domingo, 8 de abril de 2018

POL157.08 Liberdade para o chefe rebelde

Quando Igswon Odd abriu os olhos, urna dor aguda subiu de retina ao cérebro. Tornou a fechá-los, sem se aperceber do local onde se encontrava.
Durante uns segundos, teve a impressão de que despertara num mundo diferente, envolto, porém, nas mesmas sombras que o envolveram pouco depois de ser atingido pelos tiros dos pistoleiros que saíam da passagem secreta.
Mantendo os olhos fechados, procurou recordar-se dos últimos acontecimentos: a resistência na parte do Desfiladeiro do Forno, junto da Passagem dos Cem Guerreiros; Agar e a promessa de ir ter com «Unha Curta» para lhe dar a incumbência de acender as Fogueiras do Concilio; o avanço através do túnel secreto, apoiado no braço de Bucky Allyson e o momento em que uma bala atingiu no ombro o homem que se redimira com o sublime gesto de sacrificar a vida pela salvação de Agar e de ele próprio, Igswon... Por fim, a sensação de mergulhar num poço sem fundo onde tudo eram sombras densas e onde o invadiu uma sensação deliciosa de paz.
As lembranças passavam na sua mente com pormenores, como se estivesse a reviver os episódios. Agora, abria os olhos de novo... Mas...
Mas com medo, com o receio de surgir no mundo dos mortos e encontrar-se rodeado de fantasmas. Abriu-os e mal conteve o gemido que lhe causou o movimento do pescoço. Aquela dor provou-lhe que ainda era um ser vivo. Mas onde estaria?
Ignorava-o.
Percorreu com o olhar o que havia à sua volta: sombras, cada vez menos densas, mas sombras. Lentamente, foram-se desabrochando das sombras as quatro paredes de um compartimento qualquer. No chão, voltando a cabeça com dificuldade por causa das dores que sentia no ombro, pôde ver vários objetos: selas, correias, e um por outro instrumento de lavoura, fora de uso.
Tentou levar a mão ao sítio de onde partia a maior sensação dolorosa e então compreendeu que as tinha amarradas atrás das costas. Isso trouxe o acompanhamento de uma nova dor, nos pulsos e nos dedos, entumecidos pela difícil circulação do sangue.
Percebeu que se encontrava em poder da gente de Stephen Ewig e que lhe seria impossível fugir pois estava ferido e a perda de sangue o enfraquecera muito. O que não compreendia era que o tirano ainda não o tivesse matado. Só se... se Ewig alimentava algum plano diabólico a seu respeito.
Quis voltar-se. Outra dor lembrou-lhe que também fora atingido numa coxa e que precisamente isso o impedira na fuga dos dois quando ainda estavam a tempo de a conseguir. Só lhe restava a consolação de saber que a noiva estaria sã e salva. Também alimentava a esperança de que os homens sob o comando de Ynn e Siem tivessem feito quanto possível para o salvar das garras de Ewig e já viessem a caminho as hostes dos chefes «navajos».
Pôs-se muito quieto ao ver que a porta se abria e ficava um homem à vista no limiar. A claridade que veio de fora convenceu Igswon de que tinham decorrido muitas horas desde o momento em que caiu junto da grande rocha. O pistoleiro aproximou-se.
— Ainda bem que já estás com os olhos abertos. Se não abria-tos eu a pontapé — dirigiu-se novamente para a porta e falou aos que estavam de fora, esperando: —Venham. Temos de o levar para a praça.
Apareceram outros dois homens que se agacharam junto do ferido e, com brutalidade, o agarraram por braços e pés, levando-o para a rua.
Igswon voltou a sentir uma dor aguda provocada pelo modo bárbaro como o transportavam. E embora fosse um homem acostumado a sofrer as maiores dores físicas, não pôde evitar novo desmaio. Apesar disso, os seus lábios não tinham emitido o mais pequeno queixume.
Os pistoleiros continuaram a levar de qualquer modo o inanimado corpo de Igswon, quase de rastos. Não valia a pena, pensavam, ter contemplações por alguém que ia morrer dentro de pouco tempo.
A praça da povoação estava repleta de gente. Homens, mulheres e crianças, todos tinham sido obrigados a sair de casa para assistirem ao «espetáculo» que o chefe Ewig lhes ia oferecer. E todos contemplavam a cena com rostos inexpressivos, silenciosos, de absoluta apatia.
Levaram Igswon para o centro da praça maior da povoação, onde fora levantado um patíbulo sobre um estrado de madeira. AI tencionava Ewig enforcar o seu inimigo, diante de todos os moradores de Flown Rock. Uma vez chegados à plataforma, os bandidos que traziam o desmaiado jovem deixaram-no cair abruptamente.
