quinta-feira, 5 de abril de 2018

POL157.05 Valente, honrado e... bandido

Os cavaleiros camaradas de Igswon Odd alcançaram dentro de pouco tempo as carroças de Egor e das dez outras famílias que tinham abandonado Flown Rock. Uma vez chegados ao cruzamento para Salt Lake, esperaram cerca de meia hora, a fim de se reunirem a eles os animais trazidos da casa do falecido Yaim Swan, cuja mulher e filhos fugiam à vingança de Ewig.
Quando Matt chegou, reiniciaram a marcha, agora lenta, por causa do passo menos vigoroso das mulas que puxavam os carros. O sol concluíra o seu reinado de luz naquele dia. A noite alargava-se nos prados. Muito em breve as estrelas dominariam a abóbada celeste.
O ar vindo das montanhas do Norte já era fresco. O firmamento apresentava uma estranha cor violácea. Os habitantes de Utá sabiam o que significava isto: na manhã seguinte, os altos picos das Rochosas mostrar-se--iam já vestidos de branco.
Aquele ano o Inverno tardava a aparecer. Agora começava o tempo pior para os mórmones. O frio e a neve principiariam a bater os montes e as planícies com o acompanhamento de ventaneira. As pessoas só saíam de casa quando era indispensável. E muitos dos que saíam não voltavam mais, perdidos na neve ou despenhados em barrancos.
Também para os rebeldes da montanha o Inverno representava um grande perigo. Estes pensamentos já preocupavam Igswon Odd quando agora caminhava à cabeça daquela caravana. Sobre ele recaíam as responsabilidades, visto que tantas vezes aconselhara os outros a abandonar a povoação.
Precisava, portanto, de atuar depressa e com eficácia. Ainda faria um novo apelo aos que ficavam em Flown Rock, para se salvarem os que quisessem. Depois, lançaria as hostes dos três chefes dos índios contra a povoação e ninguém talvez saísse vivo dessa empresa. Com frequência lhe vinha à mente um dito do pobre pastor Woim: «Quando num lar há um empestado, primeiro tiram-se os não contagiados, mas depois queima-se a casa e o fogo purifica tudo». Ele, Igswon Odd, chefe dos proscritos da montanha, faria o mesmo: primeiro afastaria da povoação quantos pudesse, depois acabaria com os restantes para desaparecer o perigo de contágio e Flown Rock se tornar de novo habitável.
Ynn que seguia junto dele, parou de repente e estendeu o braço para lhe indicar una cavaleiro detido a umas duzentas e tal jardas adiante, no caminho.
—Olha para ali!
Igswon assim o fez.
Atendendo à distância, era impossível perceber claramente as feições do cavaleiro, mas o jovem Odd franziu a testa. Não gostava daquilo. O indivíduo mantinha-se hirto, na sela, com o cavalo parado no meio do caminho, como esperando a chegada da caravana.
— Aposto que está à nossa espera — disse Ynn.
— E o pior é que não me agrada o seu aspeto. Se fosse amigo viria ao nosso encontro.
— O animal está muito quieto. Dir-se-ia que fez uma longa caminhada para chegar até aqui.
— Também já o tinha pensado.
— Vejamos quem é e o que quer.
Avançaram os dois, ordenando aos da caravana que parassem. Os cavalos, a trote, chegaram finalmente junto do cavaleiro, que não fez movimento algum, embora mantivesse as mãos muito perto das coronhas dos revólveres.
— Esperas alguém? — perguntou Igswon.
— Por ti, precisamente, pois suponho seres Isgwon Odd, não é verdade?
— Sou, efetivamente. Que queres?
— Trago um recado de que não irás gostar muito. Os homens que conseguiram fugir da povoação quando vocês a atacaram encontraram-se com o chefe Ewig não muito longe daqui. O chefe Ewig manda-me para te dizer que, no caso de te entregares, deixará livre a tua noiva, Agar. De outro modo nunca mais a tornarás a ver.
— Agar? Mentes, cão! Agar está em bom recato e não será o cobarde Ewig quem lhe possa cravar o dente.
— Se assim o julgas, tanto pior para ela, que está de facto em poder do chefe de Flown Rock e bem deves saber que ele não faz duas vezes a mesma proposta.
