quinta-feira, 17 de outubro de 2019

ARZ140.02 Um cavalo com o freio nos dentes

O xerife Rocket perscrutou as sombras e disse suavemente, enquanto as suas mãos acariciavam a carabina:
— Não tem por onde fugir.
Os seus quatro homens olhavam também para cima, onde o pequeno saliente rochoso se distinguia tenuemente entre a massa de sombras da montanha. As suas carabinas estavam prontas e não tinham abandonado a vigilância nem um só minuto, desde que o assédio começara.
— Existe um perigo — sussurrou um dos agentes. —Creio que é um tipo hábil e poderá escapar-nos depois de cair a noite.
— Não. Precisamente hoje muda a lua. Esta noite teremos quase tanta luz como durante o dia e ser-lhe-á impossível mexer-se sem que nós o notemos. A única coisa que é preciso é que não descurem a vigilância.
Observou o céu, recamado de estrelas, e acrescentou:
— Não há nem uma nuvenzinha. Estou certo de que a lua não se esconderá durante toda a noite e, portanto, não o deixaremos respirar. Vamos, ocupem os seus postos!
Dispusera os turnos de guarda com muita inteligência, de modo que houvesse sempre três homens de vigilância e um a dormir, tanto de dia como de noite. Desta maneira assegurava aos seus agentes um descanso razoável e deixava rebentado Larsen, pois este, com medo de que os seus inimigos trepassem pela montanha, com certeza não se atreveria a pregar olho.


Naquela noite ainda se mostraria um pouco atrevido, mas era quase certo que na noite seguinte já teria perdido quase toda a sua capacidade de resistência.
Junto do posto onde descansaria o homem de folga, o xerife Rocket mandara acender uma pequena fogueira, na qual se aqueceria a comida e haveria sempre uma cafeteira de café.
Situado entre rochas e a mais de quinhentas jardas da carabina de Larsen, o acampamento era dificilmente vulnerável e garantia tranquilidade quase absoluta. Nestas condições, o cerco poderia durar vários dias.
Além disso, o xerife decidiu:
— É importante que Larsen não durma, porque tudo lhe será mais insuportável se não puder pregar olho. Portanto, de vez em quando tentaremos escalar a montanha, como se o fôssemos surpreender. Logo que comece a fazer fogo, retirar-nos-emos. Mas isso pô-lo-á nervoso e fá-lo-á compreender que não se pode distrair nem um minuto. Começarei eu mesmo.
Começou a andar pelo carreiro que levava ao rochedo e quando chegou a certa distância pôs-se a saltar em ziguezague, de rocha em rocha, procurando não se tornar visível nem levantar o menor ruído. Mas de sobra sabia que Larsen tinha olhos de falcão e que o veria avançar.
De facto, dois minutos depois crepitou a carabina nas alturas. A bala perdeu-se uma meia jarda por cima da cabeça do xerife. Este coseu-se com a terra e continuou a avançar, mas agora como um réptil e extremando as precauções, até se situar apenas a umas cem jardas do esconderijo de Larsen.
Evitou cuidadosamente disparar; para que ele julgasse que o que pretendia era colocar-se por cima de si. E Larsen julgou. Não se podia arriscar a que o seu inimigo se colocasse entre as rochas e lhe pudesse apontar de cima, pelo que o obrigou a retroceder a tiro.
O xerife era homem tenaz e temerário e não se retirou a toda a pressa, como seria prudente, mas sim passo a passo.
Devido à falta de visibilidade suficiente, Larsen teve de gastar cinco balas — três de carabina e duas de revólver sem proveito algum. A única coisa que conseguiu foi que o xerife voltasse ao ponto de partida, o que significava que poderia recomeçar quando lhe apetecesse.
Efetivamente, à meia noite, quando a lua ia alta sobre os picos das montanhas, outros dois homens tentaram a aventura.
