sexta-feira, 4 de outubro de 2019

KNS004.10 O traidor desmascarado

— Ainda me parece um milagre, Medina. Não sei como te agradecer.
— Tive muito prazer em o ajudar, patrão. O senhor é a nossa única esperança. Falavam num tom desanimado.
— Aconteceu alguma coisa?
— Houve, sim! Fomos traídos.
— A manada?
— Todos, todos nós fomos traídos. O traidor era Donovan.
Shelby crispou as mãos nas rédeas do cavalo.
— Que dizes?
— Pode crê-lo. O capataz estava combinado com os nossos inimigos. Quando o patrão saiu, dando-nos ordem de ficar ali, ele saiu também... para voltar pouco depois com vários tipos armados, entre os quais os californianos, que tinham vindo com Carol. Apanharam-nos de surpresa. Brady, Vernon e Mart quiseram resistir e...
O rosto de Shelby deixava transparecer a sua fúria.
— Onde está Carol?
— Levaram-na juntamente com o gado. Eu consegui escapar porque estava noutra ponta e me apercebi do que acontecia. Queria avisá-lo. Talvez devesse ter ajudado os outros, mas pensei... — passou a mão pelo rosto. — Bom, queria que acreditasse que não foi o medo que me obrigou a fugir.
— Sei-o muito bem. Acabas de te portar como um valente. Para onde os levaram?
— Para o Este. A manada inteira, incluindo as reses doentes.


Shelby largou as rédeas.
— Vamos lá.
— É uma loucura. Seria melhor...
— Eu vou, Medina.
— E eu também, com mil raios, mas!...
Retomaram a marcha, mais lentamente agora. Shelby, com os olhos fixos, nas sombras da noite, que se aproximavam parecia uma estátua de pedra a cavalo. Medina começou a falar para interromper aquela monotonia:
— Quando cheguei a Abilene, vi-o prisioneiro do xerife e percebi o que estava para lhe acontecer. Comprei armas e cartuchos explosivos para o tirar do cárcere e aguardava a noite, para o tentar, mas os linchadores tornaram a coisa difícil...
Não falaram mais. Era noite sem lua e seguir um rasto naquelas condições, era extremamente difícil. Apesar disso era necessário fazê-lo. Por sorte, Walcott e os seus homens, tinham confiado em demasia e não se preocupavam com o transporte da manada. Cedo escutaram os mugidos do gado e por eles se guiaram na escuridão, o mais silenciosamente possível.
Ao chegarem ao cimo de um monte avistaram o brilho de duas fogueiras, perto da massa negra da manada. Desmontaram e tirando as esporas, rastejaram, mantendo entre os dentes, os afiados punhais «bowie», armas perigosíssimas em mãos hábeis. Chegaram perto da primeira fogueira e viram dois homens que cuidavam das reses, aproximando-as, uma por uma, da fogueira. Shelby e Medina, aproximaram-se. Reconheceram Donovan e o «Saca-rolhas» que tinham salvo, junto com o «Elegante» e Leona, de um falso ataque, organizado por eles próprios. Donovan dizia-lhe:
— Mais rápido, mais rápido. Temos de lhe dar o antídoto, antes do amanhecer, Carnavon. O chefe assim o exige.
— O chefe que vá para o Diabo! Ainda quer mais? — protestou o charlatão. — Graças à minha epidemia provocada, está a tornar-se dono de todas as reses «enfermas» que compra, pagando-as a preços irrisórios.
— Bem, Carnavon. O teu ofício é fabricar epidemias e o meu, curá-las. Não o de pensar. Deixa isso para os outros.
— Está bem. Pagam-me para isso, o que quer dizer que sei do meu ofício.
— Só te digo, que antes do amanhecer, temos de ter aplicado o antídoto, a todo o gado doente.
— Está bem.
Calaram-se. À luz das chamas, o «Saca-rolhas» fazia leves incisões nas orelhas dos bovinos, que eram a seguir separados. Tudo metódico e rápido. Era uma organização perfeita, sem uma única falha.
