segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

CLT024.02 Sangue sob o Sol

Aquele era o primeiro Verão de paz no sudoeste dos Estados Unidos. Desde Texas a Utah, pela primeira vez em quatro anos, o sol derramava-se generosamente sobre as terras pacíficas. E fazia-o tão alegremente, que as terras, os rebanhos e os homens se secavam de calor.
Uma poeira seca e asfixiante cobria as antigas rotas dos exércitos, por onde agora cavalgavam Rody e seu filho. Era o primeiro Verão que presenciava a união de todo o país depois da vitória dos exércitos do Norte sobre os do Sul.

—Conservas ainda o teu uniforme de capitão? -- perguntou Milton a seu pai.
Galopavam para o norte, sempre para o norte, deixando nas suas costas uma nuvem de poeira onde parecia concentrar-se todo o calor do sol.
— Não conservo já nada, filho. Só os meus revólveres.
— Para onde vamos agora?
— Vamos visitar a sepultura da tua mãe.


Um silêncio pesado, quase hostil, fez-se entre os dois. Os cavalos, afogados pelo seu próprio suor, já não obedeciam ao estímulo das esporas e marchavam a trote, andando angustiosamente. As suas línguas secas caíam fora da boca. «Temos de encontrar água», pensou Rody.
Oito milhas ao norte tropeçaram com uma miserável povoação feita de casas de cana e madeira ao redor da posta da diligência. Um poço elevava-se no meio da praça. Rody tirou água e deixou beber primeiro os cavalos. Depois atirou-lhes dois cubos do fresco líquido sobre as suas patas e o lombo. Só depois disto beberam ele e o seu filho. Um velho mestiço com cara de mocho aproximou-se deles.
— Vão para muito longe, amigos? — perguntou com uma voz calma.
—Porquê? Que lhe importa?
 O velho lançou uma risada.
—Há muitos saqueadores por aqui, companheiro, e não temos sheriff. A gente de bem pergunta antes de atuar.
Rody Carey sorriu amigavelmente.
—Vamos para o norte, amigo. Pensamos estabelecer--nos ali. Nesta grande cidade não permaneceremos mais do que dez minutos.
O velho afastou-se grunhindo. Vestia de negro, era cambado e parecia uma barata debaixo do sol.
— Doem-te as pernas, Milton?
— Não, pai; pode montar outra vez.
— Então vamos. Há que deixar muita terra entre nós e Golden Hill.
Empreenderam o trote novamente. A Milton doía-lhe a ferida a cada movimento o que, segundo seu pai, era um bom sinal. Os cavalos, mais frescos, tinham agora ganas de galopar, mas Rody não lho permitiu para que se conservassem em boa forma o maior tempo possível.
Passou uma hora, durante a qual não trocaram apenas mais que monossílabos. Rody fixava-se atentamente nos sinais do caminho e nas marcas das reses que encontrava pela sua passagem. Uma pequena ruga partia em dois a sua testa.
— Esporeia o teu cavalo, Milton — disse de repente a seu filho, sem olhá-lo. — Quero que nos afastemos depressa daqui.
—Porquê? Que se passa?
— Viram-nos demasiado bem daquela povoação. E agora acabo de comprovar que estas terras pertencem ao mais novo dos três irmãos, o único atualmente vivo. Chama-se Brakam.
Pela noite, acenderam uma pequena fogueira na planície.
—Dorme tu, Milton —disse Rody. —Dentro de duas horas despertar-te-ei.
O rapaz acabava de lavar a ferida com água quente, e nesse instante tapava-a de novo. Juntou alguns ramos à pequena fogueira, olhando o seu pai.
— Quanto tempo demoraremos a chegar... à sepultura? — perguntou.
— Dois dias, se os cavalos aguentarem um bom passo. Está à saída do desfiladeiro de Chaquatest.
O jovem Milton guardou silêncio. A seu pai não lhe agradava falar, e ele tinha-se contagiado com as suas maneiras um pouco secas, as suas frases breves e concisas, apesar de que só estavam juntos há oito meses.
«Quando fores velho, serás demasiado belo», tinha--lhe dito repetidas vezes sua tia Katherin, na sua quinta de Missuri. E, com efeito, Milton Carey tinha medo de ser demasiado velho.
—Em que pensas? — perguntou-lhe Rody. — Anda, deita-te.
Os olhos do pequeno tinham uma expressão nostálgica.
— Estava pensando em quando apontei aqueles tipos com o revólver. Nunca pensei que fosse capaz de fazer isso.
O seu pai acariciou-lhe os cabelos com uma expressão compreensiva.
—Nem quero que o sejas, Milton. Um dos meus pesares é que conserves do teu pobre pai a imagem dum pistoleiro. Eu daria as minhas duas mãos para que isso não sucedesse, Milton... Para que fosses o que eu tinha sonhado, quando te ensinava a ler em cima dos meus joelhos.
O rapaz estreitou a mão de seu pai, num sinal muito infantil, corno procurando proteção nele.
