terça-feira, 1 de janeiro de 2019

CLT024.03 «Mão Morta»

Ao oitavo dia de peregrinação, depois de ser despedido de todas as partes, morto de fome e sem poder-se conter sobre a sela, chegou a uma cerca atrás da qual estava um cartaz de madeira pintado de branco, com letras vermelhas que diziam:
RANCHO BRAKAM
Centenas de acres de boa terra se estendia diante dos seus olhos. Terra coberta de um limo verde, donde se podiam arrancar as melhores colheitas do país. O assassino de seu pai era um homem de sorte.
A vala de arame farpado estendia-se durante léguas e léguas ao longo dos caminhos. Aquela devia ser a zona de cultivo, onde os gados não podiam penetrar. Mais além, em prados verdes abertos a todos os ventos, centenas de cabeças de gado pastavam vigiadas pelos cowboys.
O sol caía a prumo, e o cavalo coxo de Milton Carey caminhava como um sonâmbulo. Os escassos riachos estavam quase secos pela intensa evaporação, e da terra desprendia-se um calor espesso e asfixiante.


Ao meio-dia, quando o sol era mais implacável, Milton contemplou uma cena inolvidável. Tinha ouvido falar de que a escravatura estava abolida só nominalmente, mas nunca tinha podido acreditar que cenas como aquela teriam lugar depois da vitoria dos generais de Lincoln.
Três cowboys arrastando, seguros aos seus cavalos, dois índios e uma rapariga branca. Na planície havia um poste alto e ataram-nos nele, abandonando-os ao sol corn as cabeças descobertas.
— Até dentro de três dias! —ouviu que gritava um dos vaqueiros, enquanto o pequeno grupo se afastava a galope.
Os olhos de Milton Carey cintilaram. Esperou que as três figuras se tivessem perdido de vista, e cravou as esporas no seu cavalo, que empreendeu um curto e doloroso trote. A cem jardas dos três castigados, deteve-se. Depois continuou avançando, até poder distinguir as suas feições.
Os negros eram corpulentos, e pareciam fatalistas e coma resignados diante da morte. A outra figura correspondia a uma menina duns onze anos, morena, de olhos cintilantes. Era uma India.
Milton Carey sentiu que alga se agitava no seu peito, e dispôs-se a avançar mais. Mas naquele momento, um disparo passou assobiando junto da sua cabeça. Atónito, viu agachado numa elevação próxima um homem que apontava de novo a espingarda.
 0 rapaz compreendeu que o novo disparo seria a matar. Voltou costas, afastando-se lentamente, sem sequer fazer pressão nos flancos do seu cavalo. Se o atravessassem com uma bala, importava-lhe muito pouco.
Mas o novo disparo foi um aviso também. E depois, ao ver que a sua figura se ia perdendo ao longe, já não insistiram no fogo.
Dois anos arrastou Milton Carey naquela vida errante e miserável. Durante eles viveu, como o seu cavalo, do que lhe davam por onde passavam. Vestia as roupas velhas que lhe entregavam nos ranchos em troca de duros trabalhos, coma partir troncos ou limpar poços.
Lavou-se nos rios e nos riachos que encontrava no caminho. Obteve irrisórias quantidades de dinheiro por empregos circunstanciais em três Estados distintos. Nao foi para a Califórnia diretamente, como tinha combinado corn Luttell.
Num momento de desespero, e confiando cegamente nas suas forças, pensou em chegar até Missouri, onde era conhecido e onde poderia alguém ajuda-lo. Mas ainda no oeste de Kansas, compreendeu que com aquele cavalo demoraria seis meses a chegar. E a verdade seja dita, tentava-o mais a nova terra da Califórnia.
Voltou costas.
«Se chego a Missouri — pensou — abrir-se-ão, pelo menos trinta bocas para perguntar-me por meu pai. E decidiu que a Califórnia seria para ele a terra prometida. Nesse tempo insinuaram-se estranhos sinais nos seus antigamente fracos braços, o seu peito alargou, o seu queixo fez-se mais proeminente, e os seus olhos azuis e infantis adquiriram a cor cinzenta de aço.
