segunda-feira, 21 de outubro de 2019

ARZ140.06 Honradez de cão

Ingrid fitou o homem que estava no limiar. A sua palidez era extrema. Queria manter-se calma, mas os lábios tremiam-lhe espasmodicamente.
— Não devias ter aparecido — murmurou.
— Ouvi tudo, da cama, e já não podia aguentar mais.
— Mas comprometeste-me... Não sabia que estavas aqui, Ingrid. Não sabia, também, que aquela voz era a do teu marido. Eu só percebi que na casa onde me tinham ajudado estavam em apuros, e julguei meu dever aparecer e... — De súbito, calou-se. — Lamento, Ingrid. Agora compreendo que fui um estúpido. Partirei imediatamente.
— Não podes. Tens febre...
— E tu tens um marido. Isso é muito mais importante.
— Sabes que... Sabes que Roland te odeia. Nunca te perdoará saber que te deve pouco menos do que a vida.
— Não me voltará a ver. Já te disse que me vou embora imediatamente.
Ia dirigir-se para o quarto onde estavam a sua camisa e as suas coisas, mas nesse momento dobraram-se-lhe os joelhos, devida à sua fraqueza. Conseguiu refazer-se sem demora, mas Ingrid notou-lhe o desfalecimento.
— Não podes ir-te embora assim. Seria uma loucura.
— Pelo contrário, a loucura seria ficar aqui.
-- Porquê?
Ele virou-se devagar. Os seus olhos percorreram lentamente a figura da mulher, pareceram criá-la de novo, como se Ingrid surgisse do fundo das suas recordações, talvez do nada. Nos olhos do homem brilhou a chispazinha de uma mágoa distante, mas que ia crescendo pouco a pouco.


— Tu odeias-me, Ingrid.
— Não nego.
— Por isso casaste com outro...
— Sim, por isso. Embora deva confessar que sou pior do que tu, Larsen. Também casei com Roland porque ele me podia dar uma segurança que tu jamais me terias proporcionado.
-- O facto de falares assim já indica que isso não é verdade, pequena. Uma pessoa dificilmente confessa os seus verdadeiros defeitos; sempre nos lamentamos dos defeitos que precisamente não temos e escondemos com todo o cuidado os outros. Tu não casaste com Roland por interesse; só o fizeste por uma razão muito mais importante: porque me odiavas.
— Sim, odiei-te como nunca voltarei a odiar.
— Tiveste razão para isso.
— Abandonaste-me por outra mulher...
— Tive mais motivos, Ingrid.
— Motivos? Existe algum motivo verdadeiro para abandonar a mulher com a qual se vai casar?
— Sim, um: a honra. Mas além disso, eu não te abandonei; apenas te supliquei que me esperasses.
— Não o fiz quando soube que andavas atrás de outra mulher.
—. Devias amar-me muito para que o teu amor se transformasse depois em semelhante ódio.
— Não falemos disso.
— Não, não falemos disso... — murmurou ele, penosamente. — Este não é o momento indicado para se lamentar o que podia ter sido e não foi. De resto, fizeste bem em casar com Roland. Ele deu-te uma paz e uma segurança material que jamais eu te poderia dar.
Pegou na camisa e vestiu-a devagar.
— Vais-te. embora? Não compreendes que é uma loucura?
— Repito que a loucura seria ficar, Ingrid. Porque eu... — Ia a dizer «porque eu ainda te amo», mas deteve-se no último momento. — Porque eu devo partir. É indispensável. Além disso, quero que saibas que não vim aqui por minha vontade. Estava sem sentidos e o cavalo trouxe-me, ainda não sei porquê.
— O cavalo trouxe-te?
— Sim, claro. Não podia imaginar que foras tu quem me ajudara. Se nesse momento estivesse na plena posse das minhas faculdades, não teria ficado, porque nada mais longe da minha vontade que causar-te complicações. Mas, de todos os modos, obrigado por me teres salvado a vida. Creio que, se não fosses tu, teria acabado por me esvair em sangue em qualquer parte.
— O mesmo acontecerá se te fores embora agora.
— Isso pouco te deve importar. Eu já pertenço ao reino das sombras, ao reino do que não pode ser.
Colocou em cima da mesa o revólver com o qual ameaçara o inspetor,
— Toma, é teu. Encontrei-o no quarto e serviu-me para ameaçar esse abutre, mas está descarregado. Diz ao Roland que lhe ponha balas e que o conserve. Pode fazer--lhe falta.
