quinta-feira, 25 de novembro de 2021

BIS116.12 De novo juntos e... para sempre

Pat Barton soube o que é sentir o hálito de um coiote junto do rosto, a baba pestilenta escorrendo-lhe pelas faces, pela boca, os golpes das suas garras pelo corpo, e a ameaça de uns colmilhos que lhe procuravam o pescoço num instinto feroz. 

Suportou aquela rude prova, que jamais esqueceria. Debaixo do coiote, esforçava-se a todo o custo por se desembaraçar dele. Com uma das mãos segurava o pescoço fortíssimo do animal, a fim de evitar que lhe fincasse os dentes; e com a mão livre procurava no chão, às apalpadelas, o «Colt» que lhe caíra. 

Milímetro a milímetro, o coiote ia aproximando dele a boca, enquanto lhe fincava as garras no corpo e grunhia furiosamente. 

Entretanto, as forças de Barton iam-se esgotando pouco a pouco. Mas não podia largar o pescoço do animal. 

Paradoxalmente, não pensava em si próprio, mas sim em John. Tinha de se salvar para o salvar. Com os dedos enterrados no pelo áspero do animal, lutava corajosamente para evitar-lhe as dentadas. E continuava procurando no chão o seu «Colt». 

Mas não, não conseguia encontrá-lo. Onde diabo teria ido parar? 

Repentinamente lembrou-se de John. Vira-lhe um revólver no coldre. E se conseguisse alcançá-lo? Esticou um braço. Não lhe chegava ainda. Um pouco mais e... 

Tateou a perna do irmão. 

Com o coiote em cima dele, arrastava-se pelo solo. Já estava mais próximo de John. Bastava agora estender um pouco ainda os dedos até conseguir tocar no «Colt». Agarrou-o finalmente e empunhou-o com força. 

Tinha os dentes do coiote quase sobre o rosto, o hálito da fera nauseava-o. 

Levantou o revólver, encostou o cano ao peito do animal e apertou o gatilho. Em lugar de se ouvir uma detonação, soou apenas o ruído seco do percutor ao encontrar o vazio. O revólver de John estava descarregado, talvez por esquecimento, talvez por precipitação quando saíra em busca de Claer para defender o irmão. 

Como que compreendendo o que se passava, o coiote intensificou os seus ataques e os' seus rugidos. Com os colmilhos procurou uma vez mais a garganta de Pat. E Pat voltou a apertar o gatilho, num desespero obstinado, num esforço inútil para se salvar. Aquele era, pois, o fim de uma vida de cobardia. Mas ainda não; tinha de continuar a luta. Tinha de salvar o irmão. 

A ideia ocorreu-lhe subitamente. Se o revólver não podia servir-lhe já para disparar, ser-lhe-ia ainda útil para golpear o animal com a coronha. Estranho era não ter pensado nisso antes. 

Desesperadamente, apertou, com mais força ainda, o pescoço da fera, e com o revólver golpeou-a repetidas vezes na cabeça. De novo, homem e animal rolaram pelo chão, até que este último, com o crânio desfeito, soltou um rugido longo, que Pat cortou com um derradeiro golpe do revólver... 

Depois levantou-se, cambaleando, ferido, e olhou um instante o cadáver do coiote. Quase lhe parecia mentira tê-lo vencido, continuar vivo, e John... 

Ah! John. 

Correu para junto dele e chamou-o: 

—John, ouves-me? 

Este não o ouvia. Tinha os olhos fechados, a boca contraída. Mas respirava ainda. Deixou-se cair a seu lado e aspirou profundamente o ar da madrugada, feliz por estarem vivos. John vivia e ele também. Mas se continuassem ali, quanto tempo resistiria John? Encontrava-se, na verdade, gravemente ferido. 

Voltou a pôr-se em pé e olhou angustiosamente à sua volta. Ninguém senão eles dois na imensa extensão do deserto. Eles, os moscardos que chegavam em grandes bandos, chamados pelo cheiro da carne morta, e os coiotes... Os coiotes já não eram perigosos... 

E os cavalos? 

Depois de muito olhar, viu os restos de um: os coiotes tinham dado boa conta dele. Os outros deviam ter fugido para longe... Tinha de renunciar a eles, tinha de empreender, a pé, a caminhada para Winona. E sem perder tempo. 