Fazendo aquela vida, Milton Carey não tinha outro remedio sendo morrer ou converter-se num autêntico cachorro. E Milton nao morreu.  Desde Kansas dirigiu-se ao Colorado e Utah, e depois a Nevada. Tinha catorze anos quando entrou pelo norte do Estado da Califórnia, e parecia ter cumprido os vinte. Os seus cabelos loiros, de um loiro dourado, bronzeada a pele e finos os lábios que nunca sorriam, tinha algo em Milton Carey que chamava a atenção. Talvez por nao levar armas, pois tinha vendido seu revolver no Colorado, durante um tempo de má sorte. Pensou que nao levando armas nunca correria o risco de transformar-se num pistoleiro. Milton Carey nao queria ser um fugitivo como seu pai.
Queria ser o que Rody sonhou quando lhe ensinava a ler sobre os seus joelhos. Na Califórnia deram-lhe um bom trabalho: cowboy para transportar reses desde Oregon às populosas e recém levantadas cidades do Sul, onde a came era paga por bons preços. Essa vida errante e desconcertante, sem ver um tecto jamais, dormindo, por assim dizer, sobre a sela do seu cavalo, agradou a Milton.
Ninguém mandava nele, e a sua única obrigação consistia em ser honrado, bom cavaleiro e bom conhecedor dos caminhos. O resto nao interessava. Uma noite, sem embargo, ao terminar a sua primeira viagem, teve uma discussão corn o capataz do rancho.
—Há ladrões nas montanhas. Porque nao levas revólver?
—Não me agradam as armas de fogo. Nao quero ter ocasião de ser um pistoleiro.
O capataz olhou-o como quem vê visões.
-- Os meus homens vão armados, e nao são pistoleiros. Pelo contrário, os seus revolveres servem para defender-se dos atiradores profissionais. É que queres que algum dia te entreguem seis medalhas na pele?
—Quando um homem vai desarmado e nao ofende ninguém, ninguém o mata.
— Mas tu levas gado que vale muitas centenas de dólares, amigo. Na próxima viagem sairás armado, ou nao sairás.
Milton, encolheu os ombros, replicou que se magoaria os músculos com os coldres. Mas o capataz nao ficou demasiado convencido, e no dia seguinte quis vê-lo atirar.
—Toma este revolver —disse-lhe, atirando-lhe o seu. Milton apanhou-o no ar corn a esquerda. —És canhoto?
—Nao. Nao sou canhoto.
—Então, vamos a ver como estas de pulso. Vês aquele chapéu colocado sobre a vala?
—Sim.
—Tens de fazê-lo saltar. Olha para mim.
Quase sem apontar, o capataz fez fogo, e o chapéu saltou violentamente pelos ares para cair depois brandamente no chão.
— Agora tu.
Milton empunhou o revolver com a sua direita. Agora, as mãos eram exatamente iguais e da mesma cor, e só se notava a cicatriz no punho. Mas a direita tinha mais nervos que a esquerda, era mais formada, mais perfeita. Nao obstante isso, movia-a corn uma extraordinária lentidão.
—Que se passa com essa mão? Já me fixei várias vezes nela, na casa de jantar. Apenas moves os dedos.
-- Tive um acidente quando era criança. Desde então nao posso movê-la bem.
—Mas se apenas sabes manejar o revolver! Vamos, dispara! Agora o chapéu está em terra, e o alvo é muito mais fácil para ti!
Milton fez fogo, e a bala saiu alta. Insistiu, e só pôde rocar o chapéu. A sua demonstração foi lamentável. Via bem o alvo e apontava-lhe com segurança, mas a mão negava-se-lhe a obedecer, e cada vez que apertava o gatilho, o revolver dava um estranho salto entre os dedos.
—És um inútil e um cobarde, Milton. Nao sei como te confio o gado que compramos em Oregon e que até, as crianças te poderão roubar. Nem sequer mereces qui te chame pelo teu nome. A partir de agora serás «Mão Morta». Isso – riu da sua lembrança -- é a melhor alcunha para ti: Mão Morta.
Milton Carey fez mais três viagens de Oregon a Califórnia, sem novidade. Levava os revolveres a cintura, mas descarregados sempre. Paulatinamente, a sua mão direita, na qual tinha renunciado em pensar, ia adquirido certa vida própria, certa ligeireza. Podia empregá-la já em pequenos trabalhos, e os seus músculos endurecidos respondiam as ordens da sua vontade.
Nao obstante, Milton nao prestava demasiada atenção a ela. Na rota entre Oregon e a Califórnia cumpriu os seus dezassete anos. Na rota das montanhas deixou as suas últimas formas infantis e as suas últimas expressões cândidas.
