domingo, 30 de dezembro de 2018

CLT024.01. A emboscada

O carro avançou silenciosamente pelo caminho, aproximando-se do povoado. Ainda que a lua começasse já a elevar-se sobre as montanhas do horizonte, não se distinguiam os objetos a dez jardas de distância. Isto favorecia o condutor, que se introduziu por uma rua dos arrabaldes levando a passo o seu cavalo.
Golden Hill fervia de animação àquela hora, mas só nas duas ruas principais. O resto estava silencioso como numa cidade esquecida.
Voltando duas vezes à direita, o carro enfiou para a parte traseira das casas que davam para a rua principal.

Duas coisas teriam chamado a atenção no veículo, e até teriam causado surpresa a quem se tivesse fixado nele. Em primeiro lugar, a lona que o cobria estava cheia de buracos e queimada em parte. Em segundo lugar, o cavalo que puxava a carroça não era uma besta para este trabalho nem nunca o tinha sido. Era, sem dúvida, o mais formoso puro sangue que tinha pisado Golden Hill naquele ano.
O carro deteve-se, e o seu condutor saltou para terra. Era um homem alto, moreno, duns trinta e cinco anos. Os seus braços nus mostravam a impressionante musculatura debaixo da pele curtida pelo sol. Trazia barba de três dias, e isso, unido às amplas abas do chapéu que o cobria, impedia de distinguir o seu rosto. Aproximou-se da porta da casa em frente à que tinha parado, e voltou a cabeça para o carro.
— Uns minutos de paciência, Milton —disse.


A casa era de dois andares, e nas janelas do piso superior havia luz. A porta estava debaixo dum alpendre e havia dois cartazes a seu lado. Um anunciava uma feira de gado que devia realizar-se na semana seguinte, e o outro oferecia cinco mil dólares pela cabeça dum homem. Havia um tosco desenho do mesmo em cima da importância. Os traços das feições estavam, sem dúvida, traçados com grande habilidade, e dava a impressão de que quem visse aquele retrato não o esqueceria jamais.
O desconhecido bateu à porta. Demoraram apenas dois minutos a abrir. Fê-lo um homem duns quarenta anos, vestido com camisa aos quadrados e calças, sem armas.
—Devia ter batido à porta da frente, amigo. Que diabo quer?
O desconhecido levou uma mão ao chapéu, como que saudando, mas não se descobriu.
— Ver o doutor Simpson. É muito importante.
—O doutor Simpson está jogando a sua partida agora.
O recém-chegado apoiou os polegares no cinturão, e avançou um passo para a frente.
— Disse que quero ver o doutor Simpson — repetiu com voz cortante.
— Bem. Entre. Esta região está infestada de vagabundos que dormem de dia e vêm ver o médico de noite.
Ia a subir as escadas que conduzia ao andar superior, mas o visitante pôs-se nas suas costas.
— Acompanhá-lo-ei — disse.
E reafirmou o seu desejo empunhando um dos revólveres, que apareceu na sua mão sem que fizesse o menor movimento, como por arte mágica.
—Caminhe à minha frente. Não é necessário que levante os braços.
— Cobarde! Aproveitou-se de que vou desarmado para...
— Não necessito aproveitar-me de nada. Tenho o revólver na mão e basta. Conduza-me ao doutor Simpson, e senão terá ocasião de comprovar se o gatilho funciona ou não.
O outro encolheu os ombros, e começaram a subir a escada. Atrás da primeira porta do andar superior ouvia-se ruído de vozes.
-- Entre — ordenou o desconhecido.
Ao abrir-se, a porta pôs a descoberto um quarto bem mobilado, com uma mesa redonda no centro, diante da qual estavam sentados três homens. Uni era Cardigan, o sheriff de Golden Hill, um homem rude, de colossais proporções e braços largos como os dum gorila. O outro, o doutor Simpson, um homenzinho pequeno e de olhos de rato, cujas feições, brancas e finas, denotavam astúcia. O terceiro era um homem de uns cinquenta anos, vestido pouco menos do que com farrapos, ainda que o seu porte fosse distinto. Estava inclinado para trás, com a cabeça apoiada no espaldar da cadeira.