*
Quando Agar saiu da casa de Ewig, deixando Igswon e Ynn a cobrirem-lhe a retirada, chegou, correndo, à porta do pátio. A própria emoção da fuga a coibiu de ver os cavaleiros que nesse momento apareciam pelo outro lado da rua e vinham em direção a ela. Abriu os olhos com espanto ao dar por já a cercarem e mais ainda quando um deles a agarrou.
— Não corras tanto, rapariga! Repara que tens aqui uma corte de admiradores.
— Andam aos tiros lá dentro, Whosk! — assinalou um outro dos bandidos.
— Assaltaram a casa do chefe Ewig! — supôs um terceiro, em voz alta, e com todo o acerto.
— Agora compreendo! — murmurou o chamado Whosk. — Esses tipos chegaram até lá e conseguiram libertar a pomba. Pois eu lhes juro que nada ganharão com isso! Encarrega-te dela, Bucky. Segue em direção a Provo. Encontrarás o chefe no caminho. Se assim for, esperem depois por nós na Passagem do Vento.
— Está bem, Whosk — e depois, voltando-se para Agar: — Vamos dar um passeio, beleza.
Amarrou as mãos de Agar atrás das costas e obrigou-a a subir para a sela, amarrando-a aí também. E enquanto os outros corriam para a casa do chefe, ele deu de esporas ao cavalo em direção ao Sul.
Agar estava tremendamente assustada. Olhava para um lado e outro do caminho que percorriam com velocidade fantástica e mal dava conta dos acidentes de terreno que iam deixando para trás. A duas milhas da povoação, o cavaleiro pôs o animal a passo e deixou-o continuar assim. Ainda percorreram várias milhas mais, antes de o sol começar a descer para oeste dos montes. Dal a pouco, tudo se tingiria com as cores do crepúsculo vespertino.
Ia o pistoleiro desviar-se do caminho principal para tomar o da Passagem do Vento, quando unia nuvem de pó à distância lhe anunciou o avanço de numeroso grupo de cavaleiros.
Ocultou-se a um lado, entre mato, para passar despercebido no caso de serem inimigos. Decorreram minutos. Ao reconhecê-los, voltou ao caminho. Eram Ewig e os homens que o tinham acompanhado a Provo. Uma vez frente a frente, Bucky explicou em súmula o que sucedera:
—Os proscritos estão a atacar a povoação e meteram-se na tua casa, chefe Ewig. Whosk encarregou-me de fugir com a rapariga.
—Fizeram bem, Bucky Allyson. Ainda continua o combate?
— Quando eu saí de lá, a coisa fervia. Mas já deve ter acabado tudo. Os rebeldes eram em número excessivo para os poucos homens que lá tínhamos.
— E como correu o caso de Yaim Swan?
—Já to deve ter contado Asmiel. Estávamos a vencer, quando chegaram os homens de Igswon e nos atacaram. Éramos vinte e eles uns quarenta incluindo os da casa. Tivemos de fugir a unha de cavalo. Perseguiram-nos até à povoação.
— Bom, agora vamos ensinar esses bandidos, mostrando-lhes do que é capaz um homem como Stephen Ewig. A galope!
A coluna partiu, erguendo nuvens de pó. Agar continuava na mesma situação, mantida pelo braço de Bucky. De vez em quando os olhos do cacique fixavam-se nela com expressão soez, de luxúria, e a jovem sentia o sangue gelar-se-lhe nas veias ao compreender até onde seria capaz de chegar aquele monstro sem consciência que a tinha em seu poder.
Acabava o sol de se esconder além das montanhas, quando três cavaleiros avançaram velozmente pelo caminho que vinha da parte alta da povoação. Os olhos de falcão de Bucky reconheceram imediatamente os que se aproximavam.
— É Whosk!
— Isso quer dizer que os proscritos venceram a resistência dos que se encontravam em casa.
Os três cavaleiros demoraram escassos segundos a chegarem junto deles. O que vinha à cabeça parou habilmente, com acrobacia da montada, a curta distância do chefe.
— Que se passou? — quis saber Ewig, falando com os dentes cerrados.
—Igswon Odd recebeu grandes reforços e tivemos de abandonar a povoação. Só nós os três escapámos.
— Os outros... morreram todos?
—Todos, chefe. E os proscritos, a estas horas, já estarão a caminho da montanha.