Agora percebia todas as doenças das manadas que vinham para Abilene, as quais compradas para coiros, a baixíssimo preço, eram curadas e revendidas. Um plano, em que a forca era o digno prémio do seu autor. E Shelby conhecia já dois deles: Walcott e Sanford. Tocou com o cotovelo em Medina e este aproximou-se. Disse-lhe ao ouvido, qualquer coisa. Recuaram, rastejando. Depois na escuridão, mexeram-se mais depressa. Como felinos, aproximaram--se da manada e aguardaram a chegada dos dois cavaleiros, que procediam à operação.
Encostados às vacas, esperaram. Depois, saltaram cada um sobre um dos cavaleiros. A mão na boca e o antebraço na garganta, estrangulando-os. Com os chapéus das suas vítimas, ocuparam os seus postos sobre os cavalos, e conduziram as reses à fogueira. Donovan bradou:
— Vamos homem, cada vez fazem isso pior! Que se passa contigo! — berrou para King. — Tu não és!...
Shelby saltou-lhe em cima e Medina encarregou-se do «Saca-rolhas». Travaram em silêncio, luta feroz e cruel. Medina acabou depressa com Carnavon, a quem amarrou e amordaçou, deixando-o no solo, como um fardo.
Shelby teve de suar mais. Donovan reconhecera-o e procurava desesperadamente, dar alarme, mas a mão do rapaz apertando a garganta do traidor, impedia-o de gritar. Donovan, já congestionado, puxou de um punhal e tentou espetar o seu patrão, mas Shelby conseguiu evitá-lo, embora tivesse sido ferido. Começou a deitar sangue, mas conseguiu agarrar na mão do capataz e virá-la contra o seu próprio corpo. Após breve luta enterrou o punhal até ao fundo, no peito do infame Donovan.
Respirando com dificuldade, o rapaz levantou-se. Medina vendo o sangue, quis prestar-lhe os primeiros auxílios, mas foi repelido.
— Deixa, isto não é nada. Um corte superficial.
— Eu ato-lhe um pano, para estancar a hemorragia. Aproximaram-se da outra fogueira.
— Está bem, patrão? — perguntou Medina. — Ótimo. Não te preocupes. E os outros rapazes?
— Não sei o que foi feito deles. Como fugi...
— Tê-los-ão?...
Não acabou a frase e Medina cerrou os dentes, ante o pensamento. Da outra fogueira chegavam até eles, risos. Quando chegaram, o que viram era tão horrível, que tiveram de fazer esforços tremendos para se conterem.
Carol despenteada e com a blusa rasgada, debatia-se num círculo de «pistoleiros», cujos olhos destilavam ignomínias. Riam, excitados com o divertimento. E Leona incitava-os. Encostada a uma árvore, a demoníaca loura, repetia:
— Não tenham pena dela: Shelby, merece-o.
Medina, ao lado de King, olhava para este, procurando adivinhar o que faria o seu chefe. Eram cinco «pistoleiros» e Leona. Com certeza, havia mais, vigiando o gado. Muita gente. Mas Carol era uma criança, que se debatia entre as feras.
King nem procurou a ajuda de Medina. Começou a fazer fogo. A festa terminou bruscamente. Carol teve a serenidade suficiente para se atirar ao chão. Os seus carrascos puxaram pelos «Colts».
Nos minutos seguintes, a quietude da noite foi quebrada por um tiroteio infernal.
Shelby, saltando de um lado para outro, como que enlouquecido, disparava com fatídica pontaria. Os seus «Colts» cuspiam chumbo com científica precisão, cravando as balas nos alvos previamente escolhidos.
Medina disparava também. Um dos bandidos contorcia-se, com o ventre cheio de chumbo, urrando como um animal. Outro esvaía-se em sangue, com o pescoço atravessado por uma bala. Um terceiro jazia no chão. Os outros dois fugiram.
Leona, entrincheirada atrás de uma árvore, disparava um revólver calibre 39, rogando pragas. Já não era uma mulher. Tinha-se tornado uma fera.