Os dois primeiros puseram-se quase instantaneamente de pé, ao ver os que acabavam de entrar.
— Que significa isto, Larry? — gritou Cardigan.
A sua cólera estava justificada, pois para que vissem bem às claras o que sucedia, o ameaçado, ao abrir a porta, tinha levantado os braços.
—Não se excite, sheriff — disse o forasteiro, deitando o chapéu para trás. — Desta vez só em paz.
Os olhos do médico e do representante da lei, bailaram nas suas órbitras.
— Rody Carey! — exclamaram em uníssono.
—Sim, Rod Carey. O homem por cuja cabeça oferecem cinco mil dólares neste momento. Aconselho-os a que voltem a sentar-se.
Os dois fizeram-no lentamente, e sem deixar de olhá-lo como hipnotizados. Entretanto, o terceiro personagem fazia algo muito estranho: como se não lhe importasse nada a presença do intruso, tinha tirado a rolha da única garrafa que se encontrava na mesa, e engolia o seu conteúdo a grandes e ávidos golos.
— Que veio fazer aqui, Carey, condenado cão do deserto? — perguntou o agente da autoridade, sem tirar-lhe os olhos de cima.
— Vim somente solicitar os serviços do doutor Simpson, ao qual pagarei como é justo. Quero que atenda meu filho.
O médico cuspiu no chão.
— Maldita seja toda a tua estirpe!
Nos olhos do foragido apareceu um brilho que fez emudecer Simpson.
—Vamos. Você, sheriff, vai servir de enfermeiro quer queira quer não. Desçam todos à minha frente, e abram a porta da rua. A da parte posterior. Todos se puseram em pé menos o indivíduo da garrafa, que não se deu por achado até beber o último golo. Rody Carey fixou-se nele. Era um homem gordo e de aspeto pacifico. As suas roupas, que estavam cheias de buracos e sujas por toda a parte, deviam ter sido um dia elegantes e corretas. Não trazia armas. As hastes dos óculos estavam partidas e presas por um cordel. Os seus olhos semicerrados estavam num estado crepuscular causado pelo álcool. Rody, que tantos homens curiosos tinha visto na sua vida, disse para si próprio que aquele era um dos mais extraordinários.
—Também falo para si, amigo. Levante-se.
O outro encolheu os ombros, obedecendo.
— Saiam todos. Matarei aquele que faça um movimento suspeito. Você, sheriff, deixe aqui a artilharia.
O representante da lei em Golden Hill, maldizendo, deixou cair os seus revólveres no chão. Deu-lhes um pontapé para descarregar a sua fúria em algo. Rody, Carey pôs-se a um lado e todos saíram. Ninguém tentou comprovar a sua fama de atirador que já era bem conhecida e indiscutível em todo o sudoeste dos Estados Unidos.
Simpson, branco como a cal, saiu primeiro. Pensava que o insulto dirigido à estirpe de Carey lhe custaria a vida. Mas estava seguro de que enquanto o filho do foragido necessitasse dele não haveria mal.
Desceram para o andar debaixo e então Carey voltou a falar.
— Não tema pela sua vida, Simpson, e anime-se um pouco. Não temam pelas vossas vidas, se cumprirem com o dever de humanidade que vim pedir-lhes.
Cardigan voltou-se ligeiramente para ele, sem deixar de avançar para a porta.
— Nesse caso, sobram os revólveres, Carey. Nós os três vamos desarmados.
O interpelado, com um sorriso amargo, guardou as armas na funda.
—Já vêm que vim por paz. Algum dia, sheriff, o senhor e os seus colegas do resto do território reconhecerão que não sou um assassino, e que matei os irmãos Brakam em justa vingança duma mulher. Mas agora não tenho tempo para tratar disso. Abram essa porta e verão um carro parado em frente da casa. Tenho que reconhecer que o roubei, mas o dono e o seu cavalo estão a salvo no meu esconderijo do deserto. O animal que vem nessa carroça é o meu cavalo «Leo». Debaixo da lona encontrarão o meu filho. Picou-o um lacrau há uma hora. Vamos, abram!
Simpson não pôde reprimir um sorriso malicioso.