Desta vez, Larsen esperou que estivessem muito perto e disparou uma só bala, cujo ressalto produziu uma ferida na face direita de um dos seus inimigos. Este retrocedeu com tanto medo que até perdeu a carabina, a qual rolou pela montanha abaixo. Mas, uma vez na planície, pôde recuperá-la.
— Já gastou sete balas — disse o xerife, com voz rouca. — Dentro de meia hora, voltaremos a tentar, e assim por diante até que rebente.
De facto, meia hora depois outro homem começou a trepar. Agora, Larsen já adivinhara o jogo e sabia que não se tratava de conquistar uma posição de tiro vantajosa, mas sim de não o deixar pregar olho. Por isso, não disparou até ao último momento, quando já o seu inimigo estava prestes a apontar-lhe a carabina de um ponto ideal para o tiro.
As duas balas quase se cruzaram e uma delas esteve prestes a cravar-se na face direita de Larsen. Este logrou atingir o seu inimigo, mas só o feriu no antebraço.
O agente retrocedeu a toda a pressa, fazendo gestos de dor, e uma nova bala por pouco não o mandou para o inferno. Mas o resultado foi Larsen ter gastado dois projéteis mais. Quando o homem desceu à planície, foi felicitado pelo xerife.
— Desta vez conseguiste assustá-lo deveras. Agora não repetiremos a tentativa até daqui a quatro horas. Durante esse tempo, que pareceu interminável a Larsen, este não se atreveu a fechar os olhos, e quando amanheceu e o sol começou a queimar como fogo, estava à beira do esgotamento.
Deu balanço às suas munições. Se aquele tipo continuasse, em breve teria de se defender à pedrada, com o que só conseguiria morrer divertindo os seus inimigos. Claro que estes, à luz do dia, não seriam tão audaciosos como durante a noite. E não o foram.
Durante horas e horas de sol abrasador, os homens do xerife só tentaram a aventura mais duas vezes.
Larsen conseguiu pô-los em fuga muito antes de se acercarem, e até feriu um dele numa perna, mas em troca disso perdeu três balas e não pôde conciliar o sono.
Quando as sombras da noite começaram a deslizar de novo entre os penhascos, soube que estava definitivamente perdido. Não chegara à sua última fronteira, mas sim à sua definitiva sepultura. Por outro lado, via os seus inimigos renderem-se ordenadamente e tomarem a situação com muita calma.
As vezes punham-se ao alcance da sua carabina, mas não queria disparar para não se expor a gastar mais balas inutilmente.
O assédio prometia prolongar-se. Para si já se acabara toda a reserva de água e começava a queimá-lo a sede. Quando a noite já se começava a fechar, gritou:
—Rocket! Escute-me, xerife Rocket!
O xerife escudou-se atrás de uma rocha.
— Que queres agora, abutre?
— Posso oferecer-lhe um pacto.
— Um pacto, tu? Não te disse já que não me posso rir, por que depois os rins doem-me e ponho-me amarelo?
— Um dos seus homens está ferido. Não há motivo para que esta brincadeira continue dias e dias. Prometa-me que me submeterá a um julgamento imparcial e render-me-ei imediatamente.
— Agora preocupas-te com as feridas dos meus homens?
— Só digo que isto tem solução.
— Submeter-te a julgamento não o é. Foste julgado legalmente e condenado à morte. Depois fugiste. Já sabes quais são as minhas condições: um fim rápido e sem dor se te entregares imediatamente, ou uma morte lenta se nos deres mais trabalho, Decide!
Apesar da distância, as vozes transmitiam-se claramente e sem esforço no ar parado, calmo, de uma paz e imobilidade de séculos. O eco repetia ao longe algumas palavras quando estas eram pronunciadas em voz demasiado alta.
— Você fez disto uma questão pessoal, Rocket, e não compreendo porquê! Se me entregar, terá cumprido a sua missão. Não complique mais as coisas, com mil demónios!
— Talvez tenha uma questão pessoal contigo, Larsen, mas isso não interessa agora. Decide!