A pele endureceu debaixo da pressão potente dos músculos, e os dorsais superdesenvolvidos deram as suas costas uma aparência titânica, que impressionava de longe.
Nao obstante, todos continuavam chamando-lhe «Mão Morta», e ninguém apostava pela sua vida um quarto de d6lar, pois era evidente que tarde ou cedo havia de se ver envolvido nalguma luta.
Levava três anos no rancho, quando um dos seus companheiros foi assassinado. Mas então, Milton já podia mover a mão direita com completa segurança.
--Foram os do rancho Baklam—disseram os companheiros, da vítima.
— Querem comprar os nossos terrenos de pastagem e pretendem impor-se pelo terror.
A partir daquele momento advertiu-se constantemente o pessoal que ninguém devia sentir-se seguro, extremando as precauções durante os serviços noturnos.
E uma noite, Milton pensou encontrar-se em frente do assassino. Estava num extremo do terreno de pastos, junto dum bosquezito. Ia passeando tranquilamente, enquanto preparava um cigarro, quando ouviu um rumor a poucos passos dele, entre as arvores, e a luz da lua cheia projetou claramente uma sombra.
Naquele momento, Milton agiu por instinto. Nao teve tempo de pensar. A sua mão direita foi para o coldre, e extraiu o revólver com uma velocidade estonteante. Foi algo que o deixou perplexo a ele próprio: a mão tinha atuado como impulsionada por um salto. Os seus dedos agarraram tao perfeitamente o revolver e com tal segurança, que se encontrou apontando ao seu hipotético inimigo antes que este pudesse reagir.
Mas Milton nao disparou. O emboscado era um dos seus próprios companheiros.
— Pregaste-me um grande susto! —gritou, com voz de falsete, o sentinela, ao reconhecer Milton. — Estava-te apontando, e de repente vi aparecer o revolver na tua mão. Mas com uma velocidade tal, que estou certo de que me terias dado primeiro. Isso nao o vi nem a Marshall, o que matou três homens o ano passado. Ouve, «Mão Morta», nao nos estarás enganando?
Milton, sem responder-lhe, voltou-se corn brusquidão. Pela primeira vez na sua vida tinha medo de algo muito concreto, e era medo de si próprio. Com passos rápidos e elásticos dirigiu-se velozmente para o rancho. Estendeu-se em cima da sua cama, e durante muito tempo pôde ver a ponta do seu cigarro acesa na escuridão.
No dia seguinte era domingo, e todos os vaqueiros foram divertir-se na povoação mais próxima, Milton Carey ficou sozinho.
Carregando o seu revolver, encaminhou-se para um extremo do terreno de pastos, afastado de toda a fiscalização. Levava seis pequenas latas de conserva vazias, que colocou em seis pequenas estacas, quase ao nível do chão. A umas cinquenta jardas, extraiu o revolver com a mão direita.
Era surpreendente a segurança corn que os dedos se adaptavam a ele, e docilmente todos os comandos da arma obedeciam ao contacto da mão. Milton Carey, que tinha presenciado mais que uma luta, sabia facilmente que os dedos dum homem se adaptavam sobre o revolver, quando o manejava nervoso, e o exposto que estava então em receber a bala definitiva. Ele, em troca, tinha a clara sensação de que a nao podia» enganar-se.
Apontando a primeira lata, disparou, fazendo o mesmo com as restantes, uma a uma, fixando apenas o alvo e corn rapidez extraordinária. Em oito segundos, o seu tambor ficou vazio e as seis latas jaziam na erva, a muita distancia das estacas que as tinham suportado. Qualquer um tinha sentido orgulho diante daquela façanha. Milton Carey sentiu terror. Para ele seria endiabradamente fácil matar um homem. A partir daquele dia preocupou-se, com mais rigor que nunca, em nao levar munições.
Meses mais tarde foi assassinado outro dos seus companheiros, e, com motivos ou nao, declarou-se uma guerra aberta entre o seu rancho e o de Buklam. Numa manhã de Primavera, o dono do rancho convocou todo o seu pessoal para a pequena esplanada que se estendia diante dos edifícios principais. Ordenou a todos os vaqueiros que ficassem montados e com as armas.
— Os homens de Jerome Buklam converteram-se em assassinos e ladrões -- começou o chefe, corn voz agreste.
