Naquela noite o comboio chegou meia-hora mais tarde do que de costume. Chovia torrencialmente e através da densa cortina de água mal se conseguiam distinguir as luzes amarelecidas dos faróis bruxuleando na solitária estação.
Apenas um passageiro se apeou. Não trazia consigo qualquer espécie de bagagem, pelo que se limitou a levantar a gola da sua samarra de cabedal e a encafuar as mãos nas algibeiras. Seguidamente, sem ligar demasiada importância à água que caía, saltou para o cais e dirigiu-se a passo apressado para a povoação.
Por sorte, Leyton não ficava distante. O homem desviou-se antes de atingir as primeiras casas e tomando por um caminho que mal se distinguia em meio da escuridão, não tardou em chegar em frente de uma casa de aspeto senhorial. Sobre a porta estava colocada uma placa de metal na qual podia ler-se um nome e uma profissão:
Samuel T. Grant, Advogado
O viajante, após subir a meia dúzia de degraus que o separavam da porta de entrada, bateu com os nós dos dedos. Reparou, entretanto, na corrente metálica suspensa do lado direito e puxou. O som argentino de uma campainha soou no interior, perturbando o silêncio da noite. Ouvia-se o ruído de passos e a porta abriu-se. O homem descobriu-se.
— Boas noites, Lucy — cumprimentou. — O senhor juiz Grant, está?
A criada negra pareceu reconhecer o visitante.
— Santo Deus! Mas é o senhor Mac Bride! Faça o favor de entrar. Não o esperávamos antes de amanhã.
Uma voz vinda do andar de cima, perguntou:
— Quem acaba de chegar, Lucy?
O visitante, um jovem de cerca de vinte e cinco anos, alto e de aspeto simpático, levou um dedo aos lábios para impor silêncio. Ouviram-se passos que desciam apressadamente a escada.
— Lucy! — chamou uma voz juvenil de mulher. — Quem tocou a campainha?
Descobriu a presença do jovem no mesmo instante, lançou um grito de alegria e correu ao encontro do recém-chegado.
— Mike! Esperávamos que só chegasses amanhã!
— Estás aborrecida por ter vindo esta noite?
— Acho que foi uma decisão maravilhosa. Mas porque não avisaste?
— Quis fazer-te uma surpresa.
— Já encontraste o papá?
— Não. Acabo de chegar no mesmo instante. Teu pai não está?
— O papá foi a uma reunião. Disse que regressava tarde.
Mike Mac Bride despiu a samarra que escorria água em abundância e deixou-se cair numa poltrona.
— Há catorze horas que venho encerrado no compartimento do comboio. E há umas vinte, aproximadamente, que dirijo a mim mesmo uma pergunta: que pretenderá o juiz Grant, para querer ver-me em Leyton com tanta urgência?
A jovem pôs-se muito séria.
— Não adivinhas?
— Não. Consentiu no nosso casamento?
— Não se trata do nosso casamento. O que pode acontecer é que daí resulte isso mesmo; que ele consinta sem impor quaisquer condições.
— A perspetiva não parece má. A quem é que eu devo esmurrar as ventas?
— Deves saber que o papá se opõe a que continues a envolver-te em barulhos. Diz ele que isso não é uma profissão honrada.
— E não é, isso é bom de ver — disse Mike, sorrindo e exibindo uma dentadura alva e perfeita. — Não faço profissão da luta. Considero-a simplesmente como um desporto ou um jogo de agilidade e valentia.
— Por mim confesso que é coisa que não aprecio. Porque não procuras tu uma atividade mais séria?
— Caçar bandidos, não? Cursar os estudos para continuar a manter a tradição dos Grant? Que foi feito de teu tio Willy? Sabes o que eu ouvi dizer em Graham?
A jovem levou um dedo aos lábios e adquiriu um ar de grande seriedade. Mike franziu o sobrolho, surpreendido.
— O papá também te quer falar acerca do tio Willy. Acho que se estão passando coisas muito graves.
— Por exemplo?
A jovem instalou-se na poltrona que se encontrava em frente de Mike, fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás.