— Aconteceram tantas coisas desde então, pai!
— Sim, muitas coisas. Eu, naquele tempo, sempre pensava que tu chegarias a ser advogado nalguma grande cidade do Norte, e que antes dos quarenta anos serias digno de que te elegessem governador. Eu rogava muito a Deus para vê-lo — fez uma pausa. — Durante toda a guerra, estive pedindo a Deus que me desse forças para vê-lo.
—E eu sonhava no teu regresso e em poder abraçar minha mãe.
Com um tom de infinita tristeza, um tom reflexivo que era impróprio dos seus anos, Milton sussurrou:
—Quase que não me recordo como era...
— Tua mãe era a mais formosa mulher do Estado de Missuri. A mais bela, a mais doce e a mais digna. Segundo os outros, tinha o defeito de ser uma índia. Eu lhes respondia que uma índia vale tanto como outra mulher.
—Porque me deixaste na quinta, junto da tia Katherin, pai? Porque não pude ir com vocês quando empreenderam aquela viagem?
—Terias morrido, filho. Aconteceram muitas coisas naqueles meses. Eu queria ir comprar gado ao Texas, e tua mãe insistiu em acompanhar-me. Era intrépida e valente como um homem, filho, e deves sentir-te orgulhoso dela. Durante o regresso, numa povoação chamada Chuaves, um miserável vilório como o que acabamos de atravessar, ficou doente. Não podia trasladá-la num cavalo, e fiz uma corrida de cem milhas em dois dias, até uma cidade onde pudesse alugar um coche cómodo. Mas já não pude regressar. Naqueles dois dias estalou oficialmente a guerra civil, e Chuaves passou a pertencer à Confederação do Sul. Nada pude fazer para resgatar tua mãe. Em todas as partes me receberam a tiro, pois sabia-se que eu era um nortista.
—Tu chegaste facilmente a capitão, pai, graças ao teu valor e à tua pontaria. E que fez ela em todo esse tempo?
— Ao princípio intentou fugir, mas não pôde. Todo aquele território pertencia a um homem sem entranhas chamado Bud Jones, que, com o fim de conservar as suas terras e os seus escravos, organizou um corpo de cavalaria que pudesse defendê-lo. Essa unidade, na qual figuravam como oficiais os irmãos Brakam, fez-se famosa em pouco tempo. Um dos três irmãos, o mais velho, enamorou-se de tua mãe. Quando tenhas mais idade, filho, saberás que, nesta terra, uma mulher necessita ter quem a defenda.
— E... o que aconteceu? — perguntou Milton, com um ligeiro tremor na voz.
—Ela recusou-o uma e cem vezes. Em vista disso, Brakam começou por declará-la mulher duvidosa e, apesar de que só tinha vinte e dois anos, foi obrigada a conduzir carros nos comboios de munições. Era uma índia, e tinha uma facilidade inata para conhecer caminhos. Assim esteve durante três anos. Ao fim da guerra, quando os homens inteligentes já não tinham dúvidas sobre quem seria o vencedor, os Brakam decidiram obter proveito da situação, e converteram-se em salteadores. Muitos oficiais do Sul fizeram o mesmo por aquele tempo. Um dia, Bud Jones teve uma ideia.
— Qual?
—Tratava-se de formar a resistência quando os nortistas tivessem ocupado aquela zona. Para isso era necessário muito dinheiro. Ocultou num carro todo o seu ouro, e enviou com ele tua mãe e seis fanáticos sulistas. Ela conhecia melhor que ninguém os caminhos da montanha. Deviam enterrar a fortuna no lugar mais remoto possível, e regressar com um plano, que lhe entregariam pessoalmente. Mas os Brakam tiveram notícias da expedição.
Milton tremeu ligeiramente. Começava a compreender.
— Prepararam-lhes uma emboscada, mas tua mãe conseguiu levar o carro por caminhos que os Brakam não conheciam. Estes, sem embargo, esperaram para cair sobre eles no regresso. Só ficaram com vida três sulistas, que conseguiram refugiar-se num penhasco inacessível. Tua mãe, que levava o plano, foi com eles.
—Resistiram? --- perguntou Milton, em quem ardia já a febre de um ingénuo entusiasmo. —Três dias, sem comer nem beber, até o último suspiro e a última bala. Aqueles tipos foram valentes. Respeitaram a tua mãe, e protegeram-na até ao último minuto. Ela só ficava com vida quando os Brakam chegaram ao pico. Tinha comido já parte do plano, mas não pôde comer o resto por causa da insuportável sede. Os bandidos apoderaram-se só duma pequena porção: por ela souberam que o ouro estava enterrado à saída do desfiladeiro de Curnwall, onde começa um verdadeiro deserto. Nada mais. Intentaram fazê-la falar, mas nada conseguiram. Queimaram pólvora sobre a sua pele. Mas ela não falou. Não falou porque era índia e porque os odiava. Teve uma horrível morte, filho. Eu soube isso mais tarde por um dos homens que tinham acompanhado os Brakam.