—Matou os irmãos Brakam, os homens mais ricos da região, por causa duma porca índia.
O olhar de Carey desta vez foi um olhar cheio de ódio.
— Vim decidido a respeitar-lhe a vida, Simpson. Não me faça mudar de intenção.
Mas agora, tanto o médico como Cardigan, sabiam que eram inúteis as ameaças de Carey. Sabiam que o tinham à sua mercê enquanto o filho não tivesse sido curado, e sabiam, além disso, que não estava decidido a matar. Era suficiente para pensar em reembolsar os cinco mil dólares da captura.
Os dois sabiam, por experiência, que quando um fugitivo cai, é precisamente quando tenta conduzir-se com honradez.
Ao abrir a porta viram um carro. Saíram os quatro, e entre Simpson, Cardigan e o outro que os acompanhava, tiraram o rapaz, levando-o ao colo para o interior da casa.
Duma janela em frente, que estava quase às escuras, um homem contemplava a manobra. Simpson sabia que o juiz Bradley, velho puritano amante da solidão, lia todas as noites a Bíblia sentado junto da janela do seu quarto. A lâmpada que o alumiava nessas ocasiões era de escassa potência, com abat-jour de metal que impedia que a luz se estendesse para o exterior. Como estava colocada ao nível inferior do parapeito da janela, desde a rua parecia que o quarto estava às escuras. Persuadido de que aquilo tinha chamado a atenção do velho, que estaria olhando através da janela, Simpson traçou com a sua bota direita, no chão da rua, um raio que imitava toscamente uma flecha. Esse raio apontava diretamente ao cartaz em que se ofereciam aqueles cinco mil dólares de recompensa.
Carey, atento a que seu filho fosse trasladado sem violência, não reparou naquela manobra do médico.
—Entraram todos, e fecharam a porta.
- É um magnífico exemplar da raça humana —disse o indivíduo de óculos partidos, falando pela primeira vez.
—Se da mesma maneira que se fazem feiras para cavalos, se fizessem feiras de homens, este cachorro ganharia um prémio. Que idade tem?
— Dez anos — respondeu Carey, extremamente comovido. —É todo o meu orgulho, e hoje por hoje, a única coisa que me ata à terra.
Simpson dirigiu ao foragido um olhar malicioso.
—De modo que o picou um lacrau, hem? Bem, estenda-o ali.
Passaram para o quarto seguinte, onde havia uma mesa e dois armários com frascos de medicamentos.
—Deitem-no. Vamos ver essa picadela.
O rapaz sorriu debilmente e indicou ao médico um rasgão nas suas calças, à altura do joelho esquerdo.
Simpson aproximou-se, olhando a picadela.
—Hum! O veneno está localizado, mas isto tem mau aspeto. Terá que deixá-lo aqui.
Carey pôs-se pálido. E então o desconhecido interveio outra vez.
—Tenho a honra de ter sido expulso de quatro universidades europeias, e de ter sofrido a picadura de todos os animais daninhos, incluso a mulher. Portanto, é possível que possa entender algo disto.
Depois de olhar e apalpar o inchaço da perna, dirigiu-se a Simpson:
— Não é necessário que este rapaz fique aqui, na minha opinião. Se me derem um par de instrumentos, deixá-lo-ei em condições de poder andar. Sou médico. Chamo-me Luttell.
Uma luz de esperança brilhou nos olhos de Carey.
— Não ouviu? Dê a esse homem o que ele pede!
— Você e ele estão loucos! —gritou Simpson, tratando de ganhar tempo. —. Este homem não tem licença para exercer em nenhum lugar dos Estados Unidos. Foi expulso por bêbado e jogador de todas as partes! Se você quer perder o seu filho, faça caso dele, Carey.
O interpelado olhou, inquieto, Luttell, que tinha encolhido os ombros. Mas houve algo na expressão deste que o convenceu.
— Se recorri a si, Simpson, é porque não há outro médico em trinta léguas em redor, mas saiba que conheço a sua má fama, e que não me fio muito nas suas malditas negaças. De modo que entregue a este homem o que lhe pede ou averiguarei de que cor é que tem os miolos.
O sheriff leu nos olhos de Carey algo que não lhe agradou nada.