— Não estou autorizada a falar-te no assunto. O papá dir-te-á aquilo que entender.
Rosália Grant era uma encantadora rapariguinha de vinte e dois anos. Era dona de uma maravilhosa cabeleira de tons acobreados e possuía uns olhos de um verde profundo como o das águas do mar.
— Suponho que teu pai me não fez percorrer mais de um cento de quilómetros para me pedir conselho acerca das loucuras do teu tio Willy.
— O papá precisa muito de ti. Tem andado muito preocupado e, pela primeira vez na vida, sente-se na necessidade de confiar em alguém que o não atraiçoe.
—E sou eu próprio essa pessoa?
— Estou convencida de que assim é. Muito me desgostaria que assim não fosse.
— Sinto-me apenas intrigado — esclareceu Mike. —Embora me não agrade a perspetiva de utilizar os punhos em qualquer coisa que não seja puro desporto.
— Talvez haja necessidade de ir mais além do que a simples utilização dos punhos.
— O quê? Os pés também? — comentou Mike com ironia.
— O revólver.
O jovem enrugou a testa e ficou meio pensativo.
— Admiti imediatamente essa hipótese, no momento em que recebi o telegrama de teu pai. Disse de mim para mim que era porque a sua posição política estava em jogo. Ter-me-ia eu enganado?
— Confesso que não gosto de que tomes meu pai como uma pessoa egoísta.
— Nem por sombras. Compreendo que se trata de um homem sensato que viu chegado o momento de pôr de lado as delicadezas para aplicar procedimentos mais convincentes. Lenox terá alguma coisa a ver com isto?
A jovem não disse que sim, nem disse que não.
— Em Lenox passam-se coisas muito graves — disse.
dos punhos.
— Faço ideia. As notícias não chegam apenas a Leyton; abrangem distâncias muito maiores. Quem sabe se o próprio governador estará interessado no que ali se passa!
Um ruído vindo do exterior fez-se ouvir naquele mesmo instante. Lucy apressou-se a abrir a porta para dar entrada a um homem dos seus cinquenta anos, envolto numa capa adornada com uma peliça. Tirou o chapéu e entregou a capa à criada.
— O senhor Mac Bride chegou há pouco, senhor —disse a criada.
Sam T. Grant não devia esperar semelhante notícia porque a expressão do seu rosto se transformou por completo.
— Mike já aqui se encontra? — perguntou. — Onde está ele?
Mike tinha-se levantado da cadeira e assomou-se à porta do pequeno salão.
— Boas noites, juiz Grant.
Samuel T. Grant avançou para o mancebo com a mão estendida, deixando transparecer a satisfação que lhe dava a presença de Mike em sua casa.
— Não podes fazer ideia da alegria que me dás por ver que te apressaste a acudir à minha chamada, Mike. Confesso que não esperava que viesses antes da data prevista.
— Deduzi, através da sua mensagem, que alguma coisa de importante o traria preocupado.
— E assim é, Mike — comentou ele, acompanhando o mancebo até ao salão. — Tão importante que esta mesma noite fui obrigado, devido a uma carta do governador, a convocar uma reunião dos elementos mais representativos de Leyton. E tu, sentes-te muito cansado?
— Neste instante sinto-me na minha melhor forma—respondeu Mike, sorrindo.
— Isso é ótimo. Importas-te de nos deixar sozinhos por um momento? — disse o juiz, dirigindo-se a sua filha que contemplava muito calada o encontro dos dois homens.
— Aproveito para ir tratar de pôr a mesa para o jantar.
A jovem afastou-se e os dois homens ficaram sós. O juiz pegou numa caixa de charutos e estendeu-a a Mike que recusou com a maior delicadeza, após o que se deixou cair numa poltrona, soltando um profundo suspiro.
— Dentro de trinta dias proceder-se-á às eleições, Mike — disse o juiz. — Deves calcular o interesse que eu tenho em ser eleito.
— Faço ideia.
