Igswon Odd deteve o cavalo em frente dos restos, ainda fumegantes, da casa dos pais. Os seus olhos pardos contemplaram a cena. Apertou os dentes com força e cerrou os dedos nas rédeas até lhe doerem.
Desmontou devagar e aproximou-se do braseiro, sentindo ardor na tez morena. Assim permaneceu longo tempo, como estátua de bronze, insensível à dor provocada pelo rescaldo do incêndio, na pele e nos olhos.
Tinha chegado excessivamente tarde para sequer intervir na luta. A chamada do pai atrasara-se, Igswon Odd não pôde deter ou contrariar o atentado criminoso. Agora tudo estava consumado.
Sentiu passos à retaguarda. Não se voltou. Parecia petrificado pelas reflexões, com o pensamento posto na grandeza da tragédia. A voz chegou-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe:
— Igswon Odd...
Lentamente, foi-se voltando. Os seus olhos pardos cravaram-se no homenzinho que se mantinha a alguns passos dele. Perguntou-lhe:
— «Unha Curta», como sucedeu isto?
O índio fitou-o com os seus olhinhos brilhantes e da sua boca foram saindo vagarosamente as palavras, misturadas com saliva negra de tabaco mastigado:
— Pai Odd negou-se a pagar novo tributo. E chefe Ewig veio com seus homens. Houve grande luta. Pai Odd disse a «Unha Curta»: «Procura Igswon Odd e diz-lhe que venha.» Índio procurou-te.
O rapaz deu uma palmada nas costas do fiel amigo e tornou a olhar para aquele braseiro que era túmulo dos seus. Ele sabia que um mórmon luta sempre até a vida lhe fugir pelos ferimentos do corpo. Ali, estavam os restos do pai, da mãe, das duas irmãs. E aquilo era uma nova proeza do cacique Ewig.
Ewig tinha chegado à montanha com uns tantos homens rudes e cruéis, e assim se erigiu em chefe do povo mórmon. Prescindiu das normas estabelecidas pelos anciãos e converteu em lei as suas ordens. A princípio, vários chefes de família protestaram, mas Ewig fê-los emudecer para sempre. Os revólveres dos homens de Ewig passaram a matar quem se lhe opusesse. O povo não vivia já; vegetava sob um doloroso terror. Alguns homens, para sobreviverem, refugiaram-se na montanha. Agora, Ewig tinha matado o velho Odd e as três mulheres, e incendiara a casa. E tudo porque Odd não quis pagar o tributo inadmissível que lhe fora impor.
Igswon Odd ergueu os olhos para o céu. Parecia querer que as retinas se enchessem de estrelas. Os seus lábios entreabriram-se para deixarem escorrer as palavras, que saíam como se fossem uma oração:
— Dorme em paz, pai Odd, que o teu filho Igswon jura vingar-te, vingar a tua esposa, as tuas filhas. Fundarei a nova casa dos Odd sobre as cinzas da velha! — voltou-se para o índio, parado a pouca distância, imóvel corno esfinge: — Vai ao povo «navajo» e diz a «Pena Ligeira» que pai Odd está nos terrenos de caça do Grande Manitu, mas que Igswon Odd continua a ser amigo do povo «navajo». Diz-lhe também que eu declarei guerra a chefe Ewig e prefiro morrer a deixar de cumprir o meu juramento. Já podes ir, «Unha Curta».
O índio tinha escutado as palavras do jovem com os braços cruzados sobre o peito. Depois de o ter ouvido, deixou a sua posição contemplativa, montou no pequeno cavalo e lançou-se a galope, não tardando a desaparecer nas sombras da noite.
Igswon ainda continuou durante algum tempo a olhar para o que fora a sua casa. Depois, montou também e partiu a passo.
Afastou-se do caminho e entrou no prado. Tinha a certeza de que Ewig tudo faria para o liquidar, como perigoso que era. Precisava de seguir com precauções. Excetuando o estranho fulgor dos olhos pardos, nada mais no rosto de Igswon revelava a chama que lhe ardia no peito.
As terras dos pais estendiam-se até aos princípios dos campos «navajos». Deteve a montada no cimo de urna lomba e olhou para trás. Ao longe, como braseiro, via-se o que fora o lar paterno.
Roçou as prateadas esporas nos flancos do animal, que iniciou a descida da outra vertente. Calculou as horas pelas estrelas e concluiu que não tardaria a amanhecer. Tanto lhe fazia: não tinha pressa. Agora, necessitava de ver Agar e despedir-se dela. Agar não podia ser sua esposa enquanto ele não tivesse um lar e terras que rendessem para ambos. Assim era a Lei
ti
Tinha chegado excessivamente tarde para sequer intervir na luta. A chamada do pai atrasara-se, Igswon Odd não pôde deter ou contrariar o atentado criminoso. Agora tudo estava consumado.