A dor tremenda que lhe causou a pancada teve o condão estranho de o fazer voltar à consciência das coisas. Abriu os olhos e conseguiu abafar na garganta o instintivo gemido de dor.
Ewig, vestido com o seu mais luxuoso trajo, apareceu nesse momento à varanda de casa. Dai faria primeiro um discurso aos habitantes de Flown Rock e depois presenciaria a morte do inimigo mais odiado.
Os olhos dos dois homens cruzaram-se imediatamente, como num duelo de lampejos. Igswon, superando a fraqueza, apoiou-se no braço válido, erguendo parcialmente o corpo.
— Assassino! Cobarde! — gritou, com um tom de voz que teve ressonâncias estranhas na praça cheia de gente silenciosa.
O tirano fez ouvidos de mercador aos insultos do inimigo. Com um sorriso cruel, debruçou-se na varanda e dirigiu-se à multidão reunida ali por sua ordem.
— Atenção! Convoquei-os — começou pausadamente —para serem testemunhas da forma como trato aqueles que se levantem contra o meu poder. Igswon Odd é um assassino que disparou as suas armas contra os meus homens e até contra mim. E eu sou o chefe deste povo mórmon, a autoridade máxima, segundo a tradição dos nossos maiores — fez uma pausa para estudar o efeito das suas palavras e prosseguiu: — De todos os rebeldes combatentes da montanha só escaparam seis ou sete sem castigo imediato, porque conseguiram fugir e desaparecer antes que chegasse até eles a força inexorável da minha justiça. Os outros tiveram a sorte que mereciam, no Desfiladeiro do Forno. Depois de verem o que vou fazer ao chefe dos proscritos, mandarei alguns dos meus homens ao sitio onde estão os velhos e as mulheres que fugiram daqui. Serão todos mortos. O mesmo farei com os que de ora avante ousem tentar o menor gesto de revolta.
Repassou o olhar pela multidão e pareceu convencer-se de que as suas palavras tinham sido eficientes. Após breve silêncio, dirigiu-se de novo ao condenado à morte.
— Já vês que de pouco te serviram as fumaças de valentia, Igswon Odd. Já nem sequer falas, pois não?
Igswon fulminou o chefe Ewig, lançando-lhe um olhar que era um poema de ódio. E falou. A sua voz soou com vigor, apesar da fraqueza que sentia em todo o corpo, e cada palavra das suas foi como um chicote a açoitar o rosto do figadal inimigo:
— És tão cobarde e mau, Stephen Ewig, que só ousas insultar um homem e desafiá-lo quando ele está preso de pés e mãos não podendo por isso desafrontar-se. Mas tão cobardes como tu são afinal esses que assistem impassíveis à tirania assassina que exerces sobre os seus filhos, irmãos e pais. Sim, vocês — tornou, dirigindo-se a quantos presenciavam a cena —, vocês que perderam a honra de homens livres e aceitaram ser escravos, ser lixo! Envergonho-me de todos vocês. Os que um dia sacudirem o jugo do miserável tirano também os amaldiçoarão, como eu, na hora da morte. Será este o pago da cobardia que têm revelado.
— Obriguem-no a calar-se! — berrou Stephen Ewig, fora de si.
O pistoleiro que estava mais perto de Igswon atirou-lhe um pontapé, deixando-o sem respiração.
Depois, o cacique fez um sinal a outro dos seus homens. Este passou a corda por cima do pau que tinham montado com a forma de cruz; em seguida, esses dois puseram em pé o condenado e esperaram que o pistoleiro incumbido das funções de carrasco fizesse o n6 corredio que seria posto ao pescoço da vitima.
Igswon, recuperando um pouco o alento, voltou a falar, dirigindo-se outra vez aos seus conterrâneos:
— Já sabem para que os faz presenciar esta cena o verdugo que têm por chefe. Para conhecerem o destino que os espera quando ele resolva acabar com um e outro. E até serão constrangidos a entregarem-lhe as mulheres e os filhos se as quiser para si e para o seus esbirros.
O carrasco improvisado, que tinha mesmo cara de carrasco de profissão, passou a corda pela cabeça de Igswon até ao pescoço, onde a cingiu. Depois, agarrou na outra extremidade e olhou para o chefe, aguardando a ordem de pendurar o proscrito.
Igswon, ao sentir o contacto áspero do cânhamo, apelou para todas as suas forças e gritou a plenos pulmões:
— Que a maldição dos mórmones verdadeiros caia sobre a cabeça dos falsos e dos seus verdugos!
Ewig deu o sinal. O carrasco segurou a corda com vigor, para puxar por ela. Nesse instante, um dos homens que permaneciam hirtos como estátuas, diante do patíbulo, apontou-o e comprimiu o gatilho, metendo uma bala entre os olhos do carrasco.