—Nunca nos tínhamos visto antes do julgamento, xerife! A que se deve todo esse ódio? Por que me persegue como se eu tivesse matado a minha mãe?
— Não tenho de te dar explicações! Decide de uma vez!
Larsen soltou uma gargalhada rouca, na qual, porém, havia uma nota de amargura.
— Venha buscar-me, Rocket!
Este, furioso, disparou duas vezes e as balas uivaram no silêncio mortal dos desfiladeiros e dos penhascos. Depois, voltou a reinar Uma quietude impressionante, solene. Essa quietude, prolongada durante minutos intermináveis, tornou-se quase religiosa.
Pela última vez, Larsen passou em revista a situação. Os seus inimigos tinham cometido um erro: não mudar os postos de vigilância. Esses postos eram bons e estavam bem escolhidos, mas as longas horas de observação tinham-lhe permitido familiarizar-se com eles de tal modo que poderia passar por entre as sentinelas quase às cegas. Claro que para isso seria necessário que as sentinelas estivessem cegas também.
Larsen perscrutou o céu. Havia lua cheia, mas assim como a primeira noite fora de uma limpeza absoluta, na segunda o firmamento aparecia coberto por algumas nuvens. Se o vento não mudasse, chegaria um momento em que as nuvens cobririam a lua.
Larsen tratou de calcular quanto poderia durar um desses momentos de escuridão, e disse para consigo que, no máximo, dez minutos. Em dez minutos teria de abandonar o seu refúgio, de chegar aos postos de vigilância sem fazer barulho e de passar entre eles. A tarefa era quase impossível, mas, morto por morto, pelo menos seria melhor morrer a lutar.
Em baixo, o xerife também descobrira que haveria breves intervalos de escuridão, se o vento não mudasse, e por isso mandou trocar dois dos postos de guarda, a fim de desorientar o seu inimigo, se este decidisse empreender uma ação desesperada.
Quando a maior das nuvens estava quase a tocar a superfície do disco lunar, Larsen tirou as esporas, largou a carabina e o revólver, cuspiu no chão para com a terra formar uma espécie de barro, e besuntou com ele a lâmina da sua faca de mato, a fim de que brilhasse o menos possível.
Depois começou a descer. Fê-lo passo a passo, aproveitando os relevos de um terreno que se habituara a conhecer perfeitamente. Em cerca de cinco minutos chegou ao nível do vale, sem levantar o menor ruído nem fazer rolar nenhuma pedra. Agora tinha de passar entre os postos de observação, sem ser visto. Sabia onde estavam, de modo que avançou passo a passo e sem precipitações inúteis. Também não produziu o menor rumor.
Mas quando já. começava a julgar-se a salvo, deu de cara com um dos homens que Rocket mudara de sítio.
Larsen já estranhara encontrar tantas facilidades. Ouviu um grito a menos de dois passos e, instantaneamente, crepitou um revólver. O clarão do tiro, disparado a pouca distância dos seus olhos, quase o deixou cego.
Larsen sentiu uma queimadura num flanco e, de modo maquinal e instintivo, lançou a faca para o lugar onde vira mover-se o seu inimigo. Este recebeu a lâmina de aço em pleno ventre e soltou um grito, enquanto largava o revólver.
Larsen desatou a correr às cegas, pois sabia que não poderia resistir durante muito tempo. Tropeçou duas vezes e caiu, enquanto atrás de si soavam gritos e estampidos.
A segunda queda salvou-lhe a vida, porque uma bala disparada ao acaso roçou-lhe pela cabeça. Conhecia bem o terreno e sabia onde os seus inimigos tinham os cavalos. Correu para lá, enquanto as últimas nuvens se dissipavam e o xerife gritava:
— Depressa! Vai para os cavalos! Não o deixem!
Vários disparos de carabina atroaram a noite, mas a claridade não era completa e as balas perderam-se no vácuo. Além disso, os três homens que restavam ao xerife estavam mais atentos a cobrir-se do que a caçar o adversário. Acabavam de ver o morto com a faca cravada e isso tornava-os prudentes. No fim de contas, por aquele trabalho apenas receberiam um punhado de dólares.
