Pat e John tinham no sangue o espírito da aventura. Vinham de muito longe, de uma pequena povoação costeira de Maryland, onde tinham nascido. Ali todos acabavam por ser pescadores ou marinheiros; mas a eles atraía-os mais a terra do que o mar, mais as selvas inexploradas do que o oceano.
Integraram-se numa caravana e atravessaram com ela o Mississipi. Aquele rio, largo, com uma grande distância entre as duas margens, como se fosse um pouco de mar pela terra dentro, encheu de nostalgia os seus corações, apesar de tudo, um pouco marinheiros.
Foi apenas um momento, um minuto só.
John disse:
— Repara, Pat, é como se fosse o mar.
— Sim, parece — replicou o irmão.
— Estás arrependido de ter vindo para cá?
Pat riu com vontade.
— Arrependido, porquê? Lembro-me um pouco daquilo, mais nada.
Do outro lado do rio estava o mistério da grande aventura que desejavam correr. Não, não lamentavam ter partido para o Oeste.
Os irmãos Barton dirigiam-se a Dakota do Norte. Tinham ouvido falar das suas riquezas e dos fabulosos jazigos de ouro e prata que costumavam encontrar os que iam para aqueles lados.
— Que achas que devemos fazer? — perguntou Pat. — Cultivar a terra ou dedicar-nos a pesquisar ouro? Eu penso que seria melhor procurar ouro.
John sorriu e replicou:
— E pensas também que o ouro está à mão, para quem quer que chegue? Será melhor trabalharmos na terra, criarmos gado. É mais seguro. Mas primeiro ainda temos de chegar lá.
— Tens razão, primeiro temos de chegar lá — admitiu o irmão. — Depois veremos...
O importante era chegar a Dakota quanto antes, e conforme estavam as coisas, não era fácil chegar àquelas terras.
Naquela época era difícil atravessar as planícies quase despovoadas do Estado de Iowa, onde os peles-vermelhas ofereciam uma feroz resistência às incursões dos brancos.
Alguns ranchos, disseminados nas vastas regiões do Estado, constituíam o único sinal de civilização e de vida. Pequenas povoações, rodeadas de altas paliçadas semelhantes a débeis fortins isolados na imensidade das pradarias, surgiam, de longe em longe, ante o olhar dos viajantes.
Os pioneiros que se albergavam por detrás daquelas paliçadas tinham constantemente a sua vida presa por um fio. Os peles-vermelhas costumavam assaltar os povoados, arrasar os campos e roubar os gados.
Mas os pioneiros possuíam aquelas vedações que, emboras frágeis, lhes permitiam defenderem-se dos ataques dos índios.
Muito pior acontecia com as caravanas. Geralmente, os peles-vermelhas esperavam-nas emboscados no mato das selvas ou à saída dos estreitos desfiladeiros
A caravana em que viajavam os irmãos Barton também era esperada pelos «sioux», escondidos entre o mato de um frondoso bosque, por onde aquela devia passar.
Ninguém os viu nem ninguém sentiu a sua presença. Apenas se aperceberam de que os indígenas estavam no bosque quando um dos homens da caravana caiu ferido por uma flecha.
John Barton gritou:
— Deitem-se no chão. Estamos cercados.
Era verdade. Tinham ido meter-se numa espécie de beco sem saída. As flechas silvavam em volta deles, e uma gritaria ensurdecedora e arrepiante surgia, ameaçadora, de entre os gigantescos fetos e as corpulentas árvores.
Era inútil deitarem-se no chão ou abrigarem-se por detrás das árvores. As flechas, arremessadas de mil sítios diferentes, encontravam-nos fosse onde fosse que quisessem esconder-se.
O medo, um medo atroz e irreprimível, começou a apoderar-se daquelas gentes. Por que razão não se mostravam os indígenas?
Lutavam contra um inimigo invisível, desapiedado e cruel. Dispararam as espingardas e os revólveres á toa, contra as árvores, contra o mato, enquanto os seus iam caindo pouco a pouco...
Ao fim de pouco tempo, restavam apenas cinco homens de pé. Os restantes, assim como as mulheres é das crianças, jaziam no chão, mortos uns, feridos outros,
Só então os índios se deixaram ver. Surgiram do mato, com as caras pintalgadas, ferozes e sedentos de sangue. Desceram das árvores, deslizando pelos troncos ou saltando de ramo em ramo, com a agilidade dos macacos. Mas já não disparavam as flechas,
Os cinco sobreviventes da caravana viram-nos avançar, os arcos esticados, apontando as flechas aos seus corpos.
— Por que não disparam? — perguntou um.
— Querem apanhar-nos vivos — respondeu outro.