O pequeno Carey fixava o fogo. Brilhavam os seus cabelos loiros e tinha um tremor nos olhos.
—Como o obrigaste a falar?
— Os índios ensinaram-me uns quantos procedimentos.
O rapaz dirigiu a seu pai um olhar cheio de intensidade.
— Depois fui em tua procura — continuou Rody — pois tinha morrido a tia Katherin e a quinta estava em poder dos seus credores. Quis que ficasses no Missuri, mas insististe tanto em acompanhar-me e tinha passado tantos anos sem te ver... Pensei que ao matar os dois Brakam que tinham feito aquela infâmia seria fácil e, com efeito, foi, pois bastaram-me duas balas. Mas, com o dinheiro das suas rapinas, tinham-se convertido em poderosos fazendeiros, e agora «eram alguém». A sua morte foi muito barulhenta e declaram-me um fugitivo. Muito mais quando, uma semana mais tarde, tive de matar um delegado do sheriff que me andava em cima. O resto já o conheces tão bem como eu. Primeiro o refúgio do deserto, e agora a fuga... fiz mal em trazer-te comigo, pequeno.
Foi no dia seguinte que Rody Carey advertiu o primeiro sinal de perigo. Um ginete que cavalgava longe, apenas visível no horizonte, aproximou-se de improviso deles, e a uma distância de quinhentas jardas, voltou costas bruscamente, afastando-se a toda a velocidade, no seu cavalo.
«E uma distância demasiado grande para reconhecer--nos — pensou Carey —, mas não deixa de ser estranho.»
Naquela noite, Milton e ele não acenderam uma fogueira e revezaram-se ininterruptamente na guarda. Só tinham de cruzar uma povoação até chegar ao fim. Rody supôs que, com um pouco de habilidade, poderiam rodeá-la, sem encontros.
Aquela povoação chamava-se Silvershill e parecia, de longe, uma grande tartaruga dormindo debaixo do sol. O terreno até chegar lá era plano, mas havia alguns pequenos penhascos espalhados pela sua superfície.
— Afasta-te de mim, Milton. Iremos por caminhos diferentes.
—E como vamos entrar na povoação? Não entramos, não me agradam os lugares habitados, ainda que sejam só vistos por fora. Desvia-te para a esquerda e galopa até àquela montanha ocre, a umas duas milhas da povoação. Eu te seguirei ou empreenderei o caminho da direita, segundo as circunstâncias.
—De acordo, pai. Sorte.
Iam a separar-se, quando um longínquo rumor de cascos os deteve. No horizonte, atrás deles, a poeira do deserto formava ao levantar-se uma espécie de globo de cor amarela. Milton desenfundou a sua arma, um velho revólver de grosso calibre que Rody lhe tinha proporcionado durante o caminho.
— Não temas, filho. Quem quer que se aproxime é um só homem. E nem o próprio diabo resulta temível se vem sem companhia.
Esperaram confiados que o ginete se aproximasse. As pupilas duras de Rody seguiam um a um todos os seus movimentos e ao tê-lo à distância do tiro, os seus músculos ficaram tensos. O recém-chegado vinha quase abraçado ao pescoço da sua cavalgadura, e fazia desesperados esforços para manter-se sobre o animal ofegante, que andava aos esses e relinchava de um modo estranho e desagradável.
De repente, os olhos de Milton, que tinha melhor vista que seu pai, dilataram-se por causa do entusiasmo e da surpresa.
— Luttell!
Com efeito, o que se aproximava era o velho médico, mais derrotado e sujo que nunca, com o casaco manchado de sangue seco, a pele cheia de crostas de suor e de pó.
Ao chegar junto deles, não pôde guardar mais o equilíbrio sobre o nervoso animal e veio parar ao chão. Levantaram-no. Estava levemente ferido nas costas, e cheirava a álcool.
—Luttell! Como chegou até aqui? — perguntou Rody.
—Eu... Bem, para que gastar palavras inúteis? Têm um trago?
— Nem um golinho, Luttell. Nestes dias temos vivido de caça, acalmando a sede nas fontes comunais das povoações. Não temos nenhum dinheiro, e toda a nossa fortuna consiste agora nas poucas balas dos cintos. Está muito ferido?
— Oh, não! Se não há gangrena, não, e eu já me desinfetei o melhor possível. Veem? Roubei-o da maleta de Simpson!
— Como? Mas pôde entrar em casa de Simpson depois daquilo?
— Supus que seria o último lugar onde lhes ocorreria procurar-me. Passei a noite no telhado e fugi ao amanhecer, quando ainda davam a última batida pela povoação. Só me viu um tipo que ia a pé, e com um tiro me fez saltar uma larca de osso da anca. Podia... ter sido pior. Segui o caminho de Arizona, e forcei marchas quando numa povoação índia me disseram que os tinham visto passar. Com as minhas últimas moedas emborrachei-me eu e pude emborrachar o cavalo. Graças a isso consegui que me arrastasse até tão longe.
O cavalo, encabritando-se, dava agora voltas pelo pó do chão tal como um cão jovem.