— Depressa! — gritou Rocket, passando adiante. — Vai alcançar os cavalos!
Larsen subiu a uma rocha, enquanto sentia que a camisa se lhe empapava de sangue. Dali viu confusamente, os cavalos, quase a seus pés, e atirou-se como um nadador se atira à água.
Chocou rudemente com o lombo de um dos animais, que se encabritou, e, fazendo um esforço supremo, conseguiu montá-lo. A rocha donde acabava de saltar protegia-o momentaneamente dos seus inimigos. Estes estavam perto e deviam sentir-se nervosos, porque várias balas se perderam contra a massa de pedra.
Inclinando-se, Larsen desfez o nó que sujeitava a uma árvore as rédeas do animal e bateu-lhe no pescoço, ao mesmo tempo que soltava um grito, a fim de o excitar para que arrancasse a todo o galope.
O cavalo obedeceu muito bruscamente e, como estava sem sela, Larsen escorregou-lhe pelo pelo brilhante do lombo. Só a sua perícia de cavaleiro o salvou 'de cair ao chão, o que teria significado o fim da sua aventura.
Conduziu o animal para a saída do vale, enquanto ouvia gritos atrás de si. Se dispusesse de mais tempo, teria podido espantar os outros cavalos, mas já se devia dar por muito feliz por ter conseguido apoderar-se de um deles. Agora o mais importante era despistar os seus inimigos, que o seguiriam a curta distância,
De facto, ouviu os gritos habituais dos cavaleiros, ao excitarem as montadas. Como morrera um homem, os seus perseguidores tinham os cavalos indispensáveis.
Larsen agarrou-se ao flanco do seu corcel, enquanto a dor se tornava insuportável. Calculou que devia levar-lhes umas trezentas jardas de avanço e que, além disso, o solo pedregoso não permitiria que se imprimissem as pegadas, mas mesmo assim o fim da aventura parecia-lhe fácil de prever. Ele nem sequer trazia esporas, e a velocidade do seu cavalo diminuía pouco a pouco, por mais que tentasse incitá-lo.
De súbito, porém, o corcel aumentou o galope. Porquê? Como era capaz de aumentar a distância que o separava dos seus inimigos, os quais castigavam selvaticamente, com as esporas, as suas montadas?
O curioso era que o cavalo que montava Larsen não devia ser muito bom, porque começava a acusar sinais de cansaço. E, contudo, empregava todas as suas energias naquela corrida mortal, a que o seu cavaleiro não tinha forças para o obrigar. Porquê?
Larsen tentou guiar a montada para a saída do labirinto, que conhecia bem por a ter estudado durante o assédio. Mas foi inútil, o cavalo não obedeceu. Parecia ter interesse especial em seguir outro caminho, uma espécie de passagem em ziguezague entre as rochas, que não tinha aspeto de levar a parte alguma. E por mais que Larsen fizesse, o qual, de resto, sentia cada vez menos forças, não conseguiu obrigá-lo a mudar de ideias.
Por fim, desistiu, pois sabia de sobra que alguns cavalos são tão teimosos como as suas irmãs, as mulas.
Por outro lado, aquela estranha querença do animal parecia ter desorientado os seus perseguidores. Estes continuavam a soltar gritos e a disparar em direção à saída do labirinto, mas não se lembraram de que Larsen podia ter seguido pela esquerda, em direção à parte mais profunda dos rochedos, por um caminho que, na aparência, não levava a parte alguma.
O animal remontou uma quebrada, pareceu farejar o ar e por fim orientou-se para a direita, onde havia um carreiro entre dois autênticos abismos.
Foi então que Larsen, vencido pelo cansaço e pela perda de sangue, perdeu os sentidos. Oscilando, seguro no animal só por instinto, permaneceu assim durante duas longas horas, até que o cavalo, também à beira do esgotamento, parou diante de uma casa.

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