Medina perseguia um dos fugitivos. O quarto pistoleiro, recebeu uma bala na testa e caiu morto. Mas Leona continuava a disparar. E ao acreditar que o corpo do seu odiado inimigo, permanecia incólume, como que protegido por magia, apontou o seu revólver para o indefeso corpo de Carol, deitado perto da fogueira.
Shelby pressentiu-o, antes que a bala atingisse as costas de Carol e atirou-se loucamente para a frente, à procura de Leona. Chegou perto dela. A mulher aterrada, gritava:
— Não, Shelby, não faças isso! Não me mates!... Perdão! Eu continuo a amar-te!...
Cego pela dor, Shelby atirou-a ao chão. Leona chorava, espavorida. Shelby apontou-lhe friamente o «Colt» e levantou o cão.
Começou a premir o indicador. Mas não acabou. Não podia matar assim. Deixou cair o braço e voltou-se para o local, onde Carol estava imóvel com as costas cheias de sangue. Inclinou-se para ela e tomou-lhe o pulso. Sentia-o. ainda que levemente. Ela abriu os olhos.
— Shelby! — murmurou.
O rapaz afagou-lhe ternamente o rosto e beijou-a apaixonadamente. Medina, um pouco afastado, presenciava a cena. A ferida da rapariga era perigosa.
— Vamos, anima-te, Carol! Isso é um arranhão. Daqui a quatro dias, estás boa.
Ela sorriu fracamente.
— Não me dói, juro-te que não me dói, Shelby. Não te preocupes.
— Tens de sofrer um bocadinho mais, querida. Temos de te levar para Abilene, para o médico te extrair a bala. Talvez o movimento te faça doer, mas...
— Cuidado, patrão! — avisou Medina, disparando.
Shelby voltou-se rapidamente e fez fogo, para o lugar donde tinha partido a bala, que tinha acertado uns centímetros próximo deles. A bala atingiu no peito, mortalmente, Leona, pois tinha sido ela que tinha feito fogo. Aquela que tinha sido uma formosa mulher, caía lentamente, enquanto a sua blusa de seda, se tingia de sangue, que brotava de um buraco perto do coração.
— Vamos, querida — disse Shelby.
Mas não chegou a levantar a rapariga do chão. Os vaqueiros que tinham estado longe do acampamento, regressavam dispostos a matá-los, avisados pelo que tinha escapado. Eram quatro.
Depois de tantos perigos, pouca importância tinha tão escasso número de adversários. Em princípio, aproveitando a surpresa do seu ataque tiveram vantagem, mas a defesa organizou-se rapidamente.
Medina acertou num, mas caiu atingido num ombro. Shelby atirou-se ao chão. Dois tiros quase o atingiram. Um, fez-lhe um rasgão na jaqueta de coiro; outro, acertou-lhe num tacão. Respondeu imediatamente e acertou em dois. O terceiro optou pela fuga.
Voltou para perto de Carol, cercada de corpos ensanguentados. A rapariga continuava a sentir-se bem.
—Vai-te, Shelby! Eles voltarão e não te perdoam!
O rapaz não fez caso. Improvisando ligaduras, com a sua própria camisa, procurou estancar a hemorragia a Carol. Medina tinha feito o curativo, a si mesmo, dizendo:
— Não se preocupe comigo, patrão. Isto não vale nada!
— Espero que assim seja. Traz-me os cavalos.
Pouco depois caminhavam a passo para Abilene. Carol, nos braços de King, que procurava evitar todos os balanços da montada. Quando chegaram a Abilene, a cidade dormia pacificamente alheia à luta que se desenrolara, nos seus arredores. Shelby conhecedor da povoação, por lá ter morado tanto tempo, dirigiu-se sem vacilar a casa do médico, a cuja porta bateu com insistência, até a abrirem. O «Mata-gente» não tardou a aparecer, resmungando:
—Oh! Diabo! Você outra vez! E agora traz dois! Não me diga que se voltou a arrepender de ter disparado?