—Malditos! E vocês não se envergonham de permitir que esses maltrapilhos os tenham desalojado e vencido? Julguei que tinha homens sob as minhas ordens, mas vejo que...
— Não nos culpes demasiado, chefe — interrompeu-o Bucky, geladamente, com voz dura. — Que terias feito no nosso lugar?
Todos ficaram a olhar para Bucky, boquiabertos, mal acreditando no que tinham acabado de ouvir. E todos esperavam que, perante aquela audaz resposta, Ewig reagisse de acordo com o seu temperamento arrebatado. Mas não foi isso o que sucedeu. O cacique limitou-se a olhar intensamente para o ruivo, como se meditasse no que ele acabava de dizer.
— Não sei o que teria feito nesse caso, Bucky — replicou, por fim, Stephen Ewig, abanando lentamente a cabeça. — Mas a verdade é que vocês o fizeram pessimamente. Enfim, não falemos nisso, que já não tem remédio.
—Poderíamos esperar os proscritos na passagem dos vales velhos — sugeriu outro dos pistoleiros.
— Tens razão. No entanto... — voltou-se para um dos seus homens: — Tu, vai à povoação e vê se algum ainda se encontra em condições de combater. Depressa!
O indigitado apressou-se a partir, sem a menor objeção. Ewig tornou a dirigir-se a Bucky Allyson.
— Traz cá essa prenda, Bucky. Depois, corre o mais que possas e vai esperar os proscritos perto da montanha. Diz a Igswon que, se ele se entregar, a noiva não sofrerá nada. No caso contrário... que nunca mais a verá.
— E depois?
— Esperamos por ti no Desfiladeiro do Forno.
Bucky Allyson, o mais valente e hábil dos mercenários que militavam nas fileiras do cacique, o homem por quem o próprio Ewig sentia algo de parecido com o medo, levou a mão à aba do chapéu, E respondeu:
— Está bem, chefe. Depois veremos em que dá tudo isto.
Sem esperar comentário algum da parte do cacique, afastou-se do grupo, esporeou o cavalo e dirigiu-se para o maciço montanhoso do Sul. Tinha de se apressar para conseguir intercepta a passagem dos que iam para o refúgio. No caso contrário, farto como estava de aturar as impertinências do chefe, mudaria de rumo e não voltaria mais a Flown Rock. Ewig costumava liquidar os que não seguiam à letra as suas ordens e Bucky não era dos que se deixavam dominar por outros. Mas também não lhe convinha opor-se abertamente ao chefe. Este contava com muitos sabujos que o ajudariam para lhe caírem nas boas graças.
Nesse entretanto, o chefe dos mórmones de Flown Rock dava ordens aos seus homens para que se apressassem, a fim de chegarem ao Canhão Cego antes de ser completamente noite.
*
Bucky Allyson ia dar de esporas à montada para se retirar, uma vez cumprido o seu encargo, quando a voz seca de Igswon o deteve:
— Se fazes o menor movimento, enfio-te uma bala no corpo. Levanta as mãos! O pistoleiro, obedecendo, fitou-o sem que no seu rosto se evidenciasse o mínimo sintoma de medo.
— Previno-te de que se eu não chegar antes da meia--noite à presença de Ewig, a tua noiva não terá salvação possível.
— Primeiro conversaremos a esse respeito, sem pressas — replicou Igswon, crente de que tivera uma ideia luminosa. — Apeia-te para falarmos.
Bucky obedeceu sem recalcitrar. Sabia não lhe convir outro procedimento. De resto, calibrara a têmpora de Igswon numa simples olhadela e compreendeu que era homem para lhe meter uma bala no corpo quando o entendesse. Ynn, que também desmontara, desarmou Bucky Allyson.
— Amarra-lhe as mãos com eficácia, Ynn... Isso mesmo... Leva-o agora para o outro lado das rochas. Ali estaremos melhor para conversar, sem que ninguém nos ouça ou nos estorve.
Enquanto Ynn levava o ruivo para o local indicado, Igswon foi ter com os da caravana e deu ordem a Matt para que prosseguissem viagem. Siem e os restantes cavaleiros jovens ficariam por ali, vigiando.