—Faça-o, Simpson. Obedeça a esse homem, e acabemos de vez.
O médico abriu a maleta, atirando-a sobre a mesa. O homem dos óculos partidos escolheu sem perda de tempo um bisturi e umas pinças. Ainda que o seu hálito cheirasse a álcool, era agora outra a luz dos seus olhos, e todos os seus movimentos revelavam uma grande perícia.
– És valente, rapaz?
—Faça o que quiser, doutor.
— Bem. Se minha mulher não tivesse sido uma leviana, ter-me-ia agradado ter um filho como tu. Quando te doer, mete na boca este lenço do velho Luttell.
E introduziu-lhe entre os dentes um lenço desbotado e de mau aspeto. Em seguida, sem se deter a raciocinar, traçou um comprido corte ao longo do inchaço, abrindo-o.
Milton Carey afogou um gemido. Com uma perícia que fez brilhar os olhos de Simpson, Luttell verificou uma sangria e cortou pequenos fragmentos de músculo que lhe pareciam suspeitos. Depois passou pela testa a mão direita, que nem sequer tinha lavado.
— Necessito de álcool para desinfetar isto—disse.
— Não ouviu? — gritou Carey para Simpson, olhando-o.
O médico tinha álcool numa das gavetas da mesa contígua, mas não o disse. Que morressem aquelas duas malditas baratas do deserto, pai e filho.
— Não há em casa — afirmou. — Precisamente amanhã tinha que o ir buscar.
Luttell lançou um grunhido, e extraiu do seu bolso traseiro uma garrafa chata, meio cheia de licor. Bebeu um bom trago, e depois, limpando o gargalo com a manga, esvaziou o resto do conteúdo sobre a carne viva do rapaz.
— Traga ligaduras, ou algo. Disso deve ter.
Daquela vez, Simpson não pôde negar-se e abrindo uma das gavetas da mesa aludida, extraiu um rolo de ligaduras que atirou sobre a mesa em que jazia Milton Carey. Luttell, com movimentos rápidos, ligou-o com mestria.
— Isto cicatrizará sozinho, amigo. Ainda que tenha que lavar a ferida cada vinte e quatro horas. Vamos, levanta-te.
Milton Carey assim o fez, sorrindo debilmente, e naquele momento abriu-se a porta com um pontapé. Os dois disparos soaram quase simultaneamente com um intervalo de frações de segundo. O primeiro partiu de um homem que tinha aparecido debaixo do portal e a bala arranhou Rody Carey num braço. O segundo partiu dum dos revólveres do foragido, que se tinha voltado a tempo de «sacar», e o projétil sacou a boca do intruso.
Um repentino tumulto fez-se então no exterior. Como se vários homens tivessem estado aguardando aquele sinal, uma verdadeira saraivada atravessou o espaço livre da porta. Rody apoiou-se na parede, enquanto seu filho se atirava ao chão. O doutor Luttell, Simpson e o sheriff inclinaram-se com os braços no alto.
Eram cinco homens os que tinham sitiada a habitação desde o vestíbulo. Os cinco dispararam quase ao mesmo tempo, e outra chuva de chumbo desmantelou as paredes.
Atiraram por cima das cabeças de Cardigan e dos dois médicos, com o fim de aterrorizar Carey. Mas nas feições deste que estavam rígidas, não havia o menor assomo de temor.
Pelo som dos seus disparos, adivinhou onde estava um dos sitiadores, e atravessou a porta de um salto, fazendo fogo duma só vez. O ajudante do sheriff, que naquele momento se dispunha a apertar o gatilho, soltou o seu revólver com a mão atravessada.
Houve um gemido e uns momentos de angustioso silêncio.
— A casa está cercada, Carey, e ainda que não o estivesse, este quarto não tem janelas. Sou o segundo ajudante do sheriff Cardigan. Entrega-te, ou teremos que ter o trabalho de matar-te. Se o fazes, prometo-te que contarás com o júri, e haverá um processo em regra.
Rody Carey sorriu sem perder a rigidez das suas feições.
—Há dois inconvenientes, amigo: que conheço essa classe de júri, e que me ficam balas suficientes para todos vós e vossas famílias. Deixem sair o rapaz e depois venham para mim se são capazes.
