareceu-me em casa um inspetor que é uma autêntica besta. Disse-me que sou responsável pelo dinheiro, «aconteça o que acontecer», e que devo restituir os duzentos mil dólares.
— E tu não sabias isso? Não tens um contrato com o banco?
— Não sabia que o caso pudesse ser interpretado assim. É verdade que posso discutir, mas receio que os juízes acabem por dar razão à companhia.
Monty, que trazia barba de vários dias, tirou uma garrafa de uísque, bebeu um golo e depois passou as costas da mão pela boca.
Terminou a «delicada» operação cuspindo ruidosamente para o meio da fogueira.
— Pois fizeste um mau negócio, amigo -- observou por fim.
— É o que penso desde que o maldito inspetor apareceu em minha casa.
— Combinámos que dividiríamos entre todos o valor de cem mil dólares e que os outros cem mil seriam para ti — disse Monty. — Se recebes cem e tens de pagar duzentos, fizeste um mau negócio. E como o outro se calasse, acrescentou: — Não tentarás nenhuma partida, hem? O combinado é o combinado. Se tens dificuldades com o banco, o caso é teu e só teu.
— Não discuto isso — resmungou Roland.
— O que deves fazer — aconselhou Monty, ao cabo de uns instantes — é fugir para o outro lado da fronteira. Do que deixares aqui não tocarão em nada. Até mesmo a casa figura em nome da tua mulher, de modo que a Justiça não lhe poderá pôr as garras em cima.
— Há um inconveniente.
— Qual?
— Glenda não pode fugir ainda comigo. Tem um contrato por dois meses em Albuquerque e -deve cumpri-lo. Não me interessa fugir para o México e deixá-la sozinha.
Monty voltou a cuspir para a fogueira e depois soltou uma gargalhada rouca.
— Que um homem com uma mulher como a tua se meta em sarilhos, é coisa que não compreendo, Roland. Reconheço que Glenda é a bailarina mais bela que jamais passou pelo Novo México, mas apostava contigo que, se Ingrid subisse ao palco, a deixava a perder de vista.
— A época de Ingrid já passou. Queres dizer que te cansaste dela, não?
— Estamos casados há, dois anos. — Demónio, não creio que nenhum de nós se cansasse em tão pouco tempo... Mas isso é contigo, Roland. E porque não podes fugir para o México e esperar que Glenda se reúna contigo lá?
— A perspetiva não me agrada.
— Sabes que a rondam muitos tipos e tens medo de que, apesar dos cem mil dólares, se decida por outro, não é verdade?
Monty adivinhou que acertara no alvo, pela expressão carrancuda de Roland, e soltou uma nova gargalhada.
— Como quiseres, amigo. Que vais fazer, então?
— Não sei. Preciso de pensar...
— E se mandasses o inspetor para o inferno?
— Seria pior. O Banco tem elementos suficientes para não me deixar descansar nem no fim do mundo. Creio que o melhor é mostrar-me como um prejudicado mais e proclamar a minha inocência. Suponho que uma conversa com os diretores da companhia remediaria muitas coisas. Pensando bem, poderia sair de viagem amanhã mesmo.
— Primeiro devemos proceder à divisão. Já não há motivo para esperar mais.
— Creio que há — disse Roland, suavemente, .com mesma tranquilidade com que falaria perante um conselho de administração. — Vistas as circunstâncias, e como sem dúvida o Banco me submeterá a alguma vigilância, não posso esconder em nenhum sítio essa montanha de pesos mexicanos. Devem esperar que regresse.
— Insisto em que se divida o nosso quinhão.
-- De acordo — decidiu Roland, ao cabo de uns instantes de reflexão — mas não poderão dispersar-se ainda. Dentro de três noites voltaremos a reunir-nos aqui e levarei a minha parte.
— Tens muita confiança em nós — riu Monty, novamente.
Roland olhou-o nos olhos.
— Sei que não és tolo, e que deves compreender que não te interessa atraiçoar-me. Depois de estar uma temporada no México, arranjarei outro lugar de confiança como o que ocupo agora. Então repetiremos a jogada e obteremos outra fortuna, sem perigo algum. Se agora me atraiçoassem, teriam um punhado de dólares mais, mas a sombra da forca pesaria sobre as cabeças de todos. Eu sei quem vocês são, onde se reúnem e a quem estão ligados. Passados dois dias não existiria em toda a América do Norte, incluindo o México, um lugar bastante seguro para vocês.
— Também te poderíamos matar agora —. disse Monty, com estudada lentidão.
Desta vez foi Roland quem emitiu uma gargalhadinha.
— Não sou tão tolo como julgas. O juiz do condado tem uma carta lacrada, que deve abrir se me acontecer alguma coisa.
— Não, não és tolo... — murmurou Monty. — Claro que eu estava a brincar.
— Estamos de acordo?
— Claro que sim, Roland.
