terça-feira, 2 de novembro de 2021

ARZ133.07 Luta por uma mulher bela, mas enganadora

 Passara um mês desde o assassínio de Roy West. Ruth, a jovem viúva, nada pudera revelar ao xerife, porque nada sabia. 

Embora a conspiração do silêncio começasse a ceder, ainda se mantinham muitos pontos escuros e algumas personagens-chaves davam a calada por resposta. O que parecia esclarecido era a origem da fortuna do jornalista: recebera uma parte dos lucros da diversão, sem que o xerife soubesse qual fora a sua participação no negócio. Entre Perry Douglas e Coleman estava o segredo. 

Uma noite, O'Farrell encontrou no restaurante de «mister» Halper o juiz Copeland. Jantaram juntos numa mesa afastada. 

— Vejamos, xerife -- disse Cove S. Copeland, entre duas garfadas. — Cada dia que passa, prendemos mais curtos os jogadores. Conforme você recomendou, publicou-se uma ordem judicial destinada a sanear a festa do «rodeo». Consta-me que terminaram as trapalhices. 

— Fi-la cumprir à risca, como sabe. Só me resta fazer falar Lew. 

— Negou-se redondamente a falar? 

— Sim, armou em parvo, e sabemos que conhece pormenores importantes. Pensei fazê-lo desembuchar à força. Que lhe parece? 

O'Farrell virou um pouco a cabeça e viu Sandra atrás dele, imóvel como múmia, com uma travessa nas mãos. Entreolharam-se. 

— Como estás, Sandra? Se Alex te incomodou outra vez, diz-me e pendurá-lo-ei numa árvore. 

— Não, nunca mais apareceu por cá. Tem-lhe medo. 

— Estás muito bonita, hoje? Tens noivo? 

Sandra Halper, que até ali fora toda doçura e olhara com profunda admiração, transfigurou-se num instante e fez uma careta de furor selvagem. 

— Oh! 

Girou sobre si mesma e correu para a cozinha. 

— Não tem importância; é uma garota esquiva — desculpou-a Philips, sem reparar que a senhora Halper, de outra mesa, o fitava maternalmente. 

Copeland não prestou atenção à cena. Pensava noutra coisa. 

— O prefeito esteve esta manhã no meu gabinete. Oferece quinhentos dólares à pessoa que identifique ou capture o assassino de West. 

—É um gesto louvável. Notei que Tyler deseja colaborar connosco. 

— Sabe quem era o chefe dos pistoleiros que mataram Cassidy? — perguntou, olhando-o nos olhos. 

— Não. Eram desconhecidos. 

— Chegaram do Texas dias antes e hospedaram-se num hotel próximo do embarcadouro. Foram contratados por Douglas. 

— Douglas? — surpreendeu-se o xerife. — Quem lhe disse isso? 

— Max Tyler surpreendeu uma conversa entre Coleman e Robert. 

— Ah, esse pássaro do Coleman! Está em toda a parte. É o primeiro suspeito. 

— Tenha cuidado com ele. Está ligado a Douglas e também o estava a West. Mataram-no porque os estorvava. Bom, isto é o que eu suponho. 

Saíram para a rua e despediram-se friamente. O'Farrell dirigiu-se para o embarcadouro. Causou-lhe uma penosíssima impressão o contraste que existia entre o «saloon» flutuante e o «Loving Rate». Não se tratava já, de as noites estarem frescas, mas sim do facto de os espectadores se terem divorciado do verdadeiro teatro. Na dura concorrência entre o bom e o mau, triunfava este devido ao dinheiro e aos politiqueiros. 

A indiferença que o público sentia pelo «saloon» de Dondée era outra prova disso. O «saloon» resplandecia como uma joia iluminada, ao passo que o teatro estava mergulhado numa triste semipenumbra. Faltavam bicos de gás e os espelhos destinados a refletir a luz tinham sido partidos pelos bêbedos ou levados pelo vendedor, por falta de pagamento. Era um desastre, não precisamente por culpa de Chapman e da sua companhia. 

Entristecido, o xerife esperou uns minutos ao pé da prancha. As pessoas aglomeravam-se em direção ao barco da frivolidade. Tal escassez de público houve naquela noite, não mais de vinte e cinco pessoas, que Chapman considerou que era ridículo representar a peça. Anunciou-o ao reduzido auditório. 

— Amigos! Bem desejaria continuar a oferecer-lhes as premissas da arte dramática. Suportando consideráveis prejuízos, temos prosseguido o nosso labor sem perder a nossa confiança no povo. Hoje, porém, é impossível prosseguir. Falo-lhes com o coração nas mãos. Com os bilhetes vendidos, não poderíamos pagar a despesa dos bicos de gás, dos poucos bicos de gás que me restam. 