Matt obedeceu, contra vontade, e retomou a marcha com os carros. Igswon saiu do carro de Egor com um pequeno embrulho de papel na mão e, depois de a caravana se afastar, montou de novo a cavalo.
— Espera aqui enquanto interrogo o prisioneiro —disse a Siem Woim. — Tu, Usim, meu caro, vem comigo.
Os dois dirigiram-se para onde estava Ynn com o bandido. Bucky não perdera um ápice da calma que evidenciara desde o princípio. Dir-se-ia, pelo seu à-vontade, que se encontrava entre amigos. No íntimo, porém, não albergava tranquilidade nenhuma e não achava de bom augúrio o sorriso que entreabria os lábios de Igswon.
O chefe dos proscritos sentou-se em frente do prisioneiro e fitou-o diretamente nos olhos. Quase não moveu os lábios ao falar.
— Ewig mandou-te dar-me esse recado, não é verdade?
— Sim.
— Mas vocês não contaram que eu pudesse reagir de maneira diferente do que esperavam, aprisionando-te e obrigando-te a falar. Deves compreender que perdeste a partida. Responde, portanto, às perguntas que te vou fazer. Onde está agora Ewig?
O semblante de Bucky endureceu:
— Sou um bandido, eu sei. Mas nunca fui cobarde nem traidor. Não direi nada, nem que veja a morte diante de mim.
Igswon começou a fazer um cigarro, serenamente.
— Lamento-o por ti, mas preciso de saber urgentemente onde está esse cão de Ewig. E só tu mo podes dizer.
— Então não o saberás.
— Veremos. Se me enganares, sou capaz de te amarrar no mais alto dos picos para te devorarem a pouco e pouco os abutres.
O rosto de Bucky permaneceu impassível.
— Será morte nada agradável, é certo. Mas de alguma coisa se tem de morrer.
— Pela última vez: queres dizer-me onde está Ewig esperando por ti?
—Não.
— Bom... Recordo-me de vários processos índios capazes de obrigarem a falar pelos cotovelos uma múmia egípcia. Principiaremos por um deles e veremos se resulta ou não.
Ouvindo estas palavras, o bandido enrugou a testa, mas não respondeu. Seguiu os movimentos de Igswon. Viu que ele desembainhava uma faca de mato, cuja larga e acerada lâmina brilhou ao luar. Depois, o jovem Odd aproximou-se do preso e rasgou-lhe a camisa, pondo descoberto o peito e os ombros.
— Ainda estás atempo...
— Podes começar quando quiseres — replicou Buci sem se alterar.
—Desde que preferes assim...
Movendo o braço rapidamente, arrancou um pedaço
de pele ao musculoso ombro de Bucky, com a ponta da faca. O bandido cerrou os dentes para dominar a dor, mas não se queixou.
— Não te rendes? Pela minha parte, posso continuar a fazer-te cócegas, se assim o queres — e desta vez a faca rasgou a pele do peito.
Sempre com os dentes cerrados e uma sombra de palidez no rosto, o bandido aguentou a dor provocada pela rápida ou lenta passagem da lâmina a levar-lhe a pele. Grossas gotas de suor começaram a escorrer da testa e a causar ardência ao introduzirem-se nos olhos.
Igswon continuava a perguntar se ele ainda não cedia, cada vez que a faca marcava nova linha sangrenta no peito, nos ombros, nos braços. E Bucky mantinha-se calado, numa demonstração de coragem não habitual em indivíduos de raça branca.
Mesmo contra a sua vontade, Igswon ia prosseguindo no labor de martirizar o prisioneiro. Precisava de saber onde se encontrava Ewig com a sua gente, para tentar a libertação da noiva. Admirava a coragem de Bucky Allyson, uma coragem fora do comum, mas não podia nem devia condoer-se, inclinando-se para a clemência. Exigia-o a vida de Agar e de muitos inocentes que nele confiavam.
— És duro, não há dúvida — disse Igswon, limpando a faca e metendo-a na bainha. — Terei de recorrer a outros processos mais trágicos. Ainda estás a tempo de te livrares de um dos piores suplícios que há.
A voz do prisioneiro, embora mais rouca, soou ainda com firmeza:
— Podes matar-me, Igswon Odd. Mas não conseguirás que Bucky Allyson abra a boca para atraiçoar os seus companheiros, mesmo reconhecendo que eles são uns canalhas.