Cego pelo amor paternal, Rody Carey cometeu naquele momento um erro fatal. Nenhum dos assaltantes tinha suposto que aquele rapaz loiro que estava deitado no cão, junto de Cardigan e ao qual podiam atirar perfeitamente com os seus revólveres, pois não se tinha movido da posição inicial, fosse o filho do foragido.
Diante daquela declaração que não esperava, um sorriso sinistro aflorou às faces do que minutos antes tinha falado.
—Está bem, Carey. Tu mesmo nos disseste tudo o que necessitávamos saber. Entrega-te ou esvaziaremos a cabeça do rapaz.
Para corroborar as suas palavras, fez um disparo de revólver que arrancou cabelos da cabeça do rapaz.
— Não tenho má pontaria, Carey. Se teu filho se move uma polegada, atravessá-lo-ei. E o mesmo farei se não te entregas antes que conte até cinco. Um...
Um suor espesso banhou as até então serenas feições de Rody Carey, e a sua expressão impassível transformou-se numa careta angustiosa.
—Dois... sabes contar até cinco, Carey? Três...
O foragido fechou os olhos, aligeirando a pressão dos seus dedos sobre a culatra do revólver.
— Disparem sobre o meu filho, e eu atravessarei o sheriff e Simpson! —disse como último argumento para resolver aquela desesperada situação.
O representante da lei em Golden Hill tinha fama de homem desapiedado e brutal, mas não era um cobarde.
-- Mata-o, Larsen, e não faças caso das suas bravatas! Cumpre com a tua obrigação e não te preocupes com o que me possa suceder!
O segundo ajudante, sem dar resposta a estas palavras, continuou contando:
—Quatro!
Rody olhou seu filho. Este tinha uma expressão serena, mas os seus olhos estavam dilatados por um terror que os seus poucos anos tinham tornado impossível de dominar. Era evidente que via com toda a clareza os revólveres que lhe estavam apontados. Ao adivinhar cravado nele o olhar do seu pai, levantou o rosto.
—Não te preocupes por mim. Foge! Ainda podes fazê-lo.
—Cinco!
Uma bala arrancou lascas da perna da mesa, junto da cabeça do rapaz.
— A próxima será a matar, Carey. Esgotei a paciência.
Simpson suava de angústia pensando que o foragido talvez se decidisse por acabar dignamente os seus dias entre um mar de sangue. Se era assim, o primeiro balázio o receberia ele. Por isso suspirou ruidosamente quando os revólveres de Carey chocaram contra o chão.
— Está bem. Terminámos.
Saiu do quarto com os braços no alto, passando por cima do cadáver que obstruía a porta. Cinco homens se puseram em pé, apontando-lhe os revólveres.
— Aproxima-te, Carey!
Ia a fazê-lo, mas Simpson deteve-o. Apenas lhe chegava ao ombro, e dava a seu lado a impressão de um anão. Com os punhos cerrados golpeou-o raivosamente no rosto, intentando atingir-lhe os olhos.
—Mataste dois homens por uma porca índia, Carey! Mataste dois homens e querias dar-me ordens a mim, a Simpson, como se fosse um da tua laia! Esta mesma noite irás para a forca! Faremos contigo uma procissão até à árvore, à luz das tochas! E antes dar-te-ei isto! E isto! E isto!
Batia com todas as suas forças, retorcendo-se completamente diante do prazer de ferir sem risco. Rody, sem mover-se, lançou-lhe uma escarradela na cara que fez cambalear o homenzito, por causa da surpresa. Ia a continuar a bater, quando o juiz o fez parar com uma ordem seca:
— Compreendi o que queria indicar-me, Simpson, e atuei com toda a rapidez. Mas diante de mim não maltratará esse homem, se é que as suas forças lhe permitem maltratar alguém. Afaste-se!
Com uma correia, dois dos homens do sheriff ataram nas costas as mãos de Carey. Um dos homens saiu correndo para a rua, e daí a poucos instantes regressava com um cavalo. Era um cavalo negro e velho, que era empregado precisamente para aquelas missões porque não se assustava nunca, e jamais lhe ocorria sair do caminho.