Deixou-se cair numa cadeira, vencido e quase sem poder conter os soluços. Os artistas e o público procuraram animá-lo. Os atores, alguns famélicos, vestidos de acordo com a obra que iam representar, passeavam no palco e nos bastidores, pensativos e tristes. 

— Devo sessenta mil dólares a esse canalha do «saloon», que é a sanguessuga que me chupa o sangue. Ele é rico e eu sou pobre. Já por duas vezes tive lhe pedir ajuda. E um usurário, mas não o parece. Os meus artistas há três dias que não comem. Por isso, apenas por isso, irei procurá-lo outra vez. Será uma nova hipoteca. 

O'Farrell subira à coberta. Avançou depressa, saltando os bancos vazios. 

— Eh, xerife! — gritou então Max Tyler, sentado no seu camarote ao lado da esposa, que bocejava. — Isto não pode continuar assim. n urgente publicar uma ordem que limpe a cidade e proíba o jogo e a permanência prolongada dos «saloons» flutuantes. 

— O senhor pode arranjá-la? 

— Hei de poder! — exclamou, subitamente congestionado. Expulsarei a pontapé os vereadores que se opuserem à minha petição. 

— Não existe nenhuma ordem federal contra os «saloons» fluviais. 

— Não importa! Eu a arranjarei! 

O prefeito e a esposa dirigiram-se para o palco, passando pelo corredor que dava para os bastidores. 

— Susana e eu pensávamos dar-lhes uma pequena ajuda — declarou aos atores. — Chapman disse que estão sem comer. Ajudá-los-emos esta noite e amanhã. 

Disse isto em palavra atropeladas, sufocado de comoção. Ambos distribuíram oitenta e sete dólares, de maneira que cada um pudesse comer dois dias no restaurante de «mistress» Halper. 

— Já está, querido? — perguntou a mulher, bocejando. — Temos de dar mais dinheiro? Sempre tens dito que os atores são loucos! 

Tyler deu-lhe uma palmada no braço carnudo. Não lhe liguem importância. E mais surda do que uma porta. Saíram. Dez minutos mais tarde só estavam no barco Chapman e o xerife. Tudo parecia sombrio, até o luar que prateava as águas do Mississípi, que formavam uma caudalosa corrente, depois de ter recebido milhas atrás o caudal do Missouri. 

— Estou empenhado até aos olhos, xerife -- gemeu o empresário. 

—Por que teima em ficar em São Luís? Deixe isto e percorra as cidades do Ohio. 

— Nunca! Isso seria o mesmo que aceitar a minha derrota. Morrerei a lutar à frente do «Loving Kate», seguindo o exemplo dos meus maiores. 

— Então terá de se curvar diante de Douglas. Não compreende as suas verdadeiras intenções? 

— Compreendo, xerife, compreendo — reconheceu, mal--humorado. — De qualquer modo, é o único que me pode ajudar. Irei ao seu covil. Necessito de comprar toldos e de pagar à minha gente. 

Desceu à plateia de bancos. O'Farrell observou-o do proscénio, imaginando-o um pobre mendigo esfarrapado e com a barba suja que ia pedir esmola a sua excelência o cônsul da diversão. A sua figura alta e desengonçada, os olhos chamejantes, os lábios secos, os braços compridos e magros, atrás das costas... 

— Chapman! Espere; ainda tem uma oportunidade antes de se meter na boca do lobo. 

O interpelado não virou a cabeça nem deu a impressão de o ter ouvido. O xerife esperou ao balcão, a beber um copo de uísque. No palco atuavam as cançonetistas, as mesmas que quinze minutos depois cederam o lugar à apresentação da loura incendiária. Os espectadores começaram a gritar, entusiasmados. O homem da estrela seguiu a sua atuação com verdadeiro prazer. Várias vezes os seus olhos se cruzaram. Ela parecia gostar da presença de Philips. Pouco mais tarde, apareceu Chapman. À porta despediu-se do patrão e avançou ao encontro do amigo. Trazia um maço de notas na mão. 

— Quanto, William? 

— Pedi-lhe trinta mil, mas deu-me mais dez mil. 

— Sem assinar nenhum documento? 

— Disse-me que há confiança entre os dois. Aproximam-se as chuvas e preciso de madeira para cobrir o teatro. 

— Que importância lhe deve? 

— Cem mil dólares. 

— Os cem mil que lhe ofereceu pelo barco, lembra-se? 