—És teimoso. Mas eu quero saber o que me interessa. Até agora só empreguei um suplício para crianças... Sabes o que te espera? — prosseguiu Igswon, procurando impressioná-lo: — Não, já vejo que não. Se depois deste novo tormento não cederes, terei de te aplicar fogo nos olhos.
Bucky pôs-se a engolir saliva, mas optou por se calar. Mostraria ao chefe dos proscritos como era Bucky Allyson, filho de um honrado granjeiro de Missuri. Ardiam-lhe os olhos, mas ainda eram piores as dores provocadas pela ação do ar na pele ferida. Viu Igswon tirar do bolso um pequeno volume, o que trouxera do carro de Egor. Que novo martírio estaria na mente daquele homem? Acendeu Igswon outro cigarro e rasgou o embrulho, mostrando o seu conteúdo.
— Já experimentaste o efeito de uma faca a passar na carne. Mas talvez desconheças o do sal a cair nos ferimentos.
O rosto de Bucky Allyson tornou a empalidecer. Tinha ouvido falar desse bárbaro suplício, capaz de enlouquecer o mais resistente. Igswon pegou num punhado de sal e esfregou-o no ensanguentado peito de Bucky.
Depois retrocedeu, a analisar o efeito da sua ação. Bucky não sentiu nada de especial a princípio, mas depois uma dor atroz foi-se alastrando até ao cérebro, a torturá-lo com vislumbres de loucura. Involuntariamente, saíam-lhe da boca autênticos rugidos, mas nem uma só palavra que pudesse interpretar-se como sintoma de rendição, enquanto o seu musculoso corpo se contorcia como o de uma cobra em paroxismos dolorosos.
A cena era de crueldade alucinante. Quantos a presenciavam, com exceção de Igswon, sentiam-se enervados, tontos.
E chegou o momento em que o próprio chefe dos rebeldes, o homem criado entre os «navajos», sentiu fraquejar a sua impassibilidade. A tortura que estava a sofrer aquele homem excedia a capacidade natural de resistência de qualquer ser humano.
Minutos depois, o prisioneiro deixou de contorcer-se e ficou de peito para o ar, sem se mexer, como se o organismo tivesse adquirido insensibilidade. Olhou para Igswon e os seus lábios desenharam uma espécie de sorriso.
— Podes continuar, Igswon Odd — disse apenas.
Igswon Odd não continuou. E fez o que ninguém esperava. Tirou novamente a faca da bainha e cortou as cordas que amarravam Bucky. Depois, ordenou a um dos companheiros:
— Liam, dá-me o teu cantil.
Sem uma palavra, Liam obedeceu à ordem do chefe dos proscritos, que pegou no cantil e derramou a água sobre o peito do prisioneiro.
Era o imprevisto, fora da lógica. Igswon Odd, o homem duro, aliviava o sofrimento de um inimigo, do melhor dos pistoleiros ao serviço do tirano.
Bucky Allyson também não compreendia. Estava Igswon a lavar-lhe as feridas do peito para depois lhe aplicar outro castigo ainda pior?
O semblante do chefe dos proscritos permanecia imperscrutável. Quando acabou de encharcar o peito de Bucky e o viu respirar mais normalmente, voltou-se de novo para o dono do cantil.
— Liam, entrega a este homem as armas que se lhe tiraram.
— Quê?
—Não ouviste? Disse-te que entregasses as armas ao prisioneiro.
Obedeceu Liam. Bucky tomou conta do cinto com os dois revólveres e afivelou-o ao corpo. Olhou diretamente para Igswon.
— Posso saber o que pretendes com isto?
— Deixar que vás embora — retorquiu o jovem Odd, imperturbável. — Monta no teu cavalo e parte imediatamente.
Bucky Allyson não se moveu.
— Não compreendo — limitou-se a explicar.
O chefe dos rebeldes encarou o pistoleiro de tal modo que este, apesar de valente, sentiu um calafrio no corpo.
— Talvez nunca me possas compreender. Desde muito criança, tenho convivido com os índios «navajos» e aprendi a respeitar a coragem, o valor dos inimigos, por muito inimigos que sejam. Nada mais. És valente. Retira-te. Se dentro de ti existe ainda um resquício de dignidade, galoparás decerto para a fronteira e afastar-te-ás definitivamente de um ser abjeto como é Stephen Ewing, que não merece ter ao seu serviço um homem como tu.