— Ninguém o seguiu, Luttell?
— Hum! Esta parte do Sudoeste está ainda por civilizar. Quem vai ocultar-se entre os índios? O lógico é supor que os três empreendemos a rota da Califórnia, onde é fácil afogar todo o rasto entre os povoados mineiros.
Rody concordou que o velho tinha razão. Esta tinha sido precisamente a sua ideia ao empreender aquela rota. Ajudou-o a pôr-se em pé.
— Pode montar?
—Sim... se me ajudarem.
— Então vamos prová-lo. Este terreno não me agrada.
—Cheira-lhe a perigo, hem? Faz... faz como as peças de casa. A desagradável alusão ensombrou por uns momentos as pupilas de Carey.
— Oiça, Luttell, vimo-nos pouco tempo, mas ao primeiro golpe de vista causou-me o efeito de um tipo que há muitos anos comia com garfo. Donde diabos vem?
Carey e seu filho tinham montado também, e iam os três ao passo dos seus cavalos.
— Agora vim de Chicago. Antes de Londres. Antes de Paris. E antes ainda, de Viena. Eu sou Austríaco.
— Austríaco? E que veio fazer aqui?
—Hum! É uma história muito comprida, e além de tudo cheira a sujo. Bem, talvez lhe baste saber que eu era um cirurgião de muito nome em Viena. Ali casei, e dois anos mais tarde, minha mulher morreu... em condições vergonhosas. Desde então, entreguei-me à bebida, sendo este o motivo por que me expulsaram de várias universidades europeias.
Rody Carey olhou-o fixamente.
— Estou-lhe muito agradecido pelo que fez por nós em Golden Hill —disse.
— Bah! Via-se às claras que Simpson queria estender-lhes uma armadilha retendo o rapaz ali. E quanto a dar-lhes o revólver, foi fácil. Só tive de bater nas costas a um tipo...
Chegavam aos arrabaldes da povoação, sobre a qual Carey tinha pousado os seus duros olhos. De repente, os olhos de Carey iluminaram-se.
-- Afasta-te, Milton!
Acabava de ver a pouca distância, num montezinho à sua direita, algo que brilhava como uma luz azul-cinzenta. Era o cano duma espingarda. Milton esteve a ponto de cair do cavalo, e a bala passou ladrando junto da sua cabeça. Picando as esporas, Rody dirigiu-se em linha recta para o monte de rochas, enquanto gritava:
— Vai-te pela esquerda com Luttell! Rodem o povoado, Milton! Não se preocupem comigo!
Sabia que, ao aproximar-se com aquela temeridade, o homem que tinha disparado fazia agora fogo contra ele, desentendendo-se do rapaz. E assim sucedeu. Mas Rody Carey contava ser mais rápido que o seu inimigo. E assim sucedeu também. Quando sobre o monte voltou a aparecer aquele reflexo azul-cinzento, e uma mancha negra sobre ele, com forma de cabeça, Rody fez fogo duas vezes. A espingarda saltou pelo ar, e a seu lado, produziu-se um movimento estranho e violento, de pessoa que cai.
— Agradar-me-ia examinar a sua mão, Carey! — gritou Luttell, a umas trinta jardas de distância. — Que demónios têm elas?
— Parece feita para manejar o revólver, amigo. Dar-lha-ei quando morrer.
Seria um bom negócio! Entrem, senhores e admirem a autêntica mão de Rody Carey, a que melhores alvos teve na história do Oeste! E, a seu lado, admirem a cabeça do homem que matou Rody Carey. Assim fica melhor, não é verdade?
Estavam agora juntos outra vez, e tinham-se aproximado do grupo principal de montes rochosos. Então começou o que nenhum deles esperava. Foi o chasquido duma recâmara o que os advertiu desta vez. No ar causado e silencioso da planície, todos os sons se transmitiam com assombrosa nitidez.
Os três homens voltaram as costas simultaneamente, galopando em direções contrárias. Agora disparavam de dois sítios ao mesmo tempo. Eram pelo menos seis espingardas que fizeram fogo.
O jovem Milton sentiu que uma mão lhe arrancava o chapéu da cabeça, e a Rody um buraquito fez-lhe brotar sangue da orelha esquerda.
Vomitou chumbo contra as rochas que tinha mais próximas, sabendo à priori que não acertaria no alvo desta vez.
A segunda descarga foi mais eficaz e fê-la num ponto mais débil. Luttell, que não podia dominar o seu nervoso cavalo, sentiu como este se levantava sobre as patas, fazendo um movimento de saca-rolhas, relinchando dolorosamente, e eriçava todos os cabelos da sua crina. Seguidamente caiu ao chão, imobilizando-se com o seu peso.
Milton, que estava junto dele, sentiu-se de repente completamente abandonado. Viu seu pai, a umas cem jardas, galopando furiosamente em direção ao povoado e procurando atrair para si a atenção dos pistoleiros; o medo à solidão, um pavor espantoso diante da planície hostil e deserta, apoderou-se então do coração do rapaz.