Baixou a cabeça, abatido. 

— Pagar-lhos-ei breve. Nunca o venderei. 

Chapman não estava em condições de discutir o valor real do empréstimo, nem tão-pouco o significado daquela brandura num homem tão egoísta como Douglas. Absorto nas suas ilusões, alheio ao murmúrio do «saloon», saiu a pensar na melhor maneira de empregar o dinheiro. 

Phillips O'Farrell manteve-se no mesmo lugar, subjugado pela figura e pelas melodias de Piky Laura. Ela atraia-o apaixonadamente, com um amor reprovável que o podia levar a um conflito sangrento, como se fosse um pistoleiro mais. A paixão não admite a sensatez. 

Douglas não se encontrava na sala. Foi significativo que Laura, quando terminou a sua atuação, entre aclamações, se dirigisse ao encontro do xerife. 

— Você canta como os anjos -- gabou-a, segurando--lhe nas mãos, que ela lhe estendia. — Canta e representa. É uma pena deixar perder a grande atriz que há em si. 

«Miss» Laura fez uma careta. 

— A culpa é dos empresários pobretões. Eu não consigo ser atriz vivendo como uma vagabunda. 

— Quanto lhe paga Douglas? 

— Vinte vezes mais do que Chapman, e em dia. Além disse, gosto dos aplausos, que aqui são exclusivamente em minha honra. O público é tão generoso como Perry. 

— Perry Douglas é um pistoleiro presumido. 

— Ora! E um homem duro do Oeste. Paga-me bem, gosta de mim e não se cansa 'de me dar prendas. 

— Eu poderia oferecer-lhe um amor sincero, mas obsequiando-a com bugigangas em vez de joias. Sou um funcionário de justiça. 

— Um xerife com personalidade. 

Sentaram-se a uma mesa. 

— Diga-me, Laura, ama sinceramente o seu chefe? 

Os seus olhos verdes, tão expressivos, esboçaram uma expressão zombeteira. Encolheu os ombros. 

— Um bocadinho... Às vezes, parece-me um bruto sem escrúpulos. Odeio-o e amo-o ao mesmo tempo, enquanto espero que... você é um homem interessante, Philips. 

— A sua ironia magoa-me, Laura. Está a brincar comigo. 

— Oh, não! — exclamou, aproximando-se um pouco mais. — Quando o vi pela primeira vez, causou-me uma agradável impressão. Não deu por isso? 

A pergunta era um convite. Laura provocava-o com as suas palavras e a sua atitude, claramente insinuante. Tinha um formidável poder de sugestão, tão bela e desprovida de convencionalismos. 

— Que pensa, Philips? Estou dececionada consigo. Sempre me agradaram os homens apaixonados, suspensos dos meus gostos e desejos. 

Que podia fazer em tal situação um homem de carne e osso, com os seus apetites e paixões, por muito xerife que fosse? Tinha de atirar pela borda fora a sua preocupação de descobrir os assassinos de West e aproveitar a oportunidade que lhe ofereciam. 

— Vem cá, bela feiticeira! 

Abraçou-a pela cintura, como prólogo do beijo fogoso que, com a ardente complacência da galante artista, prolongou durante um bom bocado. O seu arrebatamento amoroso entusiasmava-o de tal maneira que não notou a chegada de um tipo vigoroso, que o segurou pelas bandas do colete, o afastou da rapariga e lhe deu um tremendo soco no queixo. A força do golpe arrastou-o uns metros pelo solo. Levantou-se em seguida, já com o «Colt» na mão. 

Perry Douglas acabava de dar uma bofetada a Laura e de lhe ordenar que abandonasse a sala. Ela afastou-se, soluçando de furor. 

— A intromissão na minha vida particular paga-se com sangue, O'Farrell. Julgava que você investigava a morte do meu amigo Roy, e não que tentasse roubar-me o que mais amo. 

O xerife rangeu os dentes, mas conteve-se. Devagar, voltou a meter o revólver no coldre. 

— Atacou-me à traição, Douglas. Nunca lho perdoarei — disse gravemente. — «Miss» Laura é uma questão pessoal entre nós. Interessa-me essa mulher. Neste momento não sou o xerife, mas sim o cidadão Philips O'Farrell. 

Pôs em cima da mesa a placa de xerife, num alarde de serenidade e de nervos de aço. Parecia um adolescente, mas a sua coragem e os seus músculos eram de colosso. No rosto largo e corado de Perry surgiu uma careta de expressão indefinível. Poderia ser de alvoroço ou de crueldade, de espanto ou de sarcástica superioridade. Olhou-o detidamente, com desprezo inaudito. O'Farrell permanecia calmo, sem que um só músculo da sua cara estremecesse. 