— Podemos dividir.
Monty levantou-se, pôs o baú perto da fogueira e, com a ajuda dos companheiros, foi fazendo montinhos de dez moedas cada um. O câmbio que fizeram foi simples; cada peso mexicano foi avaliado num dólar. Havia quatro mil moedas de cinquenta pesos mexicanos, o que equivalia a duzentos mil dólares, segundo esse cálculo. Duas mil moedas foram divididas entre os pistoleiros e as duas mil restantes ficaram no baú.
— Assunto arrumado, de momento — disse Roland, com uma perfeita seriedade comercial.
— Onde vais guardar isso?
— No nosso acampamento.
— Ainda não saímos daqui nem sairemos até tu voltares.
— Aparece alguém por estas bandas?
— Ninguém. É o sítio mais seguro que se possa imaginar.
Estavam a falar nisto quando se ouviu um silvo lúgubre a muito pouca distância dali. Um silvo tão intenso e rápido que todos sentiram os cabelos eriçar-se-lhes.
O tipo que estivera a imitar o uivo do coiote apareceu de repente. A sua expressão era tão jubilosa como a de um garoto a quem dão um brinquedo pelo qual suspirou durante anos.
Mas os outros não repararam na sua expressão e sim no que trazia preso com uma espécie de forquilha de madeira. As chamas da fogueira puderam distingui-lo bem. Era um réptil de aproximadamente um metro e meio de comprido, escuro e escamoso, com todo o corpo vibrante, e cuja cabeça reluzente soltava silvos de raiva. Roland gaguejou:
— Mas... que é isso?
— Já a tenho! Já a tenho!
— Mas que é que tens, imbecil?
O dos uivos aproximou-se ainda mais, sem fazer muito caso das violentas contorções da serpente, que ameaçava libertar-se de um momento para o outro. Todos se puseram em pé ao mesmo tempo, como se fossem impelidos por uma mola, e empunharam os revólveres, num só e uniforme movimento.
— Se dás um passo mais disparamos, Larry!
— Tira esse bicho asqueroso daqui!
— Se me toca, juro-te que te abro a cabeça!
Larry parou e fitou-os atónito, como se não compreendesse.
— Mas... que se passa?
— Que se passa? Para trás!
— É uma autêntica serpente do deserto, dificílima de capturar! Um exemplar único!
— Deita-a ao fogo, maldito! Monty teve uma ideia melhor.
— Deixa-a cair devagar no chão, para que lhe estoire a cabeça, patife!
Larry fez um gesto onde se misturavam confusamente o desespero e a angústia.
— Não! Não se atrevam! Vocês sabem que gosto de animais, que gostaria de ter um parque só para mim. Não julguem que há muitos homens com coragem de apanhar vivo um exemplar desta espécie. Se dispararem, atirá-la-ei para cima de vocês enquanto ainda estiver viva!
Os bandidos estremeceram. Umas gotinhas de suor frio tinham aparecido na testa de todos eles.
— Não convém disparar — interveio Roland. — Tudo é preferível a chamar a atenção sobre o nosso acampamento. — Olhou a serpente. — Vamos fazer um acordo contigo, Larry.
Os olhinhos do homem brilharam.
— Um acordo?...
— Não mataremos a serpente, mas leva-a para bem longe daqui. Talvez mais tarde voltes a ter oportunidade de a apanhar.
— Não me fio em vocês.
— Que imaginas, imbecil? Que ta vamos roubar?
Os olhinhos desconfiados de Larry brilharam sua-mente.
— Vocês não compreendem o mérito que isto tem. De resto, não sei de que têm medo. As serpentes também possuem inteligência e não atacam se não as provocam. Vejam...
Aproximou-se um pouco mais. Roland resmungou, enquanto sentia que as gotas de suor gelado lhe chegavam à boca:
— Leva-a! Leva-a de uma vez, maldito!
Larry encolheu os ombros, mas estava satisfeito, no fim de contas, por terem respeitado a vida da sua «prisioneira». Durante uns instantes, todos continuaram a ouvir o som tentacular e viscoso dos anéis. Depois respiraram profundamente, mas as suas feições pareciam refletir a morte.
— Larry é pior do que uma besta — resmungou surdamente Roland. — Só os animais são seus amigos. preciso ver onde se esconde esse bicho e matá-lo...
— Decerto. Sossega, Roland; resolveremos isso.
Como se sentia nervoso, Roland decidiu dar por terminada a entrevista. Suspirou com cansaço e afastou-se dali. Ainda tinha de regressar a casa sem que os criados dessem por isso e de se meter na cama para que a sua querida esposa o encontrasse ali na manhã seguinte. Mas a sua cabeça era um vulcão. Pensava no modo de se livrar dos que o tinham ajudado e de embolsar sozinho os duzentos mil dólares... Naquela noite o coiote não voltou a uivar.

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