E como se fosse um sinal combinado, todos os homens reunidos na praça maior de Flown Rock por ordem do tirano lançaram mão dos revólveres e começaram a fazer fogo contra os pistoleiros, que, surpreendidos pelo insólito procedimento, caiam como tordos, sem terem tempo de procurar refúgio.
Os projéteis silvavam perigosamente -por cima de Igswon, que tinha caído de novo quando o verdugo largou a corda. Via agora o jovem Odd que, por fim, os seus conterrâneos estavam a reagir briosamente contra a brutalidade que lhes impunha o tirano, certo de terem sido as suas palavras o motor que despertou sentimentos de virilidade adormecidos no íntimo. Ewig ia saber o que era capaz de fazer o povo mórmon quando, farto de tiranias, resolve sacudir o jugo.
Ao soarem os primeiros tiros, as mulheres apressaram--se a procurar refúgio nos portais que encontraram à mão, ou mesmo nas suas próprias casas, fechando logo as portas para evitarem a entrada de fugitivos, que nelas pretendessem entrincheirar-se.
Acabava um dos mórmones de levantar Igswon, a fim de retirá-lo para local mais seguro, quando o jovem Odd, tomando consciência da situação, sorriu abertamente, movendo os descorados lábios. Depois, firmando-se no ombro do que viera auxiliá-lo, pôs-se em pé e a sua garganta modulou som estranho, semelhante ao uivo de lobo com cio. Gritos idênticos, às centenas, reboaram então como resposta.
— São os guerreiros dos meus irmãos «navajos»! — gritou, frenético de entusiasmo. — Agora vão esses bandidos saber o que é bom. Nem um só escapará, ajudem-me a ir recebê-los!
O homem que servia de apoio a Igswon não estava muito confiante na sanidade mental do jovem, mas prestou-se a ajudá-lo. Igswon, então, gritou aos conterrâneos que tinham reagido a seu favor:
—Juntem-se todos aqui, ao pé de mim! Depressa! Só assim os índios podem saber quem são os meus amigos.
Os mórmones que disparavam contra a casa de Ewig retrocederam até ficarem perto de Igswon. Não tardou que os guerreiros comandados pelo valente «Pé de Búfalo» e o próprio pai, surgissem pelo lado Noroeste da povoação, dando gritos de guerra e galopando como demónios enfurecidos para o local onde soava o tiroteio. Igswon avançou ao encontro deles, amparado pelo outro mórmon, e ergueu o braço a saudar os que chegavam.
— Avante, irmãos guerreiros «navajos»!
Pai e filho fizeram um gesto largo e vigoroso com a mão direita e refrearam as montadas respetivas, mas permitindo que os seus homens se lançassem ao ataque para tentarem o aniquilamento dos pistoleiros e dos gentios de Flown Rock, estes receosos de que os seus inimigos de religião aproveitassem a oportunidade para liquidar as questões que entre eles havia com frequência.
Uns cinquenta gentios da povoação tinham desde muito cedo tomado o partido de Ewig e disparavam agora de dentro de casa do tirano contra os índios atacantes. Alguns deles, porém, não tiveram tempo de o fazer. E os guerreiros de «Dente de Lobo» caíram sobre eles, esmagando-lhes os crânios com os seus «tomahawks», em rápidos e certeiros golpes.
Minutos depois, os outros seiscentos guerreiros sob a chefia de «Pena Ligeira» e «Águia Branca» despontaram pelo Sul, varando o ar com seus gritos de guerra e logo iniciando também o assédio à casa.
Igswon Odd sentiu que as energias lhe voltavam ao corpo como num milagre. Tinham-no montado a cavalo e permanecia junto dos chefes índios, embora a manter-se com dificuldade na sela do brioso animal.
— A chamada do nosso irmão Odd foi recebida a tempo pelos guerreiros de «Águia Branca» — saudou o chefe índio, ao chegar junto de Igswon.
— Que «Manitu» tenha sempre os olhos e os ouvidos dos meus irmãos chefes «navajos» tão bons como agora — foi a resposta do jovem.
E passaram a prestar maior atenção à luta que se travava ali, diante deles. Os índios passavam e repassavam, rapidíssimos, por diante das janelas de onde os pistoleiros faziam fogo, e lançavam as suas flechas, algumas das quais, errando o alvo, se cravavam nas paredes de madeira. Não tardou que principiassem a chover sobre a casa de Ewig achas de estopa a arder. E os «navajos» receberam ordem de assalto.
Pareciam demónios de pele tostada e brilhante. Saltavam dos cavalos em movimento para se agarrarem às saliências do edifício e aos parapeitos das janelas, daí pulando para dentro de casa, com o «tomahawk» pronto a desferir o golpe no crânio do primeiro «rosto-pálido» que surgisse na sua frente.