Sentiu passos à retaguarda. Não se voltou. Parecia petrificado pelas reflexões, com o pensamento posto na grandeza da tragédia. A voz chegou-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe:
— Igswon Odd...
Lentamente, foi-se voltando. Os seus olhos pardos cravaram-se no homenzinho que se mantinha a alguns passos dele. Perguntou-lhe:
— «Unha Curta», como sucedeu isto?
O índio fitou-o com os seus olhinhos brilhantes e da sua boca foram saindo vagarosamente as palavras, misturadas com saliva negra de tabaco mastigado:
— Pai Odd negou-se a pagar novo tributo. E chefe Ewig veio com seus homens. Houve grande luta. Pai Odd disse a «Unha Curta»: «Procura Igswon Odd e diz-lhe que venha.» Índio procurou-te.
O rapaz deu uma palmada nas costas do fiel amigo e tornou a olhar para aquele braseiro que era túmulo dos seus. Ele sabia que um mórmon luta sempre até a vida lhe fugir pelos ferimentos do corpo. Ali, estavam os restos do pai, da mãe, das duas irmãs. E aquilo era uma nova proeza do cacique Ewig.
Ewig tinha chegado à montanha com uns tantos homens rudes e cruéis, e assim se erigiu em chefe do povo mórmon. Prescindiu das normas estabelecidas pelos anciãos e converteu em lei as suas ordens. A princípio, vários chefes de família protestaram, mas Ewig fê-los emudecer para sempre. Os revólveres dos homens de Ewig passaram a matar quem se lhe opusesse. O povo não vivia já; vegetava sob um doloroso terror. Alguns homens, para sobreviverem, refugiaram-se na montanha. Agora, Ewig tinha matado o velho Odd e as três mulheres, e incendiara a casa. E tudo porque Odd não quis pagar o tributo inadmissível que lhe fora impor.
Igswon Odd ergueu os olhos para o céu. Parecia querer que as retinas se enchessem de estrelas. Os seus lábios entreabriram-se para deixarem escorrer as palavras, que saíam como se fossem uma oração:
— Dorme em paz, pai Odd, que o teu filho Igswon jura vingar-te, vingar a tua esposa, as tuas filhas. Fundarei a nova casa dos Odd sobre as cinzas da velha! — voltou-se para o índio, parado a pouca distância, imóvel corno esfinge: — Vai ao povo «navajo» e diz a «Pena Ligeira» que pai Odd está nos terrenos de caça do Grande Manitu, mas que Igswon Odd continua a ser amigo do povo «navajo». Diz-lhe também que eu declarei guerra a chefe Ewig e prefiro morrer a deixar de cumprir o meu juramento. Já podes ir, «Unha Curta».
O índio tinha escutado as palavras do jovem com os braços cruzados sobre o peito. Depois de o ter ouvido, deixou a sua posição contemplativa, montou no pequeno cavalo e lançou-se a galope, não tardando a desaparecer nas sombras da noite.
Igswon ainda continuou durante algum tempo a olhar para o que fora a sua casa. Depois, montou também e partiu a passo.
Afastou-se do caminho e entrou no prado. Tinha a certeza de que Ewig tudo faria para o liquidar, como perigoso que era. Precisava de seguir com precauções. Excetuando o estranho fulgor dos olhos pardos, nada mais no rosto de Igswon revelava a chama que lhe ardia no peito.
As terras dos pais estendiam-se até aos princípios dos campos «navajos». Deteve a montada no cimo de urna lomba e olhou para trás. Ao longe, como braseiro, via-se o que fora o lar paterno.
Roçou as prateadas esporas nos flancos do animal, que iniciou a descida da outra vertente. Calculou as horas pelas estrelas e concluiu que não tardaria a amanhecer. Tanto lhe fazia: não tinha pressa. Agora, necessitava de ver Agar e despedir-se dela. Agar não podia ser sua esposa enquanto ele não tivesse um lar e terras que rendessem para ambos. Assim era a Lei
ti
entre os mórmones. Agar esperaria, pois; se ele o não conseguisse...
Quando o cavalo pisou o caminho de areia de acesso à casa de Agar, já o dia clareava e mal se viam raras estrelas de luz indiscreta no azul do infinito.
Desmontou vagarosamente. Bateu à porta com a coronha do revólver. Minutos depois, aparecia na janela que servia de visor a cara enrugada de uma velha, que, ao reconhecê-lo, não hesitou um segundo!
— Entra, Igswon. Já nos contou Uatt o que sucedeu... julgávamos que também estivesses lá.