Com um gemido, picou as esporas e atirou-se a toda a velocidade atrás de Rody Carey.
Este nem sequer o advertiu.
Ia a passar entre os dois montes, e era certo que os atiradores intentariam aproveitar a ocasião para fazer um bom alvo. Era uma aposta caras ou cruzes, onde os únicos fatores favoráveis eram a coragem de «Leo» e a sua própria pontaria, e quis fazer tudo.
Uma cabeça levantou-se a trinta jardas, sobre as rochas. Fez fogo, e naquela cabeça nasceu um pequeno fio de sangue, igual ao que a terra deita petróleo das suas estranhas. Voltando-se na sela, com uma rapidez espantosa, apontou agora ao outro lado e fez fogo duas vezes. Uma figura que sobressaía até à cintura, intentou apontar a sua espingarda, encolheu-se sobre si mesmo.
«Se fossem sérios usavam os revólveres — pensou Carey. —A esta distância... São um bando de idiotas.»
Duas balas assobiaram, inutilmente, sobre a sua cabeça.
Ia como uma flecha para a povoação, e podia dizer-se que o momento crítico, definitivo, tinha passado já. Agora, as patas do seu cavalo afastavam-se dos seus inimigos, em vez de se aproximarem deles. Mas foi naquele instante que pensou em Milton.
Voltou-se parra vê-lo galopar atrás de si, no momento em que ia a passar entre os dois montes, a trinta escassas jardas dos canos assassinos.
— Milton! —gritou, espumando-lhe a boca. — Milton!
Tinha-se endireitado muito sobre a sela do seu cavalo, abandonando a prudente posição que guardara desde então. Soou um disparo, e a bala penetrou-lhe entre as costelas, atravessando-lhe o estômago. Viu-a sair, com um chasquido, diante dos seus próprios olhos.
Uma nuvem obscureceu estes, e uma espécie de trovão correu de ouvido a ouvido, atravessando-lhe a cabeça. As suas mãos agarraram-se sobre a crina de «Lee» enquanto um golpe de sangue subia pelo seu esófago até à sua boca.
Sem embargo, Rody Carey não devia vir para a terra. Dois pensamentos tinham cruzado o seu cérebro em frações de segundo: que não morreria em seguida, porque as feridas no estômago, ainda que fatais, não são de consequências instantâneas, e que Milton estava em perigo.
Voltou-se, com os olhos chamejantes, a ponto de ver como o rapaz desorientava os atiradores com duas hábeis fintas do seu cavalo. O chão tremeu debaixo dos cascos do nobre cavalo, e a areia foi expulsa de lado a lado em pequenas e violentas crateras.
Rody Carey não sabia quantas balas ficavam no seu tambor. Só viu uma figura que se colocava de pé sobre as rochas, apontando com o revólver para Milton, e fez fogo com os olhos semicerrados. Uma, duas, três vezes: a figura recebeu as três balas e saltou tragicamente em três piruetas distintas, até ficar estendido entre as duas rochas.
Entrava já nas primeiras casas da povoação: a povoação silenciosa e hostil como unia tumba.
Nas suas costas ouvia os cascos do cavalo de Milton, e essa foi a primeira música com que obsequiou a terra-mãe.
Um segundo golpe de sangue espumou na sua boca. Mas neste ia já parte da sua vida, que se lhe escapava entre os dentes, gota a gota. Dobrando-se, com as feições contraídas pelo esforço e a terrível dor, quis manter-se sobre a sela. O revólver deslizou da sua mão direita, caindo no chão. Tratou de abraçar o pescoço de «Leo», e resvalou sobre ele. A terra veio aos seus olhos como uma coisa branda e macia.
Com um gemido, Milton intentou deter o seu cavalo e não pôde consegui-lo até que este, os olhos injetados de sangue e a boca babejante, teve de saltar sobre o corpo de seu pai.
Atirando-se sobre ele, viu que tinha os olhos abertos e que o seu peito ainda ofegava. Desesperado, abraçou a sua cabeça. Naquele instante ouviu um ruído nas costas. Vários objetos metálicos reluziram ao sol. Aproximavam-se quatro homens.
 ---Não te capturarão, papá — disse.
Os seus olhos azuis ficaram cheios de lágrimas. Com os seus jovens nervos em tensão, atuando como uma pequena pantera, desenfundou o revólver. A sua mão inexperiente quase não podia agarrar a enorme culatra, e a visão daquela criança tentando defender com as suas pobres forças o homem moribundo, era patética.
Mas aos quatro homens que se aproximavam pareceu--lhes deliciosa.
Algo relampejou na mão do mais jovem, um tipo alto e magro que não devia ter mais de vinte e dois anos. Soou um disparo, e o revólver saltou das mãos de Milton, diante dos seus olhos assombrados.
—Sou o único de vós que tem pontaria, cambada de idiotas — ouviu como dizia aquele homem.
