domingo, 20 de outubro de 2019

ARZ140.05 Salvo pelo rival

O cavalo deteve-se diante da porta da casa. Era um cavalo alugado, nem muito novo nem muito bom, que ao chegar ao seu destino estava à beira do esgotamento.
Ingrid saiu ao ouvir o barulho dos cascos do animal. Encontrou-se diante de um homem novo, bem vestido, que tinha aspeto de banqueiro ou de empregado de alta categoria. Aquele homem era, nem mais nem menos, que Roland, seu marido.
Ingrid viu-o tão alterado que se aproximou impulsivamente dele.
— Que tens, Roland? Não devias ter regressado ontem à noite?
A mulher estava vestida normalmente, pois haviam passado já vinte e quatro horas desde que Larsen ali chegara ferido e ela viera ao alpendre apenas em camisa de dormir. Naquele momento, e apesar das roupas severas que a cobriam, a sua beleza era serena, perturbadora, inquietante. O homem beijou-a nos lábios, mas dando a sensação de que pensava noutro coisa.
— Não devias ter regressado ontem à noite? — repetiu Ingrid.
— Sim, mas aconteceu uma coisa terrível. Passei vinte e quatro horas a prestar declarações ao xerife, metido em diligências, em sarilhos...
— Que aconteceu?
— Roubaram-me todo o ouro que transportava do México. No total, o valor andava por duzentos mil dólares.