Sim, era isso. Queriam levar prisioneiros para a aldeia deles. E os cinco sobreviventes sabiam o que isso significava. Seria a morte lenta, o cativeiro sem esperança de salvação, o martírio refinado e cruel com que os indígenas iriam destroçando pouco a pouco as suas vidas, com selvagem ferocidade.
— Não os deixem aproximar-se mais — pediu alguém, gritando, assustadoramente.
E dispararam as espingardas contra aquela massa humana que avançava na direção deles, impassível. Cinco indivíduos caíram feridos pelas balas,
Entre os homens que restavam da caravana, contavam-se os irmãos Barton. Os dois, juntos um do outro, defendendo-se mutuamente, como sempre tinham feito toda a vida, viam avançar na sua direção os «sioux».
— Vês, John? — perguntou Pat, atemorizado.
— Já estou a ver; mas ainda não está tudo perdido para nós.
Não estava tudo perdido para eles? Que esperança de salvação podiam albergar? Viviam ainda, era certo; mas por quanto tempo mais os indígenas os deixariam viver?
Ao vê-los aproximarem-se cada vez mais, saltando por cima dos fetos, insensíveis à morte que as espingardas dos brancos semeavam entre eles, estremeceu!
Uma nova descarga mais, e outros cinco «sioux» caíram por terra. Mas aquilo não era o suficiente. O círculo que os indígenas formavam em torno deles ia-se estreitando lenta, mas continuamente. Um círculo de carne humana tremente de ódio. Quanto mais índios caíssem, mais terríveis seriam os tormentos que iriam depois infligir aos brancos...
E podiam tê-los matado com um único gesto de soltar as flechas; mas não o fizeram. Cinco prisioneiros significavam muito para eles.
John Barton, o mais velho dos irmãos, deitou uma olhadela à sua volta, e ocorreu-lhe então a ideia de se escapar dali. Por que não tentá-lo? Porquê continuar esperando que os «sioux» lhes caíssem em cima?
— Temos de fugir, Pat — propôs ao irmão.
— Disseste fugir? E como, por onde?
— Não sei. Por qualquer sítio; por onde pudermos.
Pat estava assustado. Nunca como então tinha sentido tanto medo; nunca tinha sentido a esmagadora angústia que lhe paralisava os músculos e oprimia o coração.
John gritou aos companheiros:
— Temos de fugir daqui. Vamos disparar todos, ao mesmo tempo, para abrir passagem entre os índios. Depois, que Deus nos ajude…
E bem falta lhes fazia essa ajuda. Se demorassem mais alguns minutos, cairiam em poder dos «sioux». A gritaria destes era infernal, insuportável.
— Estás preparado, Pat?
—Estou.
Apontaram cuidadosamente os seus rifles. John deu a ordem de disparar:
—Agora!
Soaram cinco detonações simultâneas, cinco detonações que não conseguiram calar a gritaria dos indígenas, mas que abriram uma brecha nas suas fileiras.
— Vamos, Pat, vamos — disse John.
E desataram a correr, pelo caminho aberto na massa dos «sioux». De passagem, John partiu a cabeça a um deles que pretendeu impedir-lhes a fuga, assestando-lhe uma coronhada.
— Corre, Pat, corre — dizia.
Mas o irmão já corria, o mais que lhe permitiam as suas forças, o seu medo e a sua angústia. Tiveram de saltar por cima dos cadáveres e dos feridos, ziguezagueando por entre os arbustos...
Os índios corriam atrás deles e as flechas voltaram a silvar por cima das suas cabeças. Dos cinco sobreviventes, John e Pat eram os mais jovens e ágeis. Os outros foram ficando para trás, esgotados. Ouviram um grito, um grito lancinante de morte, mas não se voltaram para ver o que tinha acontecido. Era fácil imaginar.
— Ouviste, John? — perguntou Pat, sem deixar de correr.
— Sim, ouvi; mas não pares.
Sabiam o que aquilo significava. Outro homem morto, um branco que tinha caído vítima dos «sioux». Eles não podiam parar. Tinham de fugir, aumentar ainda mais a distância que os separava dos indígenas, salvar as suas vidas.
Era o instinto de conservação o que movia as suas pernas e lhes emprestava forças pana continuar a fugir.
— Corre… corre! — repetia John.
Mais gritos, mais gemidos reveladores de morte violenta, à sua retaguarda. Os brancos iam ficando pelo caminho.
Só eles continuavam com vida, só eles conseguiam alongar a distância que os separava dois «sioux».
A gritaria dos indígenas ia esmorecendo. Pouco a pouco, as flechas deixaram de cair em torno de John e Pat. Depois, cessaram bruscamente de silvar sobre as suas cabeças. Pat, mais débil do que John, corria um pouco atrás do irmão. As forças abandonavam-no. Corria a cambalear, como se tivesse bebido em excesso. Por isso, não pôde ver o índio que se aproximava dele pelas costas. Era um «sioux» gigantesco. Tinham-se-lhe acabado as flechas, e, por isso, empunhava o «tomahawk».