Já não estava a mais que a umas quinze jardas. O sol caía a prumo, e destacava sobre o fundo amarelo da terra as suas figuras poderosas. As feições de Rody Carey estavam cheias de pó, suor e morte.
De repente, Milton saltou sobre os agressores com os punhos fechados. «Leo» o fiel cavalo, acompanhou-o relinchando, disposto a abater com as suas patas dianteiras os quatro homens. Mas estes acabaram rapidamente com os dois inimigos, tão enfurecido quão pouco perigosos. Um direto ao queixo bastou para derrubar o rapaz ao chão, e uma bala cruelmente aplicada no ventre do animal, fê-lo cair no chão.
O mesmo tipo jovem que tinha disparado contra o revólver de Milton, rematou a morte do nobre animal com um balázio entre as duas orelhas. Os quatro homens rodearam o inerte Rody Carey.
— Ainda vive, Brakam — advertiu um deles.
O mais jovem, que era a quem tinham sido dirigidas aquelas palavras, examinou o caído com um sorriso torcido.
— Quero que saiba que sou Brakam —disse.
E bateu-lhe com a espora, selvaticamente, no rosto de Rody Carey. Mas este limitou-se a gemer, sem poder sequer abrir os olhos.
— Demos-lhe bem; resta-lhe pouca vida. Quer que sofra ou prefere matá-lo?
— Dê-lhe duas balas. Uma por cada um dos meus irmãos. Vigie o rapaz.
Eram oportunas as suas palavras, porque Milton atirava-se já, com os olhos cheios de lágrimas, sobre o corpo do seu pai. Entretanto, Brakam, lentamente e, sem mover um músculo do seu rosto, disparou friamente sobre Rody Carey.
Um duplo estremecimento foi a última coisa que o fugitivo fez nesta vida.
Milton tinha os olhos fechados, e pela sua boca entreaberta, crispada numa careta de terrível desesperação, entrava o pó da planície deserta. O homem que o tinha seguro pelos cabelos deixou-o cair.
— Que fazemos com o rapaz, Brakam? A ele também?
Uma luz de sinistra alegria brilhou nos olhos do jovem.
— Não. Tenho algo melhor para ele. Que viva, mas que não possa nunca ser um pistoleiro como seu pai. Corta-lhe a mão direita!
Os quatro homens tinham deixado os cavalos que se mantinham escondidos à saída da povoação, afastando--se e deixando os dois corpos estreitamente unidos sobre a terra amarela. Um deles sangrava abundantemente por unia ferida. O pó chupava avidamente o sangue, e sobre ele ficava só uma mancha vermelha que cada vez mais se alastrava.
De improviso, ouviu-se correr um homem próximo dali. Movendo com toda a velocidade possível a sua corpulenta figura, respirando pelo nariz e pela boca, e coxeando duma perna que tinha magoado num cavalo, Luttell chegou com a sua maleta.
—Milton! — gritou, ao contemplar a cena.
Ao longe viam-se ainda quatro nuvens amarelas de pó, cada vez mais pequenas. Luttell, olhando-os com os olhos dilatados pelo ódio, gritou uma só palavra:
— Canalhas!
Parecia como se a sua figura derrotada e miserável se tivesse agigantado de repente. Com os olhos ensanguentados olhou as casas da povoação, por cujas portas começavam a assomar alguns rostos indecisos de índios. Tendo na mão o revólver que Carey tinha debaixo do seu corpo, apontou a uni deles com expressão de fera.
—Vamos! Ajudem-me a levar o rapaz!
Dois índios velhos olharam-se indecisos, e por fim optaram por obedecer.
—O rapaz Brakam matar-nos-á se o sabe—disse um deles, numa mescla de inglês e espanhol.
—Eu matarei antes o rapaz Brakam! Vamos, segurem o rapaz!
Os três introduziram-no na casa, onde o ar era quase irrespirável. Luttell tirou o casaco. Viu-se então que a sua camisa só tinha peito, e que lhe faltavam as costas.
— Água! Água limpa! — exigiu.
Os índios obedeceram prontamente. Estavam atemorizados, mas, diante daquele dever de caridade, não vacilaram em prestar-lhe toda a sua ajuda. Trouxeram água limpa, ligaduras, e ervas para conter a hemorragia.
Ajudado pelos instrumentos da inala, Luttell não tardou em conter a hemorragia e em limpar por completo as bordas da selvática ferida.
Milton sofria tudo com o rosto impassível, os olhos fechados e sem mover um músculo. Só os abriu quando Luttell lhe levantava o braço direito para ligá-lo. E então viu o seu pulso.
—Não quero ficar maneta, Luttell; não quero! —gritou desesperadamente.
E pelos seus olhos correu um manancial de pranto. Voltava a ser criança outra vez.
— Não posso fazer nada, Milton. Se a tua mão estivesse em condições, ligar-ta-ia, mas ao cortá-la destroçaram-na. Juro-te que nada posso fazer com ela. Pensas que não o meditei bem?
--- Tapa-a bem para que não a veja, Luttell. E tudo o que peço!