Poucos minutos volvidos, a batalha transformava-se num corpo-a-corpo no interior do edifício, onde os índios continuavam a introduzir-se, possuídos da fúria vingativa refreada no seu peito havia tanto tempo.
Estava marcado pelo Destino como iria acabar a batalha. Os poucos pistoleiros ainda vivos procuraram salvação na fuga, imediatamente seguidos por uma caterva de inimigos. Os «navajos» pesquisavam todos os recantos e encontraram pistoleiros escondidos nos lugares mais incríveis.
O fumo e as chamas já envolviam todo o edifício devorando-lhe as ressequidas paredes, já os guerreiros «navajos» começavam a abandoná-lo, dando gritos de vitória.
— Ewig foge para Provo!
O jovem chefe dos proscritos sentiu renascer no seu corpo todo o vigor que sempre o caracterizara. Esporeou o cavalo que montava e o animal lançou-se em galope louco para a saída da povoação. «Dente de Lobo», fazendo um gesto significativo com a mão erguida, seguiu imediatamente Igswon, imitado pelos outros chefes e muitos dos seus guerreiros.
O jovem mórmon avançava com a rapidez do raio, alcançando em breve a pradaria. Ao longe, viu Stephen Ewig, galopando como um desesperado pelo caminho que levava a Provo.
Ver o seu mortal inimigo foi o maior dos incentivos. Castigou os filhais do animal para que ele galopasse o mais possível. E assim aconteceu. As crinas longas do cavalo açoitavam o próprio rosto de Igswon, que sentia ferver o sangue nas veias ao ritmo da galopada. Cada vez se tornava mais nítida a figura do perseguido e cada vez se tornava mais ativa a coragem do perseguidor, se bem que alimentada por energias momentâneas, dos nervos em pé de guerra.
Após ele, a menos de duzentas jardas, os «navajos» cavalgavam furiosamente nos seus pequenos cavalos ainda quase selvagens. Mas Igswon não olhou para a retaguarda nem uma só vez. Nem se recordava sequer de que os seus amigos tinham vindo das suas terras, ao chamamento das Fogueiras do Concílio, inclinando a luta em seu favor.
Diante de si apenas via a figura de Ewig, que tentava escapar-se-lhe, embora a distância entre os dois fosse diminuindo instante a instante.
Ewig compreenderia que a situação piorava. O cavalo de Igswon era muito mais veloz que o dele. E das duas vezes que voltou a cabeça olhando para trás, viu algo de pior: a chusma de peles-vermelhas galopando um pouco mais à retaguarda do inimigo.
Só poderia escapar enfronhando-se no labirinto das montanhas. Se alcançasse a Passagem do Vento! Mas ainda lhe faltavam três milhas, uma distância 'excessiva!
Abandonou o caminho de Provo e encetou a nova corrida no prado. Agora amaldiçoava-se por não ter dado cabo de Igswon logo que o teve em seu poder.
Os primeiros grandes rochedos já se erguiam aproximadamente a milha e meia. Ewig esporeou a montada com fúria, sem piedade. Se conseguisse lá chegar!
De súbito, o cavalo tropeçou e Ewig viu-se projetado pelos ares, para cair umas quatro jardas adiante. O receio de ser apanhado por Igswon fez-lhe desaparecer do cérebro, momentaneamente, todas as outras ideias.
 Levantou-se com rapidez e, de revólveres na mão, começou a correr, entregando toda a sua esperança à ligeireza das pernas.
Mas o cavalo de Igswon, parecendo ter asas nas patas, alcançou-o ao fim de poucos segundos.
O jovem rebelde torceu o corpo em cima do animal para evitar o projétil disparado por Ewig e, ao mesmo tempo, levou as mãos ao cinturão para se munir dos seus «colts». Um calafrio lhe percorreu a medula ao rogar com os dedos pelos vazios coldres.
Recordou-se então de que o tinham desarmado assim que o fizeram prisioneiro na Passagem dos Cem Guerreiros. Depois, ao ser salvo pelos conterrâneos de Flown Rock, não pensando em tal, continuara inconscientemente desarmado. E na sua cegueira para dar cabo do tirano, iniciara aquela perseguição, sempre esquecido desse pormenor importantíssimo.
Outros dois projéteis passaram muito perto da sua cabeça, só se livrando de ser atingido graças à mobilidade nervosa do cavalo. Mas uma terceira bala perfurou-lhe o ombro já ferido.
Antes de cair, perdendo os sentidos, ainda julgou ouvir os espantosos gritos de guerra dos índios, dilacerando a calma da pradaria.
Stephen Ewig contava com dois revólveres para se opor a quase um milhar de arcos e «tomahawks». E estava de pé, enquanto os seus inimigos montavam rapidíssimos e ágeis cavalos.
Não é difícil adivinhar quanto tempo ainda conseguiu ter de vida em tais condições.

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