— Isso... Isso é impossível!
— Pois aconteceu. A diligência foi assaltada num lugar onde não parecia haver nenhum perigo, no sítio mais tranquilo da estrada, por assim dizer. Mataram três homens e levaram todos os valores.
— Como descobriram o baú do ouro?
— Deviam estar informados, penso eu. Algum empregado do Banco, na cidade de Durango, deve ter dado à língua. Sabes que durante anos transportei ouro de um lado para o outro da fronteira sem suceder nada. Os meus chefes eram de opinião que fazendo viagens normais, em diligência, não se chamava a atenção. E agora...
Ela empalideceu também. As suas pálpebras tremeram um instante.
— Que dirá a companhia, agora? Duzentos mil dólares são uma autêntica fortuna!
— Terão de perseguir os assaltantes e de recuperar o dinheiro. Eu não pude fazer nada. Todos os que tentaram resistir despacharam-nos para o outro mundo.
— É melhor não pensares nisso — sussurrou Ingrid, ao cabo de uns instantes. — Todo aquele que transporta dinheiro por conta de um Banco está exposto a essas coisas. Deste parte à companhia, suponho?
— Imediatamente.
— E já responderam?
— Ainda não.
Entraram em casa, onde, segundo parecia, tudo continuava inalterável. Roland perguntou:
— Aconteceu alguma coisa na minha ausência?
Ela mordeu o lábio inferior.
— Nada... O mesmo de sempre. Fui à povoação duas vezes e fiz compras. Só isso.
— Muito bem. Arranja-me, por favor, uma chávena de café.
—Imediatamente.
Ela estava a fazer o café quando ouviram cascos de outro cavalo diante da porta da casa, Habitualmente, aquele era um lugar tranquilo, mas nas últimas noites dir-se-ia que se convertera no Capitólio de Washington.
Dava a sensação que toda a gente passava por ali. Roland foi ao alpendre. As suas feições empalideceram ao ver quem era o homem que naquele momento desmontava diante da casa. Tratava-se de um indivíduo de meia idade, bem vestido, ainda ágil, forte, mas de nariz aquilino, de ave de rapina, e olhos cruéis, redondos e fixos, que lhe davam uma certa aparência de falcão. O recém-chegado disse:
— Olá, Roland.
— Olá, senhor inspetor.
— Estou informado do sucedido. O Banco recebeu um telegrama e pus-me a caminho imediatamente.
— Não... não quer entrar? Está bem. Falaremos com mais comodidade aí dentro.
Ao entrar em casa, o inspetor do nariz aquilino abanou a cabeça com admiração.
— Você tem uma bonita casa, Roland. Vejo que tem sabido empregar o magnífico ordenado que lhe pagamos no Banco.
— Sempre procurei ser digno do cargo que ocupo, senhor inspetor. Uma chávena de café?
— Obrigado. Prefiro não aceitar nada nos lugares onde me traz uma missão desagradável.
—Uma... missão desagradável?
— Lamento dizer-lhe que terá de restituir esse dinheiro, Roland.
— Que... que diz? Que tenho de restituir o dinheiro? Nunca poderei arranjar duzentos mil dólares!
— Claro que conseguirá, se receber apenas metade do ordenado durante uns anos. Além disso, resta-lhe o recurso de hipotecar esta casa.
— Pertence a minha mulher.
— Não quero truques, Roland. Você deve restituir esse dinheiro e restitui-lo-á. Sabe muito bem que tenho a mão pesada...
— Sim, sei de sobra que o senhor é o inspetor mais duro do Banco e que demonstrou cem vezes não ter consciência. Mas desta vez não tem razão e, portanto, vai ficar com um palmo de nariz, meu amigo. Houve um assalto e eu não sou obrigado a arriscar a vida. O xerife do condado está informado do que se passou e até suspeita quem são os culpados. Persigam-nos e recuperem o dinheiro! Eu não posso fazer mais do que já fiz!
O inspetor não perdeu a calma. Os seus olhos tornaram-se mais duros e cruéis, enquanto os seus dedos tamborilavam suavemente na mesa. Reparou que a esposa de Roland o escutava da porta, mas isso não pareceu incomodá-lo.
— Você tem um contrato com o Banco — disse com gelada suavidade — Recebe uma quantia importante, todos os meses, em troca de se responsabilizar pela transferência de moeda ianque para as nossas sucursais no México, destinada a determinados pagamentos, e de moeda mexicana para os Estados Unidos, quando é necessário. O contrato diz que você é «pessoalmente responsável e em todas as circunstâncias». Entende-se que um assalto à mão armada é um caso de força maior. Não o é neste género de trabalhos, meu amigo. Você sabe o que aconteceu ao seu colega Bradley, há dois anos. Assaltaram-no, e quando o Banco lhe exigiu que restituísse cento e cinquenta mil dólares, ele recorreu às autoridades, com o mesmo argumento que você utiliza agora. Pois bem, as autoridades condenaram-no a pagar. Então, Bradley suicidou-se.
— Não... não sabia que houvesse um precedente dessa espécie — gaguejou Roland.
E pela expressão do seu rosto adivinhava-se que falava verdade.
— Lamento, mas a mesma norma aplicaremos consigo.
— Foi um assalto em regra! Morreram três homens!
— E você também devia morrer, caso fosse necessário. Pagam-lhe para isso. Lamento, Roland, mas sabe perfeitamente que não me poderá convencer nem terei compaixão, pelo que o melhor que pode fazer é poupar palavras. Veja de que modo pode restituir esse dinheiro, embora, claro, lho devolvamos se os malfeitores forem capturados e se recuperar o montante do roubo.
— O senhor sabe perfeitamente que estamos a um passo da fronteira mexicana! Os malfeitores jamais serão encontrados!
— Nesse caso, pior para si, Roland. A nossa companhia é muito importante e maneja volumosos interesses. Necessita de estar certa de que não se cometem negligências.
Ingrid sussurrou com voz fraca, da porta:
— O senhor sabe perfeitamente que não houve nenhuma negligência. Um assalto é coisa a que sempre se está exposto nesta terra.
— Isso não interessa à nossa companhia, minha senhora.
— Compreendo porque procedem com tanta dureza —resmungou Roland. — Metade desses fundos não estavam declarados nem pagavam impostos. Não querem que o caso seja ventilado...
Notou que acertara no alvo pela repentina palidez do inspetor. Isso animou-o.
— Recorrerei aos tribunais, se for preciso.
— E nós faremos que se arrependa, Terá de se suicidar, como Bradley.
— Devo entender que a Bradley o... «suicidaram?» —perguntou Roland, desconfiado.
— Talvez.
Roland deitou a mão ao pequeno revólver que sempre trazia no coldre axilar.
— Essa companhia é constituída por uma corja de canalhas! Juro-lhe que...
Quando ainda não empunhara o revólver de todo, o inspetor tirou o seu com um movimento cintilante e apontou-lho diretamente ao coração.
— Vai estar quieto, Roland, e vai pensar com muita calma no que lhe vou dizer: devolva esse dinheiro ao Banco e não arranje complicações, ou empregaremos contra si muitos procedimentos que ainda não conhece. Por exemplo... este!
Moveu o revólver com rapidez e cravou a coronha no queixo de Roland, que caiu por terra e soltou um gemido. Quando o teve a seus pés, os olhos do inspetor brilharam sinistramente. Um misterioso e satânico impulso pareceu guiá-lo quando tentou agredir a pontapé o caído. Mas não o pôde fazer.
Naquele momento abriu-se uma das portas que davam para a sala. Um homem que trazia o peito ligado, vestia calças texanas e calçava botas de meio cano, apareceu no limiar. Na sua mão direita brilhava um revólver.
— Eu não faria isso — murmurou.
O inspetor fitou-o com os olhos semicerrados, enquanto os seus lábios se curvavam.
— Demónio! De modo que a esposa do nosso empregado tinha um passarinho fechado no seu quarto... — disse sarcástico.
— Eu não repetiria isso — murmurou Larsen, com estranha suavidade. — Nem o pensaria, sequer.
— Só digo o que vejo.
— Oh, mas há muitas coisas que um homem não vê, meu amigo! Por exemplo, uma bala entre os olhos. Juro-lhe que não chegará a distingui-la. Experimentamos?
— Não se atreverá.
— Eu atrevo-me a muitas coisas. Por exemplo, a corrê-lo daqui a pontapé. Vamos! Desapareça daqui antes que comece! Fora, de uma vez!
O inspetor deixou cair o revólver no coldre e resmungou:
— Voltaremos a ver-nos...
— Claro que sim. No inferno. Mas você irá alguns anos antes de mim, abutre.
O inspetor saiu, recuando, e só então Roland se pôs em pé. Contemplou Larsen com um esgar entre irónico e amargo.
— Nunca julguei que tivesse de me salvar o homem que pretendeu a minha mulher — disse roucamente.
E saiu da sala com passos precipitados.

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