—Há um ano, dois dos vossos companheiros caíram debaixo do seu chumbo, e ontem uma parte do nosso gado foi afogada e morta no rio por um grupo dos seus homens. Sei que hoje o mais «seleto» da sua tropa está conduzindo centenas de cabeças para a encosta, e vamos dar-lhes uma boa lição. Quero que esses homens morram pisados pelo seu próprio gado. Será uma bonita luta e uma bonita lição. Mas necessito e admito só homens valentes. Aqueles que de vocês se sintam femininos e nao queiram atirar, que se retirem agora.
Todos soltaram uma gargalhada diante daquela insinuação, pois ninguém tinha pensado em retirar-se numa ocasião semelhante. Todos, menos Milton Carey. Tremiam os dedos da sua mão direita como possuídos por uma agitação inexplicável. A maçã de Adão subia e baixava espasmodicamente pelo seu pescoço poderoso. As suas feições estavam densamente lívidas.
— Retiro-me—disse a meia voz. — Nao faço parte do pessoal do rancho.
E entre os insultos e gritaria dos demais, afastou-se lentamente, a trote curto do seu cavalo.
Califórnia vivia em plena febre do ouro.
Centenas de aventureiros tinham chegado do Sul e do Este em caravanas e pelas recém-construídas linhas férreas. Centenas de pistoleiros profissionais abandonaram os ranchos e os prados do Norte para se dirigirem a primaveril Califórnia em busca da fortuna. Astutos mexicanos expulsos das suas terras vendiam-se pela melhor oferta, como espertos e minuciosos assassinos e guarda-costas. Era uma estranha «civilização a que, de repente, tinha chegado aquela terra anteriormente religiosa e pacifica. Os homens como Milton Carey nao tinham grande coisa a fazer por ali. Mas decidiu nao sair do Estado, uma vez abandonado o seu emprego no rancho. e, ingenuamente, pensou que também podia encontrar o ouro, sem causar mal a ninguém, acompanhando-o somente um pouco de sorte. E naquela luta solitária e quase sempre sem esperança, consumiu um ano mais.
Nao encontrou nenhum filão, e apenas obteve algumas pequenas pepitas de ouro que o ajudaram a viver de qualquer maneira. Era já uma espécie de gigante loiro quando conheceu Luigi Starza. Luigi era calabres, homem sentimental, pacifico e amante do vinho e da música. Encontraram-se um dia atuando no mesmo sítio.
—Nao penso que haja nada por aqui, amigo —disse Luigi, ameaçador. —Pelo menos, nada para si.
— Isso ainda temos de ver —respondeu Milton, que naquele dia nao estava de bom humor.
— Creio que este sítio é bom, e ficar-me-ei a trabalhá-lo.
Luigi encarou-se corn ele. Tinha bigodes de salsicheiro, que lhe caiam até ao queixo.
— Nao estou acostumado a que ninguém me desafie, ouves? Replicou com voz irritada. —E muito menos tu, criança.
Para que isto nao pudesse acabar a tiro e já que estavam apenas a um passo de distância, Milton decidiu desarmar o seu inimigo corn um movimento rápido. Estirando o braço corn uma velocidade estonteante, sujeitou corn os dedos o único revolver de Luigi, arrancando-lho do coldre. Mas o calabres parecia ter tido justamente a mesma ideia, e se nao pode evitar a manobra de Milton, foi por estar fazendo precisamente o mesmo que o gigante loiro. Os dois olharam-se atónitos, cada um corn o revolver alheio na mão.
E os seus olhos abriram-se mais ainda ao comprovar, pelo pouco peso das armas, que ambas estavam descarregadas. Durante um largo minuto estiveram quietos e contemplando-se. Depois, Milton langou uma gargalhada, que o calabres coroou em seguida com um espetacular movimento do bigode.
— Alegro-me de encontrar um fanfarrão pacifico — disse o jovem, batendo no ombro de Luigi. — Chamo-me Milton Carey, e só trago o revolver para adornar o coldre.
— E eu Luigi Starza — respondeu o outro, quase abraçando-o, deixando-se levar pelo natural afeto da sua raça. — O gatilho do meu revolver está oxidado. Quer que procuremos juntas nesta zona e repartamos os benefícios?
— De acordo — disse Milton, estendendo a mão. — E eu estou muito satisfeito de ter topado consigo. Em companhia de Luigi Starza deambulou pela Cali-f6rnia durante três anos.

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