Os olhos do médico brilharam repentinamente. Recordou as estranhas palavras que tinha trocado com Rody Carey antes da luta.
— Milton... — disse.
—O que é?
—Importas-te de levar, no lugar da tua... outra mão?
Os olhos do rapaz dilataram-se.
— Mas, de quem?
—De teu pai. Algo subiu e baixou na garganta do rapaz.
—E possível?
—Nem eu mesmo o sei. Sei-o teoricamente. Intentei coisas mais difíceis quando era jovem. Posso provar outra vez.
— Uma mão... que não posso mover?
— Talvez não, Milton.
— E..., maior que a esquerda? Sempre maior?
— Tão-pouco posso assegurar-te nada a esse respeito. — Luttell falava agora num tom grave, como se estivesse ensinando na cátedra e parecia muito afastado do velho borracho que era habitualmente. — O lógico é que a mão de teu pai não cresça mais, enquanto que a tua sim, de modo que podem ficar iguais. Mas sobre isso eu não afirmo nem nego, porque a medicina ainda está às escuras nestas coisas. O que eu quero é que não fiques mutilado.
Milton Carey fechou os olhos. Uma lágrima resvalou entre as suas pestanas, muito lentamente.
—Faça... faça o que quiser, Luttell.
— Bem. — O médico voltou-se para os dois índios. —Ajudem-me a trazer o cadáver, querem? Não é justo, que fique apodrecendo ao sol.
Os índios obedeceram-lhe, e com um cuidado piedoso ajudaram-no a introduzir o cadáver de Rody Carey na choça.
— Agora vais fazer o favor de não abrir os olhos, Milton. Fecha-os e pensa no que te agradaria ser, ou na nova vida que vais empreender amanhã. Eu procurarei não te fazer dano. Enfim... será melhor... toma.
Introduziu-lhe entre os lábios o gargalo de uma garrafa de licor que o mais velho dos índios tinha trazido provisoriamente.
—O velho Luttell é um patife e sempre dá maus conselhos, meu filho, mas desta vez é para bem. Embebeda-te. Embebeda-te até dares gritos, e o malandro do Luttell estará orgulhoso de ti. Mas não olhes o que vou fazer. Tem confiança.
Milton olhou-o com uma espécie de sorriso nos seus olhos azuis, e começou a beber pequenos goles da garrafa, fazendo um invisível esforço, sempre com a cabeça voltada para o outro lado.
 — Eu já não tenho fé em mim, meu filho — advertiu--lhe Luttell. — Mas se isto sai bem, considerarei que não estou perdido de todo e que ainda conseguirei salvar um pouco de mim mesmo. Sim, se isto sai bem, terei ganho eu mais que tu, meu filho.
E enquanto com uma mão segurava a cabeça do rapaz para que não pudesse voltá-la, tarefa em que mais tarde o ajudou um dos índios, Luttell pôs-se a trabalhar.
— Disse que não poderemos ficar aqui? Se nos vamos embora, isso significará a morte do rapaz.
Os dois índios, que tinham junto uma avultada mulher que se lhes tinha reunido, negavam com a cabeça.
—Mas, porquê? Não têm sentimentos humanitários? Porquê?
— Já arriscamos a nossa vida deixando-os entrar aqui — argumentou o índio mais velho, na sua curiosa mescla. — Esta colónia está instalada no território de Brakam e pode expulsar-nos se o desejar. Os seus homens têm sobre as nossas vidas e as nossas casas o direito que lhes dá a força. Aqui, depois da guerra, ainda não há lei.
Luttell coçou a cabeça, pensativo.
—Bem. De momento, dêem-me algo para poder enterrar o meu amigo. Depois voltaremos a falar.
Sobre a planície tinham caído já as primeiras sombras da noite, e o pó arenoso que a cobria tinha-se tornado pardo e mais hostil que nunca. Luttell agarrou numa pá e numa picareta, e saindo para a parte posterior da choça, dispôs-se a dar sepultura a Rody Carey.
Lentamente, a certa distância da povoação, cavou a fossa. Antes certificou-se de que Brakam não tinha enterrado ainda os seus companheiros mortos, pelo que, deduzindo que voltaria, pensou que os índios tinham razão. Quando a fossa tinha cinco pés de- profundidade, depositou nela o corpo de Rody Carey.
— Apreciei-te como se fosses um velho amigo meu — disse-lhe a modo de despedida. — Oxalá no outro mundo encontres melhores bichos que eu.
Depois, as suas feições adquiriram uma cor distinta, uma expressão digna que não era habitual nelas, e Luttell, o médico expulso de três países, pôs-se a rezar fervorosamente.
Meia hora mais tarde estava de regresso à choça. O jovem Milton continuava delirando, com febre muito alta.
—Eu creio que o que você fez é uma monstruosidade —disse a índia.
—Eu não sei exatamente o que fiz. Só queria não ver esta criança com o braço terminado num coto. Tem dez anos e podem acontecer muitas coisas.
— Dez anos? Pobre rapaz! A índia aproximou-se dele, e pondo-lhe a mão na testa, contemplou-o com uma especial ternura.