A reação de Bucky Allyson, através das palavras que logo pronunciou, também foi inesperada:
— Igswon Odd, vou dizer-te onde está a tua noiva Agar. Vou dizer-te o que queres saber. –
---Ninguém te obriga a fazê-lo. Nem to pede sequer.
— Precisamente por isso. Ewig está acampado no Desfiladeiro do Forno. Tem com ele quarenta homens ou mais.
— Não te consideras ao serviço dele?
— Evidentemente que não.
— Percebo.
— Têm lá prisioneira a rapariga. Nada mais posso dizer-te, exceto que precisarás de lutar como um gigante para a salvar.
— Já contava com isso. E por isso mesmo não podia entregar-me como me mandou dizer por teu intermédio. Tenho a certeza de que não me estás a enganar com essa informação, porque um homem que suportou sofrimentos dolorosíssimos como tu só merece o qualificativo de valente. Pode ter muitos defeitos, mas não o de traiçoeiro.
Bucky Allyson correspondeu com um sorriso que devia ser de agradecimento. Sem querer, recordou-se dos dias da sua adolescência numa granja de Missuri. Os pais morreram num acidente ferroviário. Ele, depois de espatifar o património estupidamente, começou a rolar pela encosta do mal, aviltando a alma até o máximo, somando delitos e mais delitos na adormecida consciência. Mas era um valente. E o nobre gesto de Igswon calara fundo nos rincões ainda não apodrecidos do seu espirito. Aquele homem podia ter continuado a torturá-lo, a queimar-lhe os olhos. Não o fez. Devia pagar-lhe na mesma moeda.
— Agradeço as tuas palavras, Igswon Odd — respondeu, após segundos de silêncio. — Tu ainda és mais valente e nobre. Só me resta aconselhar-te prudência. Para entrar no Desfiladeiro do Forno tens de permitir que te vejam. E logo te reconhecerão. Agar, morrerá antes que possas chegar até ela.
Igswon compreendeu que Bucky tinha razão. O acesso ao Desfiladeiro do Forno fazia-se por uma caverna que apenas dois homens bastavam para defender de um exército. Os muros do desfiladeiro, cortados a pique, altíssimos, eram inacessíveis. Igswon, voltando costas ao pistoleiro, ordenou, com os dentes cerrados:
— Preparem-se! Vamos partir para o Desfiladeiro do Forno.
— Vamos, Igswon! — apoiou Ynn, montando a cavalo e afastando-se imediatamente.
—Usim e Liam, vão com ele.
Obedeceram sem delongas. Então, Igswon voltou a encarar com Bucky.
— Espero que cumpras as tuas novas intenções. Ainda estás a tempo de enveredar por bom caminho. Vejo que não és como eles.
— Talvez tenhas razão. Mas... não te arrependes de me ter dado a liberdade?
— Nunca me arrependo do que faço. Bucky Allyson dirigiu-se para o local onde estava o cavalo.
De repente, porém, voltou-se para Igswon, com a mão estendida.
— Se entenderes que a mão de Bucky Allyson ainda é digna de ser apertada por um verdadeiro homem... aqui a tens. Não te guardo rancor.
Os dois homens apertaram as mãos.
— Adeus, Bucky.
— Adeus... não. Até breve!
O pistoleiro montou a cavalo e tomou o rumo de Flown Rock. Duas milhas depois, voltou, à direita e enveredou para a montanha, a caminho do Desfiladeiro do Forno. Igswon, por sua vez, pôs-se à cabeça dos seus homens e todos galoparam para o acampamento de Ewig.
A lua brilhava num céu sereno e a sua luz de prata derramava-se nos prados banhando-os de uma cor em que o verde se tornava acinzentado, plúmbeo. Separava-os razoável distância do local indicado por Bucky Allyson, mas confiaram poder chegar lá antes da meia-noite.
Os cavaleiros corriam velozmente sobre as artemísias. A frente, ia Igswon Odd, vestido de negro, tal como em noites invernosas quando o céu se cobre de nuvens e tudo, até o peito dos mórmones da montanha, se encontra envolvido no mais espantoso negrume.

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