— Não. Cheguei tarde. O meu pai mandou «Unha Curta» ao Vale Verde, para onde eu tinha conduzido o gado.
— Igswon!
— Agar!
Os dois jovens fitaram-se uns momentos, em silêncio.
Era Agar quase tão alta como Igswon e trazia o longo cabelo negro em duas tranças caídas para o peito.
Tinham-na como sendo a rapariga mais bonita do povo mórmon.
—Que vais fazer agora, Igswon?
— Jurei vingar-me de Ewig. Talvez decorra muito tempo antes de poder cumprir o meu voto, Agar, e não é impossível que jamais o consiga. Sendo assim, Agar, ficarás livre...
A rapariga baixou os olhos. O seu rosto moreno empalideceu sensivelmente. Ao dito por Igswon sucedeu-se um longo silêncio. Finalmente, ele pôs uma das mãos no queixo de Agar, levantou-lhe a cara e beijou-a nos lábios. Depois, sem mais, voltou-se para a porta.
— Adeus, Agar.
— Adeus, Igswon, rezarei por ti.
Ele saiu de casa e montou novamente a cavalo.
Quando alcançou o outro extremo do caminho voltou-se para ver a noiva. Teria jurado haver lágrimas nos grandes e luminosos olhos da jovem.
Ao repassar por diante das cinzas da sua casa, parou um momento, para as contemplar pela última vez. Súbita angústia no peito lhe dificultou a respiração. Fez um gigantesco esforço para serenar. Conseguiu-o. Obrigou o animal a tomar o caminho do povoado. Queria falar com o velho pastor Wohim, pedir-lhe a sua bênção.
A aldeia estava ainda como adormecida. Só um homem por outro se cruzava com Igswon, a caminho dos seus rebanhos. As estreitas ruazinhas pareceram mais estreitas do que habitualmente aos olhos do jovem e as negras fachadas cobertas de luto.
Parou o cavalo diante de uma casa das de mais triste aspeto e apeou-se. Antes que os seus nós dos dedos batessem na porta, esta abriu-se e apareceu um homem velho, com uma branca e abundante barba.
— Entra, Igswon.
Transpôs o limiar. Sentaram-se, um em frente do outro. Não precisou de contar o sucedido, porque o pastor já o sabia. Quando o jovem ia abrir a boca, Wohim levantou a mão direita e disse:
— Suponho saber ao que vens, Igswon Odd. Desejo que a justiça dos homens seja tão justa como a justiça de Deus. Que Ele guie os teus passos, Igswon Odd!
— Obrigado, pastor Wohim...
Pouco depois, Igswon saía da casa do ancião e dirigia-se para o extremo da aldeia. O sol já estava alto.
Verificando que precisava de fazer algumas compras indispensáveis para iniciar a luta, entrou no armazém único da povoação. Adquiriu munições, uma espingarda de repetição e uma boa faca de caça. Voltou a sair e a montar. Nesse momento, um homem que se aproximava, ao passar por ele, disse em voz baixa:
— Foge depressa, Igswon Odd! O chefe Ewig acaba de apregoar que és um proscrito.
— Não importa, Ynn. Jurei dar cabo dele e hei-de consegui-lo,
— Não te esqueças que tens por ti a povoação mórmon, Igswon Odd...
— Sim, Ynn, eu vejo... - – o tom de voz do jovem era sarcástico. — Para quê essa teórica ajuda? Os poucos homens desta terra não merecem esse nome. São fracas donzelas. Adeus, Ynn!
Esporeou o cavalo e afastou-se. O outro ficou de cabeça em baixo, não sabendo que responder. Reconhecia que a raça mórmon degenerara; já não se comparava à de outros tempos, quando as ofensas se pagavam com o sangue do inimigo. Ele próprio, um Ynn, vira morrer o pai sob os açoites dos homens de Ewig e não mexera um dedo para o impedir. Mas Igswon era diferente de todos, talvez por ter sido criado com os «navajos». Tornara-se impassível e vingativo como os índios.
Igswon seguiu pelas estreitas e sombrias ruelas até quase à saída da aldeia. Então, deteve o animal e cerrou os dentes com raiva. Quatro esbirros de Ewig vinham em direção contrária, talvez de algum ato de rapina. Deliberou dar o primeiro sinal de combate, para o inimigo saber com quem lidava.
14
Os quatro cavalgavam apressados. Igswon percebeu. Iam arremessar os seus animais contra ele, por não se haver afastado.
Não se enganou no cálculo. O jovem Odd não perdeu a serenidade. Refreou a montada, a umas quinze jardas, e com rapidez fulgurante puxou pelos dois «Colts» que lhe pendiam do cinto de munições. Simultaneamente, duas chamas iluminaram as pontas dos canos. Dois dos homens caíram das selas.