— Bem. Ata-o ao lombo com muito cuidado. Esse bicho já sabe o caminho da forca.
Dois homens levantaram pelas axilas Carey. Outros dois tinham-se posto a olhar ambos os extremos da rua escura, com as armas dispostas, para enviar uma chuva de chumbo junto das botas de quem se atrevesse a aproximar-se demasiado. Dois linchamentos seguidos em Golden Hill tinham decidido o sheriff a tomar medidas radicais e expeditas. Estava orgulhoso delas, e pensava firmemente ter no bolso os piores díscolos da povoação.
—Acima com ele!
Naquele momento, quase confundindo-se com a ordem de Cardigan ouviu-se outro «acima», mas este muito diferente.
— Alto, levantem as mãos!
Milton Carey, com as suas calças rotas, a sua perna ligada e os seus dez anos tinham aparecido debaixo do alpendre, na porta da casa. A sua mão direita empunhava um revólver de grosso calibre, que Simpson reconheceu imediatamente como seu. Todos se olharam assombrados, e o seu primeiro sinal instintivo foi obedecer. Milton Carey não lhes deu tempo para reagir.
--- Desatem esse homem!
Como ninguém se mexia, apontou diretamente o seu revólver para a cabeça do homem mais próximo do seu pai.
— Desata-o ou faço fogo!
Um só puxão bastou para deixar livres as mãos de seu pai, que se pôs em pé dum salto, apoderando-se antes do revólver que o agente do sheriff que lhe estava próximo.
— Solta «Leo» e monta nele! Eu te cobrirei!
O rapaz assim o fez. Com grande habilidade, desamarrou o cavalo, mas, ao intentar montar sobre ele, não pôde. O inteligente animal, então, com um claro sentido do que pretendiam dele, agachou-se sobre as patas traseiras para que o montassem comodamente. Rody Carey dirigiu-se a todos com uma voz grave e cheia de ameaças.
— Sei que aqui se joga a minha vida, e não vou vacilar. Levarei por diante quantos seja preciso, se não me obedecerem. Deitem fora as armas!
Houve uma rápida troca de olhares entre os homens, que obedeceram com gestos lentos. Rody Carey, de um salto, montou o cavalo negro que devia tê-lo conduzido à forca, e cravou-lhe as esporas.
— Depressa, Milton! Depressa!
O cavalo encabritou-se e tentou derrubar o seu ginete, sem consegui-lo apesar de dois ou três torções que denotavam astúcia de velho. Em vista disso, pareceu decidir que o mais prudente era obedecer, e empreendeu atrás de «Lee» a corrida mais veloz que os seus músculos lhe permitiam.
Milton, seguro ao pescoço do fiel animal, apenas podia aguentar-se sobre o seu lombo, já que montava em pelo. Seu pai fez dois disparos para trás e duas mãos que se fechavam já sobre as armas, voltaram a abrir-se com um estremecimento doloroso.
Instantes mais tarde, e seguidos por uma gritaria infernal, saíam da rua, procurando campo aberto. Rody compreendeu que com aquele cavalo não ia muito longe, e tentou forçá-lo ao máximo para pô-lo ao lado do de seu filho.
— Quem te deu o revólver? — perguntou.
—Luttell. Disse-me que, em troca disto, quando voltássemos a vê-lo, tínhamos que convidá-lo para uma bebida.
— Saberás ir só? — perguntou ansiosamente Rody. —Eu necessito de outro cavalo para dar aos que nos perseguem uma pista falsa.
— «Leo» sabe o caminho, pai, e fará o possível por não me enganar. Podes deixar-me só.
Naquele momento saíam do povoado e enfiavam por outro caminho, acesso natural do mesmo, atrás do qual se estendia o deserto.
Rody Carey voltou as costas, depois de dar uma palmada em seu filho. Entrando a galope pela rua principal da povoação, dirigiu-se diretamente ao saloon, em frente do qual estavam atados vários cavalos de boa estampa. Desmontou do seu, e dispôs-se a agarrar um magnífico cavalo de orelhas tesas. Quando o fazia, um tropel de homens saiu do local, dirigindo-se para os seus cavalos.