Abaixou-se, carregou com o irmão às costas e começou a andar. Tinham de chegar a Winona antes de voltar a cair a noite sobre eles. Outra noite ali e não poderia resistir ao ataque dos coiotes. 

Mas que longo e insuportável era o caminho! 

O sol, empenhado em persegui-los, não os abandonava um único instante. Nenhuma sombra, nem uma gota de água para beber. Apenas calor, calor, calor. A terra parecia desentranhar-se em fogo, lume. 

Poisou John no chão, secou o suor com a mão e voltou a olhar em torno de si. Continuavam sozinhos. Já nem sequer os corvos, ruidosos e agoireiros, vinham fazer-lhes companhia. Naquele momento ouviu que o chamavam: 

— Pat. 

— Quem... Ah! És tu, John? 

John, por fim, abrira os olhos, recuperara a consciência. 

— Pat — insistiu. 

— Que queres? 

— Nada. Aproxima-te. 

Aproximou-se dele e afastou-lhe o cabelo da fronte. 

— Vês? -- disse Pat. — Estamos juntos de novo. 

John sorriu e respondeu: 

— Sim, já estamos juntos outra vez. Para sempre, não é verdade? 

— Sim, para sempre. John tentou levantar-se. 

Ergueu a cabeça e olhou em volta. Perguntou: 

— E Claer? 

— Não te preocupes com ele. Não voltará a Winona nem a nenhum... 

— Morreu? 

— Sim, morreu... 

John cravou os olhos no irmão. 

—Foste tu? 

Estaria a censurá-lo por a ter feitos? Mas porque havia de censurá-lo? 

—Fui obrigado a fazê-lo — confessou. Se não ter-te-ia matado a ti. 

— Ah! Bem. E, agora, que fazemos aqui? 

— Vamos para Winona. 

— Julgas que seremos capazes de lá chegar? 

—Claro que sim — garantiu Pat. — Vem, apoia-te a mim. 

Ajudou-o a levantar-se, John passou um braço sobre os ombros de Pat e disse: 

— Vamos. Sinto-me muito mal, Pat... 

Começaram a andar, sob o sol de fogo, pisando aquelas pedras e aquela terra que queimava coma uma fornalha. 

—Temos de chegar a Winona antes de cair a noite—disse Pat. 

— Porquê?

— Os coiotes. A noite passada…

Então John reparou que o irmão ia ferido, notou os arranhões que tinha no peito e nos braços. Quis aliviá-lo, caminhar sozinho e esteve prestes a cair. 

Pat agarrou-o. 

— Por que deixaste de apoiar-te a mim? 

—Também vais ferido. 

— Não importa. Agarra-te outra vez aos meus ombros. 

O pior era o sol e não terem uma gota de água. O pior era a distância que ainda os separava de Winona. 

Continuaram a andar até que John, esgotado, vencido, pediu: 

— Vai tu, Pat. Deixa-me. Eu já não posso mais. 

E era verdade. Cada passo que dava custava-lhe um esforço enorme. Sentia a vista nublada, de novo o pesa da inconsciência descia sobre o seu espírito. 

— Vai tu, Pat — repetiu. 

Pat teve de segurá-lo com mais força, para evitar que caísse. 

—John! John! — exclamou. 

O irmão não o ouvia. Não respondeu. «Abandonar-te aqui?» — pensou Pat. Talvez antes do que acontecera com Claer o tivesse feito; mas agora pensava de maneira muito diferente. Encontrara-se a si, mesmo. John era seu irmão, e se havia de morrer, morreriam as dois. 

Descansou um bocado. Depois reatou a penosa marcha pelo deserto com John às costas. A cada, instante era obrigado e parar para descansar. Mas não descansava muito. Receava que as forças o abandonassem definitivamente e a noite os surpreendesse no deserto, a noite e o coiote... 

Caía a tarde quando transpuseram o desfiladeiro dos «Montes Sombrios». No outro lado abria-se, prometedora, a planície que conduzia a Winona. 

As reverberações dos últimos raios de sol feriam os olhos de Pat a ponto de cegá-lo. Por último, sem largar o irmão, num supremo esforço de vontade, andou às cegas, guiando-se pelos distantes relinchos dos cavalos e os mugidos das vacas. 