— Que fazemos com ele? — perguntou Luttell, aproveitando aquele momento propício. —Atiramo-lo para o deserto para que os abutres o comam?
—Brakam voltará amanhã, e todos pagaremos com a vida se sabe que lhes demos abrigo. E melhor que saiam daqui imediatamente, a meia milha daqui há uma montanha com uma gruta natural muito resguardada. Ocultem-se ali, e todas as noites lhes levaremos comida, água e ervas para a febre.
Luttell olhou os índios e depois o rapaz.
—Lamento ter pensado por uns momentos que não eram humanitários. A sua atitude é muito valente, dadas as circunstâncias. Iremos para essa gruta, e conto com a vossa ajuda.
Três dias depois tinha-se operado uma transformação radical no pequeno Milton. A febre tinha começado a descer depois da segunda noite, e já pôde tomar algum alimento.
Os índios cumpriram a sua promessa, e Luttell cuidou bem do seu paciente. Não pregou olho nas duas primeiras noites. Na terceira pôde descansar, precisamente quando os homens de Brakam, à luz da lua, enterraram os seus companheiros mortos. Ao quarto dia, o rapaz pôde levantar-se e dar alguns passos pela gruta. Mas as forças do seu braço direito terminavam no pulso. Mais abaixo era uma mão morta.
--Quero fazer-te um pequeno presente, Milton —disse Luttell.
—O que é?
—Com as rédeas do teu cavalo morto fiz uma pulseira de pele. Servir-te-á para cobrires a cicatriz até que desapareça com o tempo.
Milton aceitou, agradecido, e depois abraçou Luttell. Este parecia preocupado com alguma coisa.
—Não podemos estar toda a vida aqui, Milton — insinuou. — Ontem à noite estive pensando nisso. A gruta resulta perigosa e não podemos estar sempre pendentes da ajuda desses índios.
— Eu já me encontro com forças e quando quiser sairemos daqui.
— É que eu não vou contigo, Milton.
Os olhos do pequeno abriram-se desmesuradamente.
—Como? Vai deixar-me só? O que é que pensa que eu posso fazer com as minhas próprias forças?
— Não tomei esta decisão precipitadamente, filho. Peço-te que tenhas em mim a confiança de supor que o pensei bem antes. Conheço-me a mim mesmo, e sei que não posso estar jogando na personagem duma pessoa séria durante demasiado tempo. Logo que tenha um dólar no bolso começarei a jogar e a beber. Não falemos das minhas afeições de desordeiro. Tu estarias junto de mim mais desamparado que um pardal no bico duma águia. E não me digas que posso mudar, porque sei que é impossível.
— Mas necessito que cuide da minha ferida — argumentou Milton, certo de que aquilo faria o velho mudar de opinião. — Pode infetar-se...
—Hum! Não, não se infetará nesta altura. Tem bom aspeto, e só há que dar tempo ao tempo. Trabalhei com consciência.
Milton voltou a cabeça para que Luttell não pudesse ver a expressão dolorida do seu rosto.
—Não quero que me julgues como um velho egoísta — sussurrou o médico. — Pensei muito bem nas consequências que poderia ter para ti a minha funesta companhia. Diz um velho rifão que «mais vale só que mal-acompanhado», e rifões velhos sempre têm razão. Além disso, vou dar-te comida para três dias e um cavalo.
— Que cavalo?
— O que eu montava quando começou o tiroteio. Só lhe deram numa pata, e curei-o bem durante estes dias. Agora está procurando erva nos arredores. Não pode trotar ainda, mas tão-pouco tens pressa para chegar a alguma parte.
No pouco tempo em que estavam juntos, Milton tinha aprendido a conhecer Luttell, e sabia que era homem ao qual não se podia obrigar facilmente a mudar de decisão. Por isso tratou de sobrepor-se e de aparentar alegria, compreendendo, por outro lado, que a sua presença só podia significar uma carga para o médico.
— Que caminho posso tomar? —sussurrou. —Na minha opinião, o da Califórnia. Indo para o Norte, só encontras terra selvagem e inóspita. Desde o Novo México, onde estamos agora, não há perspetiva melhor para o vagabundo que a dessa terra nova com raízes amarelas. O ouro abunda nos seus rios e podes encontrar um bom prazer, se tens sorte. Além disso, nas suas recém-construídas cidades, não falta trabalho para um rapaz esperto e que sabe como atuam os homens.
Guardou um momento de silêncio, enquanto contemplava a face serena do rapaz.
—Tu és um valente, meu filho, e naquela Califórnia far-se-ão ricos todos os homens duros que a pisem. Estendeu-lhe os braços, e uniram-se numa quente despedida.
Com o rosto apoiado no ombro do velho médico, Milton não quis dissimular a angústia que o dominava, e ensombraram-se as infantis feições do seu rosto.
—Não sei se serei uni valente, Luttell, nem me importa. Porque não quero ser um pistoleiro. Eu não quero ser como o meu pai.

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