— Cale o bico, doutor e atenda a esta menina. Não estou para graças.
Efetivamente, Carol tinha desmaiado e tinha as costas empapadas de sangue. O médico, depois de a ter estendido na mesa das operações, extraiu-lhe a bala e coseu-lhe a ferida, depois de a ter desinfetado. Quando terminou, King perguntou, ao ver a rapariga ainda sem sentidos:
— Salvar-se-á?
— Não sei. Perdeu muito sangue e a bala fez estragos demasiados. O seu organismo dirá a última palavra.
Shelby, cabisbaixo, não respondeu. Se Carol morresse, com ela acabava a sua razão de existir.
A seguir, o médico fez um rápido curativo a Medina, a quem no fim, deu uma palmada nas costas, ao mesmo tempo que dizia:
— Agora, fora daqui e vão morrer noutro sítio! Vamos a ver se me deixam dormir em paz!
Shelby agarrou-o pela gola do pijama e bradou:
— Oiça, isto não é uma farsa! Há uma mulher, cuja vida está em perigo, e...
Calmamente, o médico terminou:
— E você ama-a; isso é claro, como a luz do dia. Procurarei salvá-la. Mas largue-me, amigo... Não é rasgando-me o pijama, que ela se salva. Vão-se embora! Ela precisa de repouso.
— O senhor cuidará dela?
— Claro! O que é que julga que eu sou?...
— Pagar-lhe-ei bem.
— Depois, depois... — e empurrou-os para fora de casa. — Deixem-me descansar. Venham amanhã saber como está.
Fora, na rua, Shelby respirou profundamente. Estava esgotado. A sua ferida no braço doía-lhe e não se tinha preocupado em que o médico tratasse dela. Apoiou-se a um muro e acendeu um cigarro. Medina, esperava fiel e paciente.
— Ainda não terminámos, rapaz. E tu estás ferido. Vai dormir para qualquer hotel. Eu terminarei a tarefa.
— Começámos juntos, ou não? — respondeu o «cowboy».
Era valente e generoso. Shelby, deu-lhe uma palmada amigável nas costas.
— Falta-nos fazer uma visita. Só uma. Creio que encontraremos os dois no mesmo sítio.
À luz do cigarro, King observou o gesto interrogativo de Medina e explicou:
— Walcott e Sanford. Os chefes.
Atirou o cigarro ao chão e pisou-o. Era incómodo andar sem um tacão, dir-se-ia estar coxo. Amanhecia. O horizonte tingia-se de cinzento e as estrelas iam-se apagando. King, deteve-se em frente da vivenda de Walcott.
— Estarão em casa? — perguntou Medina. — Talvez tenham fugido. Vamos ver.
Aproximaram-se com todas as precauções. As armas empunhadas, prontas a fazer fogo. Rodearam-na sem descobrir sinal de vida. Depois, Shelby bateu à porta. Ninguém respondeu. Saltou por uma janela, para dentro.
Estavam à espera. As balas zumbiram, à procura do seu corpo. Eram três os que disparavam. Walcott, Sanford e o «pistoleiro» que tinha escapado. Três inimigos que aguardavam a sua chegada.
De fora, Medina começou a fazer fogo. E os três desmoralizaram, supondo ser maior o número de atacantes. Foi fácil vencê-los pouco a pouco. O «pistoleiro» foi o primeiro a cair. Depois Sanford, atingido por uma bala de Medina. Aterrado, Walcott fugiu pelas escadas acima.
Shelby, perseguiu-o com ódio. No piso superior, encurralou-o e implacável, acabou com a vida daquele miserável. Só então King, deu verdadeiramente conta do seu estado. Cambaleando, fazendo esforços homéricos para andar, chegou ao rés-do-chão, como um farrapo, depois daquelas horas terríveis de tensão contínua. Nunca mais poderia esquecer aquela noite.
Quando Medina o viu, amparou-o e unidos num abraço fraternal saíram para a rua.

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