O ar trazia-lhe um rumor constante de vozes, de vida. Quis acelerar o passo, alcançar as primeiras casas da cidade, e tropeçou com uma pedra. 

Caiu no chão. John caiu com ele. Ainda quis seguir paira a frente, puxando pelo irmão, arrastando-se sobre os joelhos, até que já não podia mais, até ficar inconsciente…

Quando (abriu os olhos de novo, era já noite. Uma noite em que o ar, anunciando tormenta, tinha tonalidades de mistério, no silêncio infinito. 

Pôs-se em pé, penosamente. Tudo lhe parecia estranho: o céu carregado de nuvens, o vento, a terra, as suas mãos manchadas de sangue, as suas roupas despedaçadas, a sua própria presença ali. 

Tinha esquecido tudo. Quis começar a andar e tropeçou num objeto qualquer. Que era aquilo? 

Um homem? Sim, era um homem. E aquilo que brilhava ao longe? Os olhos dos coiotes? 

Sobressaltou-se com os seus próprios pensamentos. 

Mas aquilo que brilhava ao longe estava quieto. Pareciam luzes de casas, luzes de... 

—Winona — exclamou. E o homem que estava a seus pés era o irmão. 

As recordações acudiam-lhe em tropel à imaginação. Claer atacando John, a ponto de matá-lo. Ele, sacando o «Colt» e disparando contra o proprietário, do «Ás de Copas». 

Depois, a longa noite esperando o ataque dos coiotes... A sua luta com as feras, e agora... 

Sacudiu John levemente e chamou-o: 

— John, ouves-me? 

Ante o seu silêncio, optou por deixá-lo tranquilo. 

O que importava era chegar a Winona, levá-lo dali; porém

Tentou erguê-lo do chão. Impossível. Estava esgotado. Mal tinha forças parai se manter em pé. E se o deixasse ali e fosse procurar auxílio? Naquele lugar já não existia o perigo dos coiotes. Além disso, sozinho, chegaria mais depressa a Winona. 

Decidiu-se por esta ideia. 

— Volto já — murmurou como se John pudesse ouvi-lo.

E começou a andar na direção de Winona. Pelo caminho, pensou que talvez John tivesse morrido. Pois, por que estaria tão imóvel? Por que não teria respondido, ao seu chamamento? 

Winona não estava tão perto como parecia. Levou bastante tempo a chegar lá. As ruas estavam silenciosas e solitárias. Ninguém viu chegar Pat Barton, quase de rastos, apoiando-se às paredes das casas. E se alguém o tivesse visto, tê-lo-ia tomado por um bêbedo de tal modo cambaleava. Experimentou a deprimente sensação de se encontrar numa povoação abandonada. 

Começou a chover, mas a casa do juiz estava perto. Paira lá se dirigiu Pat. Teve de bater várias vezes até que o ouviram. 

—Quem é? — perguntaram de dentro. 

— Sou eu, Pat Barton. 

O juiz Smith abriu a porta. Imediatamente não o reconheceu. Tão mudado se apresentava que o magistrado teve de fazer um grande esforço de imaginação para relacionar o homem sujo e esfarrapado que batia à porta com o irmão do xerife. 

—Mas és tu, Pat? — exclamou assombrado. — Entra. 

Fê-lo entrar em casa, enquanto chamava a filha. 

— Ann, vem cá já. 

Esta veio, rapidamente. 

—Que aconteceu, Pat? — perguntou assustada. 

Pat tinha muita dificuldade em falar. Que poderia dizer? Que tinha deixado John a uns metros de Winona? Que talvez estivesse morto quando o deixara para ir procurar socorros? Sobre uma caldeira, roupas ainda por terminar, o vestido de noivado de Ann, tecidos, bordados à espera de que chegasse o dia do seu casamento com John. 

Ann pensou que algo de grave sucedera ao seu noivo e perguntou: 

—E John, Pat, onde está? 

—John? 

—Sim, John!

Agora era o juiz quem perguntava. Todo o dia o tinham esperado. 

— Há quase dois dias que não o vemos por aqui — acrescentou a rapariga. 

Pat tinha os olhos fitos no vestido de noiva. Depois olhou para o juiz e por último para Ann. 

— Aconteceu uma coisa que... não sei — respondeu. 