Os outros dois puxaram pelas rédeas, fazendo empinar os cavalos com a dor sofrida. Uma bala passou perto da cabeça do jovem Odd. Os seus «Colts» voltaram a troar. Sorriu de ódio o jovem ao ver um dos inimigos cair com duas balas no peito.
O sobrevivente, compreendendo que a sua única salvação constituía em fugir, fincou esporais nos ilhais do cavalo, obrigando-o a voltar-se. Não conseguiu o seu intento. Já Igswon chegava junto dele e o agarrava por um pulso. Um puxão violento fez o homem dar com os ossos na poeirenta calçada, a rugir e torcer-se. Quando se levantou, ainda entontecido, deparou com o frio olhar do jovem Odd, que lhe apontava o revólver.
— Devia matar-te, mas prefiro que vivas e vás dizer a esse cão de Ewig que jurei matá-lo, E quando Igswon jura uma coisa, cumpre-a sempre, Vai!
O bandido, com o pavor ainda pintado no rosto, montou a cavalo e lançou-se ao longo da ruela, Igswon Odd esperou o suficiente para evitar um ataque à traição e deu de esporas ao corcel, iniciando rápido galope a caminho da montanha.
À sua passagem pelos campos, volviam-se para ele alguns rostos envelhecidos de homens que recolhiam fruta. Aproximava-se o Outono, os dias eram mais curtos, o sol aquecia menos e as noites começavam a ser frias. Em breve a aldeia tomaria o aspeto das terras sem vida, mas onde o sossego não é perturbado por estranhos ruídos.
Naquele ano, porém, tudo seria diferente. Nas ruas e nos campos de Flown Rock troariam revólveres e o chão seria abalado pelos cascos dos cavalos. Igswon tinha-o jurado sobre as cinzas ainda quente dos pais.
Em breve ficaram para trás as campinas de cultura e se ergueram em frente os picos rubros da montanha. Ali estaria o seu refúgio inviolável. Igswon conhecia aquela zona, como qualquer índio «navajo» ou «mokis» e atravessara mil vezes os seus desfiladeiros, à caça. Trabalho insano teriam os homens de Ewig se o quisessem encontrar quando voltasse das suas incursões.
Atravessou gargantas, cujas paredes pareciam juntar-se nos altos, quase não permitindo a luz chegar ao fundo. Subiu depois urna encosta pedregosa e achou-se num vale atapetado de erva. No centro pastava um rebanho de ovelhas, que passaria do milhar. Os olhos do jovem pousaram nelas com brilho acariciador. Aí ficaria enquanto estivesse a cumprir a sua missão de justiça e vingança. O Vale Verde era o melhor local das Montanhas Rochosas e só Igswin se atreveria a meter-se por aquele labirinto, pois todas aquelas terras pertenciam aos índios «navajos».
Avançou até chegar ao «jogan» (1) que «Unha Curta» construíra no ano anterior e viu três cavalos
16
recalcitrantes à porta da cabana. Igswon reconheceu logo o enorme potro branco a remexer-se como se tivesse picadas no sangue. Desmontando, entregou as rédeas ao fiel índio. Entrou no «jogan» e procurou habituar os olhos às sombras que reinavam no interior. O que primeiro descobriu foi os três índios sentados no chão, com os braços e as pernas cruzadas e com os encovados olhos fitos nele. Igswon ergueu a mão direita e saudou os que esperavam por ele.
— Que o Grande Manitu guie sempre todas as tuas ações, «Pena Ligeira». E que a sabedoria de «Águia Branca» e de «Dente de Lobo» ganhe prosperidade para o povo «navajo».
— Que as tuas palavras sejam ouvidas pelo povo «navajo»!
— Que as tuas palavras sejam ouvidas pelo Grande Espírito, irmão rosto-pálido!
Igswon sentou-se em posição igual à dos peles-vermelhas e dirigiu-se ao chefe da tribo, exprimindo-se perfeitamente em língua dos «navajos»:
— Não esperava encontrar-te aqui, «Pena Ligeira». Mas sempre se alegram os meus olhos quando te veem. Hoje também, embora a noite da vingança se tenha estendido no espírito do teu irmão rosto-pálido.
— O «mokis» (1) «Unha Curta» veio até ao meu «jogan» e contou-me o sucedido a pai Odd. Agora, chefes «navajos» vêm para te dizer: Irmão rosto-pálido, os guerreiros de «Pena Ligeira» estão ao teu lado, porque odeiam os rostos-pálidos que têm língua partida como as serpentes venenosas.
