A brigada encarregada de fiscalizar os espetáculos do embarcadouro obteve um êxito que nem os mais otimistas esperavam. Com o prefeito Tyler à frente, que se convertera em seu paladino, patrulhavam o porto e até, desprezando os preceitos legais, obrigavam os clientes mais assíduos dos «saloons» flutuantes a mudar de caminho. Certa vez, uma multidão exaltada entrou na sala de jogo.
— Estas mesas têm batota! — gritou o organizador do protesto.
Puxaram de alavancas e machados e bateram brutalmente nas roletas e nas mesas de pano verde. Douglas não se encontrava lá e os seus ajudantes não se conseguiram opor.
Esta reação colérica e sistemática prejudicou gravemente os interesses do jogador. Parte da população, a mais ativa, juntara-se para o derrubar.
O segundo «saloon» flutuante, o de Mark Dondée, levantou âncora antes que fosse demasiado tarde. Perry esperou a sua oportunidade. Aquela situação não se podia prolongar.
Duppy, o diretor do «Mirror», recebeu uma comissão de comerciantes afetados pelas providências municipais.
-- Temos perdido clientes — informou o presidente da comissão. — Nas últimas semanas, não ganhámos sequer para as despesas. Que pode fazer por nós?
Duppy indicou as folhas impressas, com o cheiro característico da tinta de impressão.
— E um editorial contra a turbulência e a ilegalidade patrocinadas pela municipalidade. Se é mau o pecaminoso, não é melhor que a autoridade menoscabe as leis.
Os comissionados deixaram a redação convencidos de que a influência do «Mirror» se faria sentir a seu favor. E, no entanto, aconteceu precisamente o contrário. Os puritanos puseram piquetes no embarcadouro, proibindo a passagem aos viciados e aos amadores das variedades ou género teatral ligeiro. Por outro lado, um grupo de cavalheiros elegantes apedrejou os escritórios do jornal.
Naquela noite, Douglas encontrava-se na coberta do «saloon» a ver passar os espectadores para o teatro de William Chapman. Não eram muitos, mas os bastantes para se poder efetuar a representação, coisa que não acontecera nos últimos tempos.
O «Loving Kate» estava engalanado com os seus novos bicos de gás, toldos, uma bandeira brilhante com a inscrição «Loving Kate», grinaldas e galhardetes. O empresário recebia os espectadores ao portaló e apertava-lhes a mão, sorridente.
— Isto está feio, Mackley — murmurou Perry. — É possível que nos tenhamos excedido na expansão do jogo e da frivolidade.
De quando em quando, alguns clientes iludiam a vigilância e subiam ao «saloon». Outros viciados, que nada tinham a perder, lutavam corpo a corpo com os guardas e conseguiam às vezes dominá-los. Nalgumas mesas reconstruídas havia quatro ou cinco jogadores. Piky Laura cantava agora para trinta admiradores, no máximo.
— A morte de Coleman foi o nosso dobre de finados — refletiu o chefe. — Não compreendo por que motivo Barnes o matou à traição. Eram bons amigos. Coleman entregava-lhe parte do que nós lhe dávamos. Que terá acontecido?
— Coleman era muito reservado. Não nos informou com quem repartia os lucros, embora eu suponha que era Robert.
Olhou para o «Loving Kate».
— Estou a pensar em Chapman. Preciso do dinheiro que lhe emprestei.
— São cerca de cem mil dólares, não é?
— Sim. A última entrega foi há duas semanas. Perde muito dinheiro, quase tanto como nós.
— Tencionas reclamá-lo?
— Tempo perdido. Precisaria de dois anos, pelo menos, para pagar as dívidas, e isso contando que o negócio lhe corresse bem. Pensei outra coisa.
— A propriedade do barco?
Fez uma careta de prazer.
— O «Loving Kate» fascina-me tanto como o corpo de uma mulher formosa. Mais do que o de Piky Laura. Apropriar-nos-emos dele, ou, se falharmos, teremos de fazer um roubo em grande escala.
— No caso de continuar a campanha contra nós.
Da rua principal, que desembocava no embarcadouro, vinha um rumor que aumentava de segundo a segundo.
— Hum! Que quererão esses zaragateiros? Diabo, vem uma mulher com eles!
— Que pedirão? A nossa cabeça?
A manifestação mereceu a simpatia dos guardas, pelo que não teve dificuldade em chegar à coberta do «saloon». Sandra Halper, desgrenhada, sem o menor vestígio de limpeza, gritou desaforadamente:
— «Miss» Laura será expulsa da cidade. É uma impúdica! Avançaram, derrubando tudo o que encontravam.
— Para que queremos nós os revólveres, chefe? -- perguntou Alex.
— Não percas as estribeiras, rapaz. Tyler e os puritanos picam-nos para reagirmos violentamente e assim poderem culpar-nos de alguma morte.
A multidão exaltada entrou na sala. «Miss» Laura cantava então uma melodia da sua predileção, «Yes, Óklahoma». Ficou suspensa e aturdida, a olhar os braços que se erguiam contra ela.
— É um acto criminoso! — exclamou por fim, indignada por ter sido interrompida — Que pretendem de mim estes homens guiados por uma maluca?
— Queremos atirar-te ao rio — adiantou-se um puritano vestido de preto. — Envergonha-nos as tuas piruetas, as tuas canções obscenas, a tua cara pintalgada e as insinuações que fazes.
— Tudo nos envergonha de ti, mulher impudica! —acrescentou Sandra Halper, agitando os punhos e as tranças. — Perdeste os melhores homens de São Luís.