Ann pegou-lhe braço e pediu.: 

— Diz-nos tudo, Pat. Que aconteceu a John? Também não temos visto Claer por aqui — disse o juiz. 

— Morreu — informou Pat. — Eu mesmo tive de matá-lo, porque se não... 

— Se não o quê...? — interrogou a jovem. 

— Se não teria matado John. 

Ann apertou-lhe o braço. 

--- Então, vive. Diz-me que vive, Pat. 

E Pat meneou o cabeça, hesitante. 

— Não sei — respondeu. — Vinha gravemente ferido…

— Onde está? 

Pat ergueu o braço e apontou para fora, para o «Deserto Amarelo». 

— Tive de deixá-lo — esclareceu. — Não podia mais — concluiu numa justificação. 

E como para demonstrar que não podia mais, deixou-se cair numa cadeira esgotado. Pediu: 

— Vão buscá-lo. Morto ou vivo quero tê-lo ao pé de mim. 

— Morto ou vivos? 

Ann voltou os olhos para o vestido de noiva, aquele vestido que estava; costurando com tanto carinho O juiz ordenou: 

— Trata de Pat, Ann. Vou chamar alguns homens para que me acompanhem. Vou buscar John. 

Pat precisava de que tratassem dele. Ann foi buscar água e pôs-se a lavar-lhe as feridas. O juiz Smith tinha saído já de casa. Passadios alguns minutos ouviram o galopar de uns cavalos. Também viram, pela janela, que os que iam em busca de John levavam lanternas para ajudar a encontrá-lo 

— Já foram — anunciou Ann. 

—Ainda bem — murmurou Pat. 

E ambos pensaram em John. Se estaria vivo morto, se aquele vestido que Ann tinha sobre a cadeira ainda viria a servir... 

— Se morreu, vou para freira -- decidiu a jovem. 

— Espera, espera um pondo. 

Esperaram. Ann terminou o curativo e perguntou: 

— Queres deitar-te, Pat? 

— Não, esperarei aqui, até que volte ou…

Ann sentou-se a seu lado noutra cadeira, contando os minutos, aguardando impaciente o regresso do juiz e dos homens que tinham ido em busca de John. 

— Devia ter ido com eles — comentou Pat. 

— Não terias podido lá chegar. Aliás... 

Calaram-se. Escutavam o galopar de cavalos, aproximando-se dali… 

— Aí vêm — disse Pat. 

Ann levantou-se da cadeira e correu para a porta, nervosa, preocupada. Pat tentou levantou-se e voltou. a cair sobre o assento. Também ele eslava nervoso. 

Os que se dirigiam para ali passaram de largo. 

—Não são eles — lamentou-se a jovem, e voltou para junto de Pat. 

—Talvez não o encontrem.

De novo a espera, angustiosa, inquietante. Até que de novo, o galopar de uns cavalos—

Ann voltou a saltar da cadeira e a correr paira a porta. 

—São eles, Ann? 

—Sim, são eles. 

Acabava e ver as lanternas pendentes dos selins dos cavalos e o pai à frente dos cavaleiros. 

Pararam à porta. Num dos cavalos traziam um homem atravessado, imóvel. Morto? 

Ann afastou-se um pomo da porta, encostando-se à parede. 

—Trazem-no, Ann? — perguntou 

Ela não respondeu. Deixou passar os que tinham ido à procura de John. Introduziram-no em casa. 

Um dos homens pegava-lhe pelas pernas, outro pelos sovacos. 

— Cuidado, rapazes — dizia o juiz. 

«Cuidado, porquê?». Se estava morto, já não requeria tantos cuidados. Seria que...? 

Ann foi atrás dos homens, sem se atrever a perguntar. 

O juiz Smith continuava a recomendar: 

—Cuidado, cuidado. 

Deitaram John em cima de uma cama. 

Ann Smith aproximou-se. 

—Está...? — começou a perguntar. 

O pai interrompeu-a. 

— Vivo, sim. Anda, vai buscar o necessário para o tratar. 

Ann Smith olhou para o pai, olhou para John, olhou para os homens que tinham ido buscar o seu noivo, e, por último, perguntou a Pat: 

—Ouviste, Pai? 

Pat Barton assentiu com e cabeço e sorriu, também.

Ann correu a buscar o que o pai lhe pedia.


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