Rody partiu a galope fazendo dois disparos no ar, como para dar o alarme. Não lhe prestaram atenção, pensando que se tratava de um dos que se dispunha a perseguir o fugitivo. Na realidade, ninguém teve tempo de fixar-se nele.
«Ter-me-ia visto num apuro se o dono deste cavalo chegasse a ser dos primeiros a sair» —pensou Rody.
Entretanto, Luttell era tirado aos empurrões da casa do doutor Simpson, e produzia-se com ele uma inimaginável cena. Por ordem do juiz, foi conduzido ao escritório do sheriff a fim de interrogá-lo. Para chegar ali tinham que cruzar por baixo de duas robustas árvores que davam sombra à única fonte do povoado. Simpson assinalou o grupo de mirones que tinham formado comitiva.
— Este homem é um bêbado expulso de vários Estados! — gritou do alpendre duma das casas. — Veio pedir-me ajuda, mas na realidade devia saber que Carey estava na povoação! Porque, se assim não fosse, como se teria apresentado na minha casa precisamente nesta noite? Ele ajudou-o a escapar, e merece a sua morte! Adiante, amigos! Demonstrem que há justiça em Golden Hill. Não há entre vós ninguém que saiba para que servem as cordas? Não é este o momento de deixar bem assente que em Golden Hill, nós, os cidadãos, somos quem executamos a lei?
Um rumor de aprovação partiu de dezenas de gargantas. Imediatamente, Luttell foi desalojado do seu casaco, e uma grossa corda passou de mão em mão. Os próprios ajudantes de Cardigan o empurraram a pontapé contra a árvore. Luttell não intentou defender-se. Pelo seu aspeto parecia muito tranquilo. Só, quando lhe puseram a corda ao pescoço, se voltou para Simpson para dizer:
—Eu ensinei-te cirurgia durante dez anos, Simpson, e ensinei-te como são os homens. Obrigado por me ensinares agora como são as hienas.
Todos se juntaram para puxar a um só tempo pela corda. Nesse instante soou um disparo. Simpson caiu com um buraco redondo entre as duas sobrancelhas, milimétrica e escrupulosamente colocado, igual a um trabalho de ourivesaria.
—Carey!
A exclamação partiu duma só vez de cem bocas. Rody tinha aparecido no extremo da rua, e com o seu cavalo detido à força de rédeas, empunhava o revólver com a direita, parecia desafiá-los a todos com uma audácia suicida.
—Fuja, Luttell! Esconda-se!
Ao médico nem sequer tinham atado as mãos; tão repentino tinha sido tudo, e tão-pouco tinha feito para defender-se, de modo que, com um só movimento, livrou--se da corda, e começou a correr para uma das casas.
Rody disparou contra um dos vaqueiros, que já empunhava o seu revólver, e traçou uma cortina de fogo com as quatro balas que lhes restavam no tambor, enquanto se lançava a galope para o centro do burgo.
As massas, por instinto, são cobardes. Bastou aquele gesto audaz e inesperado do fugitivo para que no grupo se produzisse um movimento instantâneo de desagregação, ficando um espaço livre por onde o baio pôde passar a galope, com os olhos injetados de sangue. Ainda assim, um dos vaqueiros foi pisado pelas ferraduras do animal.
A casa em cujo alpendre Simpson tinha caído, formava esquina e, dobrou-a velozmente, podendo assim evitar a primeira chuva de balas. Em seguida perdeu-se nas sombras da rua, que era uma rua lateral muito pouco transitada. Cavalgou junto das casas, pois supôs, com razão, que pelo centro da rua correriam ventos de chumbo ao fim duns instantes.
«Não sei se Luttell conseguirá salvar-se ---, pensou, enquanto galopava com a cara pegada ao pescoço do cavalo—, mas fiz o possível por ele. Oxalá algum dia volte a encontrá-lo no meu caminho!»
Mas teve que reconhecer que isto era muito duvidoso. O seu caminho não podia conduzir jamais do que à árvore do paraíso, naquele ou noutro povoado, não importava qual fosse o seu nome. Ao repassar mentalmente os trágicos sucessos daquela noite, dava-se conta de que não tinha salvação, e de que o seu corpo já era alvo para o chumbo e a carne para a forca.

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