O índio calou-se, esperando a aprovação dos outros chefes, e, quando estes abanaram a cabeça em sinal de concordância, prosseguiu:
— Quando o irmão rosto-pálido, que tem alma de índio, precisar de nós, o povo «navajo» desenterrará o machado de guerra e os gritos dos seus guerreiros soarão ao longo das montanhas e dos campos. «Pena Ligeira» falou.
Igswon tornou a erguer a mão.
— Ouvi com agrado, «Pena Ligeira», e prometo acorrer a ele quando chegar o momento de travar a última batalha.
Igswon calou-se. Outro dos índios tomou a palavra após breve silêncio.
— Os invernos passaram muitas vezes sobre a cabeça de «Águia Branca», mas a sua mão ainda tem firmeza para empunhar o «tomahawk». Os guerreiros de «Agua Branca» já voltaram da caça e estão inativos nos seus «tepis» do Grande Deserto Pintado. Quando irmão rosto-pálido começar a guerra, os «navajos» de «Águia Branca» terão as suas novas flechas bem afiadas e os arcos tensos para combater com ele. «Águia Branca» falou.
Novamente Igswon levantou a mão e disse:
— A palavra de «Águia Branca» é sempre nobre como a chuva que tira a sede no deserto. Os seus guerreiros lutarão junto do irmão rosto-pálido quando a oportunidade chegar.
Falou, por fim, o último dos três índios que permaneciam sentados no interior da cabana. Era o mais idoso do trio e tinha a cabeça adornada com as cinco penas características da tribo.
— Já falaram meus irmãos «Pena Ligeira» e «Águia Branca». «Dente de Lobo» pouco pode dizer que não o saiba já o seu irmão, Grande Chefe Odd. Os meus guerreiros são jovens e bravos. Voltaram da caça pelos verdes prados que pertenceram a nossos avós antes de os rostos-pálidos da língua partida atravessarem o Grande Lago Salgado. Esses rostos-pálidos falam com duas línguas, mas o Grande Chefe Pai Odd defendeu os índios e ensinou-lhes o segredo de lutarem pelos seus direitos de seres humanos. Pai Odd era também um grande feiticeiro e veio ao meu «wigwan» para curar o meu filho «Pé de Búfalo». Por isso, quando tu avisares, os guerreiros de «Dente de Lobo» montarão os cavalos e os seus gritos de guerra levarão a morte aos inimigos do Grande Chefe Odd. «Dente de Lobo» falou.
Igswon levantou a mão direita pela terceira vez e aceitou o oferecimento do índio.
— O coração do Grande Manitu falou pela boca do meu irmão «Dente de Lobo». A amizade dos meus irmãos «navajos» será sempre o refúgio do guerreiro rosto--pálido.
Dito isto, Igswon levantou-se e os índios fizeram outro tanto. Os quatro ergueram as mãos, com as palmas para a frente, e o jovem proferiu as palavras de ritual:
— Que o Grande Manitu guie sempre as ações de meus irmãos «navajos» e dê prosperidade ao seu povo.
— Aos seus desígnios nos entregamos todos, Grande Chefe Odd.
Os três chefes índios montaram nos cavalos e, depois de saudarem novamente Igswon, partiram a galope em direção à parede norte de Vale Verde. Odd ficou à porta do «jogan», contemplando as briosas montadas dos amigos de pele-vermelha, até desaparecerem no desfiladeiro. Depois encarou «Unha Curta».
— Irás a casa de Yaim Swan e mantém-te junto de Agar para a defenderes. Tudo o que souberes, comunica-mo. Confio em ti, «Unha Curta». Podes ir.
Sem proferir palavra, o «mokis» deixou a sua posição de absoluta imobilidade e dirigiu-se para o cavalo. Montou com um salto ágil sobre a manta que lhe servia de sela e partiu velozmente para a entrada do Vale Verde. Minutos depois desaparecia das vistas.
Igswon penetrou de novo no «jogan» e estendeu-se no monte de peles que servia de leito a «Unha Curta». A guerra tinha principiado, e a ele, Igswon Odd, competia atacar e fazer justiça. Para já, sabia contar plenamente com a amizade e o auxílio de todos os guerreiros índios do Deserto Pintalo. Na manhã seguinte, começaria a mostrar a Ewig que género de inimigo era Igswon Odd, o mórmon que foi educado pelos índios «navajos».
Quando o cavalo pisou o caminho de areia de acesso à casa de Agar, já o dia clareava e mal se viam raras estrelas de luz indiscreta no azul do infinito.
Desmontou vagarosamente. Bateu à porta com a coronha do revólver. Minutos depois, aparecia na janela que servia de visor a cara enrugada de uma velha, que, ao reconhecê-lo, não hesitou um segundo!