— Não posso consentir que te vás embora agora, Larsen! Apesar do que te odiei, não consinto que morras no caminho, como um cão!
— Se continuar aqui, posso trazer-te complicações.
A mulher mordeu, com angústia, o lábio inferior.
— Quem te persegue, Larsen? Porque chegaste aqui ferido, depois de cavalgares pelo Norte dois anos inteiros?
— Persegue-me um xerife... e uma quadrilha de assassinos.
— Um xerife e uns assassinos? Como é possível juntar ambas as coisas?
— Parece estranho, mas desta vez aconteceu assim. Dos dois ajudantes que tinha o xerife Rocket, um negou-se a segui-lo porque considerou que a sua causa não era justa. O outro teve de partir em missão de serviço para o Oeste do condado. E então o xerife teve a ideia de reunir uns quantos pistoleiros para me perseguir. Prometeu-lhes esquecer todos os seus crimes e deu-lhes um punhado de dólares. Esta é a estranha tropa que me tem perseguido até agora, Ingrid. Estiveram quase a apanhar-me e calculo que acabarão por o conseguir.
— Por isso mesmo não podes sair daqui.
— Deixa de pensar nisso, pequena. Ela mordeu outra vez, angustiosamente, o lábio inferior, até deixar nele um pequeno sinal sangrento. Mas não chegou a dar por ele.
— Ainda não me disseste porque te perseguem, Larsen — sussurrou.
Ele hesitou uns instantes. Depois confessou, com um fio de voz:
— Por causa de outra mulher.
Acabou de abotoar a camisa, que ela levara e passara a ferro, naquele dia, e, sem uma palavra mais, saiu de casa, depois de passar junto da mulher. Desta vez, Ingrid não tentou detê-lo.
Ao sair de casa, pensou que necessitava de um cavalo, e como trouxera um embora tivesse pertencido a um pistoleiro tinha o direito de o levar. Foi à cavalariça, que ficava de um dos lados da casa, e, graças à luz do candeeiro que pendia da porta, pôde distinguir o cavalo que o levara ali.
Estava atrás dos outros, meio oculto, e parecia ter descansado o suficiente para se pôr, de novo a caminho.
Apesar de haver ali duas selas, Larsen não tomou nenhuma, visto não lhe pertencerem. Desatou o cavalo, fê-lo sair da cavalariça e montou-o em pelo. Seguidamente, tocou-o com os calcanhares, para que se pusesse a caminho.
Pouco depois viu as luzes de uma pequena cidade. Tinha de ser Deming, a qual se encontrava, portanto, muito perto da casa. Podia-se dizer que Ingrid e o marido eram também habitantes da povoação.
Larsen pensou que devia lá ir comer alguma coisa, pois quase não se alimentara desde o princípio do cerco e sentia-se muito fraco. Além disso, devido à perda de sangue, tinha muita sede.
Esperando que o xerife não se encontrasse ali, entrou na cidadezinha, cujas ruas estavam desertas, e viu um «saloon» que ainda não fechara as suas portas. Prendeu o cavalo no lugar mais escuro, para que não chamasse a atenção uma montada sem sela, e entrou no estabelecimento, onde, por sorte, não havia àquela hora mais do que uns jogadores atentos à sua partida de cartas e dois bêbedos.
— Posso comer alguma coisa? — perguntou ao dono.
— Se tem dinheiro, pode. Que lhe parece duas fatias de toucinho, pão e uma boa caneca de cerveja?
— Ótimo, mas que a caneca seja capaz de esmagar um cavalo.
— Dar-lhe-ei uma capaz de esmagar a minha sogra. Quer sentar-se àquela mesa?
Como a que lhe indicavam estava colocada num canto bastante escuro, Larsen achou bem. Mal começara a comer, entraram dois homens no estabelecimento e encostaram-se ao balcão, sem o ver.
Larsen reconheceu imediatamente um deles e por pouco não se engasgou com a cerveja. Era o inspetor do Banco, com quem pouco antes quase se envolvera a tiro. Um tipo alto e enérgico, de feições quadradas, acompanhava-o. O inspetor deu uma pancadinha no balcão.
— Serve-nos uma garrafa de rum naquela mesa —disse ao dono.
Indicou uma que estava a pouca distância da de Larsen, mas separadas ambas por uma coluna, de modo que os ocupantes dificilmente se poderiam ver.