Piky Laura cruzou o olhar, cheia de cólera, com a rapariguinha de vestido sujo. Desceu do palco, levantando o vestido, o que entusiasmou os seus admiradores e repugnou os outros.
— Não digas disparates, malcheirosa cozinheira! Tens é inveja de mim. Olha para as minhas mãos, como são finas. As tuas são de pastora, gordas e sujas.
Deu um passo mais, ao encontro dos seus inimigos.
— És uma parva que gostas de um homem e não sabes como o atrair.
Sandra Halper soltou um rugido, como se fosse um puma diante da sua presa. Levantou também a saia, saltou uma mesa e caiu junto da artista. Agarrou-a pela cabeleira, dourada.
— Sandra Halper! Piky Laura! Separem-se imediatamente.
Estas palavras provocaram uma notável impressão nas contendoras, embora o seu efeito no espírito de Sandra fosse mais visível. Largou Laura e deixou cair os braços, calada, com a cabeça inclinada, como se fosse uma garota surpreendida pela mãe a roubar uma guloseima.
O'Farrell abriu passagem por entre a multidão e chegou diante da rapariga, que olhou de alto a baixo.
— Endoideceste, pequena? — increpou-a. — «Miss» Laura ganha a vida como o diabo quer. Não a podemos expulsar como se fosse uma mulher indesejável.
Piky Laura pôs as mãos nas ancas.
— Sou uma artista dos pés à cabeça. Ainda não lhe perguntei por que é xerife.
Os seus admiradores secundaram-na ruidosamente, enquanto os puritanos continuavam a chamar-lhe desavergonhada. O'Farrell teve de impor a ordem.
— Quanto a ti, garota — disse, segurando-a suavemente por uma trança —, é melhor ires para junto da tua mãe, descascar batatas e estrelar ovos. Ainda não sabes o que é mundo.
— Claro! Ainda não saiu da casca.
Sandra abanou a cabeça, muito irritada, e balbuciou palavras incoerentes. Repeliu a mão do xerife e, de súbito, quando parecia prestes a dar uma sova à loura, encostou-se ao peito de Philips O'Farrell e começou a soluçar.
—É uma má mulher que o quis atrair com a sua falta de vergonha.
Disse isto com tanta ingenuidade e sentimento, olhando-o nos olhos, que Philips não pôde conter um sorriso.
— Um dia, quando cresceres e cortares as tranças, terei o prazer de te apresentar o mais galhardo vaqueiro do Oeste, para que te faça a corte.
«Mias» Halper recebeu as palavras do xerife com estupefação e afastou-se dos seus braços.
— Hum... Este homem é estúpido como uma mula!
Não disse uma só palavra mais. Limpou as lágrimas a uma manga do vestido, suspirou e desapareceu na escada num abrir e fechar de olhos. Sandra era surpreendente; era difícil adivinhar como ia reagir e qual seria a sua atitude imediata.
— É uma garota deliciosa — comentou o xerife.
Ausente a principal animadora da manifestação contra «missa Laura, não podia acontecer outra coisa que tudo ficar em águas de bacalhau. O xerife convidou-os a sair. Os puritanos insistiram na sua repulsa pelo comportamento da artista. O'Farrell não se deixou convencer e acompanhou-os até à porta. Mas depressa regressou ao «saloon». Embora soubesse que Laura era propensa às más companhias, ao gozo desenfreado da vida e à paixão, não pusera por completo de parte a possibilidade de provar outra vez o sabor dos seus lábios.
— Surpreende-me muito que Douglas lhe tenha permitido sair sozinha. Como conseguiu escapar-se?
— Ufa! Não deu por isso. A morte de Coleman transtornou-o e está irritado com o prefeito.
— Porquê? Recebia ajuda dele?
— Não creio. Odeia-o pela quarentena que lhe impôs. Segundo dizia Coleman, Max Tyler era manobrável e não se preocupava com a propagação do vicio. Mas depois...
— Que pensa fazer Douglas? Assim não se pode manter por muito tempo. Encontravam-se sentados num sofá, muito juntos.
— Não gosto de Perry — disse a mulher, sorrindo-lhe. — Já não é poderoso. Imagino que acabará como assaltante de comboios e diligências.
O'Farrell não achou oportuno comentar tal apreciação. Através das suas palavras, Laura apresentava-se como a mulher sem escrúpulos que era. Não merecia a pena perder tempo com ela.
— Oiça, Laura, como recebeu Douglas a notícia da morte de Roy West?
Laura fez um gesto de aborrecimento.
— Ufa! Ninguém sabe quem o matou. Coleman e Perry discutiram diversas vezes o assunto. Perry era de opinião que o matara Barnes.
— Assim parece.
Piky Laura inclinou-se sem recato para o xerife. Este não podia resistir à tentação. Piky estava mais bela e provocante do que nunca. Afagou-lhe a cara. Beijaram-se com força. Muitas vezes, até que Philips se sentiu enfastiado. Afastou-a de si. Passou os dedos pelas faces da mulher e retirou-os sujos de creme.
Levantou-se, sem fazer caso do espanto da mulher.
— Que tens? Já te vais embora? — perguntou, incrédula.
— Não me agrada a tua companhia. As pinturas repugnam-me. Acreditava na tua juventude, mas agora verifico que é uma mentira, como a tua própria vida. Já não preciso mais de ti. Os teus lábios não são tão doces como calculava.
Deixou-a no sofá, com a boca contraída de amargura e as saias apanhadas por cima dos joelhos.
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