— Entra, Igswon. Já nos contou Uatt o que sucedeu... julgávamos que também estivesses lá.
— Não. Cheguei tarde. O meu pai mandou «Unha Curta» ao Vale Verde, para onde eu tinha conduzido o gado.
— Igswon!
— Agar!
Os dois jovens fitaram-se uns momentos, em silêncio.
Era Agar quase tão alta como Igswon e trazia o longo cabelo negro em duas tranças caídas para o peito.
Tinham-na como sendo a rapariga mais bonita do povo mórmon.
—Que vais fazer agora, Igswon?
— Jurei vingar-me de Ewig. Talvez decorra muito tempo antes de poder cumprir o meu voto, Agar, e não é impossível que jamais o consiga. Sendo assim, Agar, ficarás livre...
A rapariga baixou os olhos. O seu rosto moreno empalideceu sensivelmente. Ao dito por Igswon sucedeu-se um longo silêncio. Finalmente, ele pôs uma das mãos no queixo de Agar, levantou-lhe a cara e beijou-a nos lábios. Depois, sem mais, voltou-se para a porta.
— Adeus, Agar.
— Adeus, Igswon, rezarei por ti.
Ele saiu de casa e montou novamente a cavalo.
Quando alcançou o outro extremo do caminho voltou-se para ver a noiva. Teria jurado haver lágrimas nos grandes e luminosos olhos da jovem.
Ao repassar por diante das cinzas da sua casa, parou um momento, para as contemplar pela última vez. Súbita angústia no peito lhe dificultou a respiração. Fez um gigantesco esforço para serenar. Conseguiu-o. Obrigou o animal a tomar o caminho do povoado. Queria falar com o velho pastor Wohim, pedir-lhe a sua bênção.
A aldeia estava ainda como adormecida. Só um homem por outro se cruzava com Igswon, a caminho dos seus rebanhos. As estreitas ruazinhas pareceram mais estreitas do que habitualmente aos olhos do jovem e as negras fachadas cobertas de luto.
Parou o cavalo diante de uma casa das de mais triste aspeto e apeou-se. Antes que os seus nós dos dedos batessem na porta, esta abriu-se e apareceu um homem velho, com uma branca e abundante barba.
— Entra, Igswon.
Transpôs o limiar. Sentaram-se, um em frente do outro. Não precisou de contar o sucedido, porque o pastor já o sabia. Quando o jovem ia abrir a boca, Wohim levantou a mão direita e disse:
— Suponho saber ao que vens, Igswon Odd. Desejo que a justiça dos homens seja tão justa como a justiça de Deus. Que Ele guie os teus passos, Igswon Odd!
— Obrigado, pastor Wohim...
Pouco depois, Igswon saía da casa do ancião e dirigia-se para o extremo da aldeia. O sol já estava alto.
Verificando que precisava de fazer algumas compras indispensáveis para iniciar a luta, entrou no armazém único da povoação. Adquiriu munições, uma espingarda de repetição e uma boa faca de caça. Voltou a sair e a montar. Nesse momento, um homem que se aproximava, ao passar por ele, disse em voz baixa:
— Foge depressa, Igswon Odd! O chefe Ewig acaba de apregoar que és um proscrito.
— Não importa, Ynn. Jurei dar cabo dele e hei-de consegui-lo,
— Não te esqueças que tens por ti a povoação mórmon, Igswon Odd...
— Sim, Ynn, eu vejo... - – o tom de voz do jovem era sarcástico. — Para quê essa teórica ajuda? Os poucos homens desta terra não merecem esse nome. São fracas donzelas. Adeus, Ynn!
Esporeou o cavalo e afastou-se. O outro ficou de cabeça em baixo, não sabendo que responder. Reconhecia que a raça mórmon degenerara; já não se comparava à de outros tempos, quando as ofensas se pagavam com o sangue do inimigo. Ele próprio, um Ynn, vira morrer o pai sob os açoites dos homens de Ewig e não mexera um dedo para o impedir. Mas Igswon era diferente de todos, talvez por ter sido criado com os «navajos». Tornara-se impassível e vingativo como os índios.
Igswon seguiu pelas estreitas e sombrias ruelas até quase à saída da aldeia. Então, deteve o animal e cerrou os dentes com raiva. Quatro esbirros de Ewig vinham em direção contrária, talvez de algum ato de rapina. Deliberou dar o primeiro sinal de combate, para o inimigo saber com quem lidava.
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Os quatro cavalgavam apressados. Igswon percebeu. Iam arremessar os seus animais contra ele, por não se haver afastado.