— As coisas, porém, chegaram a um tal ponto que, a não se encontrar qualquer solução, a minha candidatura estará seriamente comprometida. As coisas chegaram, em Lenox, a extremos inconcebíveis.
— O xerife Welley não foi mais feliz que os outros?
— Welley foi encontrado há três dias cosido a punhaladas.
As feições de Mike contraíram-se numa expressão de extrema seriedade.
— Isso é um caso muito grave — comentou.
— Deram-lhe cabo da vida, como já tinham feito a Vim Clough, a Martin e a Burke.
-- E a respeito do seu irmão? Ele não tinha ido a Lenox a fim de conseguir solucionar a situação?
— Há dois meses que não tenho quaisquer notícias acerca de Willy.
— Quer isso então dizer...
— Não — respondeu o juiz Grant. — Sei, através de vias particulares, que meu irmão se encontra vivo. O que há de grave é que tem sido visto na companhia de uma mulher. Uma mulher diabólica, de uma extraordinária formosura.
— Quem é ela?
— Sara Blitte.
— A irmã de Blitte? O cabecilha de...?
— Precisamente. A irmã de Doug Blitte. Receio muito que Willy tenha perdido a cabeça por essa mulher.
Mike guardou silêncio. Compreendia a apurada situação em que o juiz se encontrava.
— Em Lenox não há possibilidade de impor o respeito à Lei. E o pior de tudo é que não há ninguém que se disponha a fazê-lo. Um grupo de desordeiros traz aterrorizadas todas as pessoas honradas da povoação. Os atropelos estão na ordem do dia e todo aquele que se lembre de protestar é imediatamente obrigado a calar-se.
Mike recostou-se mais comodamente no cadeirão.
— Parece-me adivinhar o que pretende propor-me, juiz Grant.
— Antes de to dar a conhecer, quero pôr-te ao corrente dos riscos que podes vir a correr.
— Não acho que seja necessário — interveio Mike. — Sabe perfeitamente quais são os meus desejos. Isso mesmo lhe propus eu aqui há uns tempos e o senhor não concordou.
— Sempre esperei não ter de recorrer a ti, mas confesso que não me resta outra solução.
— Que espécie de atribuições me serão concedidas, na hipótese de ir a Lenox? — perguntou Mike, interessado.
— Todas aquelas de que necessitares.
— Está bem. Partirei para lá, amanhã mesmo.
— Não é tudo ainda, Mike — disse Grant, com ar preocupado. — Se me decidi a recorrer à tua pessoa foi, precisamente, porque posso confiar na tua discrição. Há, porém, outro motivo importante que se relaciona com Willy.
— Já suspeitava disso. Pretende saber até que ponto chegou a atividade de seu irmão.
— Exatamente. Tudo o que Willy faça em Lenox pode ser-me prejudicial, tal como acontece com Blitte e os homens do seu grupo. Ninguém, por enquanto, sabe que eu enviei ali meu próprio irmão com o fim de ver se conseguia encontrar uma solução para os males que assolam aquela comarca. Duvido muito, aliás, que seja possível guardar este segredo por muito tempo. Moore deve andar já farejando para conseguir tirar disso o melhor partido, a fim de dispor de um argumento decisivo contra mim, nas próximas eleições.
— Procuraremos conseguir que Moore não tire qualquer proveito das ameaças de Willy.
— Vai ser um pouco difícil, mas quero convencer-me da que isso não será de todo impossível para ti. E, já agora, uma última advertência: sabes, porventura, qual a cartada que vais jogar, Mike?
— Suponho que será a própria pele.
— A pele... e também o coração de Rosália.
— Procurarei salvar uma coisa e conquistar a outra respondeu Mike com um sorriso.
Grant estendeu a mão ao mancebo que lha apertou.
— Obrigado — disse emocionado. — Depois falaremos dos diversos pormenores.
Naquele momento abriu-se a porta e a alegre voz de Rosália ecoou pelo compartimento. Os dois homens dirigiram-se para a rapariga. Rosália enfiou os braços nos dos dois homens e conduziu-os para a sala de jantar, onde Lucy se preparava para servir a refeição.
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