O inspetor bebeu um golo e resmungou:
— Esse imbecil negou-se a restituir o dinheiro.
— Que pensará a companhia? — perguntou o homem de feições quadradas.
— O Banco exigirá que a importância seja paga. O contrato que tinha com Roland era muito claro. Pagava-se-lhe um bom ordenado, mas ele tinha de correr todos os riscos, em caso de roubo. Até podia ter feito um seguro por sua conta, mas não tomou essa precaução.
— Creio, pelo contrário, que nenhuma companhia de seguros estaria disposta a fazer um seguro contra roubo, nesta região disse o outro. --- Está cheia de indesejáveis.
— O Banco não quer saber disso. Roland devia entregar na nossa sede um baú cheio de pesos mexicanos, e terá de o entregar ou o seu equivalente em dólares.
— Que acontecerá se insistir na sua negativa?
— Arrancar-lhos-ei seja como for. O tipo não é pobre. Tem uma bonita casa e pode conservar o seu emprego: já que não é responsável pelo assalto. Só lhe pedimos que deixe de receber uma parte do seu ordenado e que hipoteque a casa. Não é demasiado, parece-me.
— Tendo em conta que se trata de uma importância elevada, isso seria o mesmo que arruinar a sua vida por completo. Além de ganhar muito pouco, estaria de tal forma preso ao Banco que não poderia procurar outras oportunidades.
— Isso não me interessa — resmungou o inspetor. —Um contrato é um contrato e deve-se cumpri-lo.
— Você é um tipo duro. Nunca perdoa a ninguém.
— A ninguém, nem a mim mesmo. Certa vez, quando era cobrador do Banco, perdi vinte mil dólares e paguei-os. Vinte mil dólares eram então, para a minha idade, uma fortuna fabulosa. Mas fui implacável e continuarei a sê-lo até morrer.
— Você é demasiado honrado, inspetor, mas de uma honradez de cão. Faz o que lhe mandam sem ter em conta os sentimentos para nada.
— Com sentimentos não se fará prosperar este país. Esta nação só a faremos prosperar à força de dólares.
O homem das feições quadradas bebeu um grande golo de rum e ao cabo de uns instantes perguntou:
— Muito bem, eu sou o agente do banco nesta região. Que devo fazer?
— Vigiar Roland para que não se lembre de fugir atravessando a fronteira do México. Eu, entretanto, galoparei até à sede e pedirei novas instruções.
— Que julga que acontecerá?
— Muito simples: mandar-me-ão receber seja como for. Já contratei uns detetives para que sigam a pista dos salteadores, mas se não os encontrarem, será Roland o responsável. E estou resolvido a fazê-lo pagar, ainda que seja a murro. Esta foi sempre a minha lei.
— Mas você não perde nem ganha nesse caso; você não arrisca nem meio dólar, inspetor.
— Arrisco o meu prestígio e a minha honestidade profissional. Para mim, é mais do que suficiente.
Depois destas palavras, os dois homens beberam novamente e a seguir o seu diálogo versou sobre assuntos do banco que nada tinham a ver com o que interessava a Larsen.
Este acabou de jantar pensativo, procurando não fazer barulho, para que os outros não o vissem. Compreendia que aquele assunto era muito mais complicado do que julgara ao princípio. Quando interviera a favor de Roland, fizera-o pensando que o inspetor era um canalha ou coisa parecida. Até não se teria importado de o desafiar e de o matar, naquele momento.
Mas agora verificava que não podia proceder assim. O inspetor era uni homem implacável e teimoso como uma mula. Decerto estava enganado nas suas apreciações, mas parecia um homem honesto sob todos os aspetos. Isto é, ele julgava proceder bem, e a um homem da sua categoria moral não se deve matar como a um cão. Também seria inútil tentar convencê-lo, porque aquele tipo seria teimoso até à morte.
Então, que fazer? Consentir que Ingrid fosse talvez expulsa daquela casa? Deixar que continuasse a errar pelas montanhas, como quando ele a conhecera? Porque Ingrid fora desesperadamente pobre, tanto como ele. Só tinha essa desculpa para o facto de ter procurado a segurança ao casar com um homem instalado na vida, como Roland. Então... que podia fazer? Procurar para Roland os duzentos mil dólares? Este pensamento era tão absurdo que quase fez rir Larsen. Contudo, jamais estivera tão perto da verdade como naquele momento. Uma verdade banhada em sangue.

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