Não se enganou no cálculo. O jovem Odd não perdeu a serenidade. Refreou a montada, a umas quinze jardas, e com rapidez fulgurante puxou pelos dois «Colts» que lhe pendiam do cinto de munições. Simultaneamente, duas chamas iluminaram as pontas dos canos. Dois dos homens caíram das selas.
Os outros dois puxaram pelas rédeas, fazendo empinar os cavalos com a dor sofrida. Uma bala passou perto da cabeça do jovem Odd. Os seus «Colts» voltaram a troar. Sorriu de ódio o jovem ao ver um dos inimigos cair com duas balas no peito.
O sobrevivente, compreendendo que a sua única salvação constituía em fugir, fincou esporais nos ilhais do cavalo, obrigando-o a voltar-se. Não conseguiu o seu intento. Já Igswon chegava junto dele e o agarrava por um pulso. Um puxão violento fez o homem dar com os ossos na poeirenta calçada, a rugir e torcer-se. Quando se levantou, ainda entontecido, deparou com o frio olhar do jovem Odd, que lhe apontava o revólver.
— Devia matar-te, mas prefiro que vivas e vás dizer a esse cão de Ewig que jurei matá-lo, E quando Igswon jura uma coisa, cumpre-a sempre, Vai!
O bandido, com o pavor ainda pintado no rosto, montou a cavalo e lançou-se ao longo da ruela, Igswon Odd esperou o suficiente para evitar um ataque à traição e deu de esporas ao corcel, iniciando rápido galope a caminho da montanha.
À sua passagem pelos campos, volviam-se para ele alguns rostos envelhecidos de homens que recolhiam fruta. Aproximava-se o Outono, os dias eram mais curtos, o sol aquecia menos e as noites começavam a ser frias. Em breve a aldeia tomaria o aspeto das terras sem vida, mas onde o sossego não é perturbado por estranhos ruídos.
Naquele ano, porém, tudo seria diferente. Nas ruas e nos campos de Flown Rock troariam revólveres e o chão seria abalado pelos cascos dos cavalos. Igswon tinha-o jurado sobre as cinzas ainda quente dos pais.
Em breve ficaram para trás as campinas de cultura e se ergueram em frente os picos rubros da montanha. Ali estaria o seu refúgio inviolável. Igswon conhecia aquela zona, como qualquer índio «navajo» ou «mokis» e atravessara mil vezes os seus desfiladeiros, à caça. Trabalho insano teriam os homens de Ewig se o quisessem encontrar quando voltasse das suas incursões.
Atravessou gargantas, cujas paredes pareciam juntar-se nos altos, quase não permitindo a luz chegar ao fundo. Subiu depois urna encosta pedregosa e achou-se num vale atapetado de erva. No centro pastava um rebanho de ovelhas, que passaria do milhar. Os olhos do jovem pousaram nelas com brilho acariciador. Aí ficaria enquanto estivesse a cumprir a sua missão de justiça e vingança. O Vale Verde era o melhor local das Montanhas Rochosas e só Igswin se atreveria a meter-se por aquele labirinto, pois todas aquelas terras pertenciam aos índios «navajos».
Avançou até chegar ao «jogan» (1) que «Unha Curta» construíra no ano anterior e viu três cavalos
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recalcitrantes à porta da cabana. Igswon reconheceu logo o enorme potro branco a remexer-se como se tivesse picadas no sangue. Desmontando, entregou as rédeas ao fiel índio. Entrou no «jogan» e procurou habituar os olhos às sombras que reinavam no interior. O que primeiro descobriu foi os três índios sentados no chão, com os braços e as pernas cruzadas e com os encovados olhos fitos nele. Igswon ergueu a mão direita e saudou os que esperavam por ele.
— Que o Grande Manitu guie sempre todas as tuas ações, «Pena Ligeira». E que a sabedoria de «Águia Branca» e de «Dente de Lobo» ganhe prosperidade para o povo «navajo».
— Que as tuas palavras sejam ouvidas pelo povo «navajo»!
— Que as tuas palavras sejam ouvidas pelo Grande Espírito, irmão rosto-pálido!
Igswon sentou-se em posição igual à dos peles-vermelhas e dirigiu-se ao chefe da tribo, exprimindo-se perfeitamente em língua dos «navajos»:
— Não esperava encontrar-te aqui, «Pena Ligeira». Mas sempre se alegram os meus olhos quando te veem. Hoje também, embora a noite da vingança se tenha estendido no espírito do teu irmão rosto-pálido.
— O «mokis» (1) «Unha Curta» veio até ao meu «jogan» e contou-me o sucedido a pai Odd. Agora, chefes «navajos» vêm para te dizer: Irmão rosto-pálido, os guerreiros de «Pena Ligeira» estão ao teu lado, porque odeiam os rostos-pálidos que têm língua partida como as serpentes venenosas.