— Você assim quer, O'Farrell. -- A voz de Perry soou agressivamente. — Mas tenho pena de ter de lhe partir os ossos. Não devia ter feito o que fez. 

Não o impressionaram as palavras do pistoleiro. Saberia demonstrar-lhe que debaixo do seu corpo escondia uma vontade de titã. O xerife encontrava-se de costas para o palco, onde Piky cantava com outras artistas. Comoveu-o a sua voz. 

Apenas virou um pouco a cabeça para abranger com a vista a figura de Piky. Foi questão de um décimo de segundo. Perry atirou-se a ele e socou-o brutalmente. Um segundo murro fê-lo rolar pelo chão. 

Nenhum espectador ousou intervir na luta. Só se atreveram a olhar, deixando que os acontecimentos se desenrolassem a capricho dos contendores. Na realidade, a maior parte deles pertenciam à quadrilha de Douglas; o próprio Driver não se importou de soprar uma harmónica, festejando a vitória do chefe, Piky ficou imóvel no palco, com os olhos fixos nos homens que se atacavam selvaticamente. 

Perry deixou que o seu rival se levantasse. Crispou o punho e descarregou-o com toda a força num ombro do xerife. Com a esquerda, socou-o no peito e, sem lhe dar tréguas, agarrou-o pelo pescoço, volteou-o e fê-lo cair em cima de uma mesa, com evidentes sinais de esgotamento. 

Contudo, O'Farrell não estava vencido. Atirou-se ao seu inimigo com tanta contundência, movendo os braços como pás de moinho, que o seu último golpe o deixou no solo como um boneco desarticulado. Era verdade que os seus punhos tinham pólvora. 

— Que te parece, valentão? 

E sorriu. Mas aquele sorriso, que era o sinal do seu triunfo, desapareceu em seguida. Alex interveio por detrás, à traição. Bateu-lhe na nuca com o revólver e deixou-o sem sentidos. Assim, como uma fera, vingava-se do mau bocado que passara no restaurante de «mister» Halper. Piky recriminou-o duramente. 

— Não devias ter feito isso. É o xerife. Custar-te-á caro. 

Perry levantou-se com dificuldade. A primeira coisa que fez foi sacudir a artista. 

— Cala-te! Beijaste outro. Porquê? 

Ela chorou em silêncio. Depois, incompreensivelmente, descansou a cabeça no peito do bandido. 

— Perdoa-me; não sabia o que fazia. Tive medo por ti. O xerife está convencido de que mataste Roy. 

— Que pense o que quiser. Estou inocente. 

Alex carregou com O'Farrell e levou-o do salão. Pô-lo na coberta, num banco. Achava que não o poderia prender, pois lutara por uma questão pessoal. Deixou a placa e o revólver perto do ferido e regressou à sala. Perry interrogou-o com a vista. 

— Deixei-o na coberta, mas não creio que se atreva a desafiar-nos de novo. Achas que avisará o juiz? —perguntou Alex. 

— Espero que não, pois foi ele quem começou a luta, mas não devias intervir. 

Entretanto, quando o «saloon» já voltara à normalidade e o jogo prosseguia, Philips O'Farrell recuperou os sentidos. Levantou-se como um autómato. Estava aturdido e via confusamente. Pegou na estrela e guardou-a na algibeira no colete. Andou uns passos. Pós um braço numa coluna e apoiou a cabeça nela. Estava indeciso. Uma força empurrava-o para a sala e outra continha-o. Para que havia de continuar a zaragata? Seria suicida entrar outra vez e enfrentar aquela corja de assassinos, que desta vez defendiam o que lhes pertencia. 

Depois de muito pensar, decidiu retirar-se. Um exa-me de consciência não lhe dava razão. Compreendeu que se deixara deslumbrar pelo amor de Piky. Quem era ela? Uma mulher de «saloon», egoísta, pronta a beijar em troca de uma prenda; quanto mais sumptuosa fosse, mais ela daria. Compreendeu que lutava por Piky como um bandido qualquer. Não valia a pena lutar por uma mulher como «miss» Laura. Era muito bela, mas tão pérfida como enganosa. 

A despeito dos seus raciocínios, ainda se deteve no embarcadouro. Não podia afastar da mente a figura de «miss» Laura. Era quase uma mulher galante, mas tão bela! E dissera-lhe que não amava Perry... pensou que voltaria, ainda que só fosse para tocar com o dedo o sinalzinho travesso que tinha no pescoço. 


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