O índio calou-se, esperando a aprovação dos outros chefes, e, quando estes abanaram a cabeça em sinal de concordância, prosseguiu:
— Quando o irmão rosto-pálido, que tem alma de índio, precisar de nós, o povo «navajo» desenterrará o machado de guerra e os gritos dos seus guerreiros soarão ao longo das montanhas e dos campos. «Pena Ligeira» falou.
Igswon tornou a erguer a mão.
— Ouvi com agrado, «Pena Ligeira», e prometo acorrer a ele quando chegar o momento de travar a última batalha.
Igswon calou-se. Outro dos índios tomou a palavra após breve silêncio.
— Os invernos passaram muitas vezes sobre a cabeça de «Águia Branca», mas a sua mão ainda tem firmeza para empunhar o «tomahawk». Os guerreiros de «Agua Branca» já voltaram da caça e estão inativos nos seus «tepis» do Grande Deserto Pintado. Quando irmão rosto-pálido começar a guerra, os «navajos» de «Águia Branca» terão as suas novas flechas bem afiadas e os arcos tensos para combater com ele. «Águia Branca» falou.
Novamente Igswon levantou a mão e disse:
— A palavra de «Águia Branca» é sempre nobre como a chuva que tira a sede no deserto. Os seus guerreiros lutarão junto do irmão rosto-pálido quando a oportunidade chegar.
Falou, por fim, o último dos três índios que permaneciam sentados no interior da cabana. Era o mais idoso do trio e tinha a cabeça adornada com as cinco penas características da tribo.
— Já falaram meus irmãos «Pena Ligeira» e «Águia Branca». «Dente de Lobo» pouco pode dizer que não o saiba já o seu irmão, Grande Chefe Odd. Os meus guerreiros são jovens e bravos. Voltaram da caça pelos verdes prados que pertenceram a nossos avós antes de os rostos-pálidos da língua partida atravessarem o Grande Lago Salgado. Esses rostos-pálidos falam com duas línguas, mas o Grande Chefe Pai Odd defendeu os índios e ensinou-lhes o segredo de lutarem pelos seus direitos de seres humanos. Pai Odd era também um grande feiticeiro e veio ao meu «wigwan» para curar o meu filho «Pé de Búfalo». Por isso, quando tu avisares, os guerreiros de «Dente de Lobo» montarão os cavalos e os seus gritos de guerra levarão a morte aos inimigos do Grande Chefe Odd. «Dente de Lobo» falou.
Igswon levantou a mão direita pela terceira vez e aceitou o oferecimento do índio.
— O coração do Grande Manitu falou pela boca do meu irmão «Dente de Lobo». A amizade dos meus irmãos «navajos» será sempre o refúgio do guerreiro rosto--pálido.
Dito isto, Igswon levantou-se e os índios fizeram outro tanto. Os quatro ergueram as mãos, com as palmas para a frente, e o jovem proferiu as palavras de ritual:
— Que o Grande Manitu guie sempre as ações de meus irmãos «navajos» e dê prosperidade ao seu povo.
— Aos seus desígnios nos entregamos todos, Grande Chefe Odd.
Os três chefes índios montaram nos cavalos e, depois de saudarem novamente Igswon, partiram a galope em direção à parede norte de Vale Verde. Odd ficou à porta do «jogan», contemplando as briosas montadas dos amigos de pele-vermelha, até desaparecerem no desfiladeiro. Depois encarou «Unha Curta».
— Irás a casa de Yaim Swan e mantém-te junto de Agar para a defenderes. Tudo o que souberes, comunica-mo. Confio em ti, «Unha Curta». Podes ir.
Sem proferir palavra, o «mokis» deixou a sua posição de absoluta imobilidade e dirigiu-se para o cavalo. Montou com um salto ágil sobre a manta que lhe servia de sela e partiu velozmente para a entrada do Vale Verde. Minutos depois desaparecia das vistas.
Igswon penetrou de novo no «jogan» e estendeu-se no monte de peles que servia de leito a «Unha Curta». A guerra tinha principiado, e a ele, Igswon Odd, competia atacar e fazer justiça. Para já, sabia contar plenamente com a amizade e o auxílio de todos os guerreiros índios do Deserto Pintalo. Na manhã seguinte, começaria a mostrar a Ewig que género de inimigo era Igswon Odd, o mórmon que foi educado pelos índios «navajos».
(1) Espécie de choca que os índios constroem no Utá com tijolos vermelhos.
(2) (1) os «mokis» são considerados tribo inferior.
(2) (1) os «mokis» são considerados tribo inferior.
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