— Corre, Pat, não pares — insistiu John; e olhou para trás.
Então viu o «sioux». Viu-o com o «tomahawk» ao alto, disposto a descarregá-lo sabre a cabeça do seu irmão.
Não podia avisá-lo do perigo em que se encontrava. O que tinha a fazer era agir com a máxima rapidez artes de o «sioux» ter tempo para atacar. Ergueu rifle. Pat viu John apontar-lhe a arma.
— John! John — gritou. —Endoideceste? Que vais fazer?
O cano da arma estava precisamente apontado à sua cabeça. Tudo aconteceu numa fração de segundo; mas para Pat era como se tivesse passado um século, desde que viria John voltar-se para ele e apontar-lhe o rifle... enganava-se, naturalmente. Não era a si que irmão apontava mais sim ao gigantesco guerreiro que vinha a pisar-lhe os calcanhares. Mais alto do que Pat, a sua cabeça sobressaía uns centímetros acima da do branco que o cobria com o corpo.
O índio também viu a manobra de John, mas não se perturbou. Julgou que não se atreveria, a disparar com receio de ferir o branco.
Enganava-se. Os nervos de John eram de aço. Gritou:
—Quieto, Pat, não te mexas!
E apertou o gatilho. A bala chamuscou o cabelo de Pai e foi incrustar-se na testa do «sioux».
O grito que Pat ouviu nas suas Costas fê-lo compreender o que acontecera. Voltou-se com rapidez e viu O indígena cambaleando, prestes a cair.
John, pálido, sem forças, apoiou-se de costas a uma árvore, com o rifle, fumegante ainda, entre as mãos: O susto também não tinha sido pequeno para ele.
—Sentes-te bem, Pat? —perguntou.
Pat não respondeu. Mal podia falar.
— Vamos — disse John, passado um instante. — O ruído do tiro atrairá os outros índios.
— Está bem, vamos — concordou Pat.
E começaram de novo a correr. Eram jovens e fortes e amavam a vida. A partir daquele incidente, John não se afastou mais do irmão. Ajudava-o a manter-se firme nas pernas.
— Para onde vamos, John?
— Para onde...? Não sei; mas corre, é preciso afastarmo-nos o mais possível destes sítios. Aliás parece-me que vamos por bom caminho. _
— Por bom caminho?
—Cala-te. Depois vês...
A esperança voltou a renascer em Pat. Por bom caminho? Aonde poderiam ir ter seguindo por ali?
Álamos gigantescos, faias monumentais e outra grande variedade de árvores, unidas pelas longas cordas das lianas formavam, à sua frente, uma muralha quase impenetrável.
As feras, ocultas no mato, poderiam também ameaçá-los a cada passo.
E atrás, piores do que os animais bravios, mais terríveis do que todos os perigos da selva, os «sioux», inimigos irreconciliáveis dos brancos...
Continuaram a correr, até que Pat, vencido, gemeu:
— Não posso mais, John.
— Bom, vamos descansar um pouco.
Permitiu-lhe que se estendesse no solo. Ele, porém, continuou de pé, atento ao menor ruído ou ao menor sinal de alarme.
Ao fim de uns momentos, Pat, já mais descansado, quis saber:
—Há pouco, disseste que sabias aonde íamos...,
— Sim, creio que acertarei. Antes de entrar no bosque, vimos uma povoação. Não te lembras?
Pat fez apelo à memória e concordou:
— Sim, bem me lembro. Disseram que se chamava Winona, não foi?
— Exatamente: Winona.
— Mas fica longe.
Recordaram a povoação rodeada por uma paliçada. O fumo das chaminés das casas…
A caravana não se detivera lá. Tinham pressa, de chegar a Dakota do Norte. Talvez que se tivessem feito uma paragem em Winona, os «sioux» não os tivessem atacado.
— Sim, deve estar ainda longe — admitiu John. —E saberás lá chegar?
— Penso que não nos perderemos.
Pat ter-se-ia perdido na selva se estivesse só. John, quatro anos mais velho do que ele, sempre fora seu guia e protetor. Órfãos de pai e mãe desde muito crianças, John tinha feito as vezes de ambos. Era valente, trabalhador, honrado e bom, e amava entranhadamente o irmão, o seu «pequeno Pat», como lhe chamava. John, alto, musculoso e de uma bondade sem limites, era estimado por todos. Pat, tão alto como o irmão, mas menos forte, tinha o defeito da ambição e da inveja. Talvez por [ter sido demasiadamente amimado por John.
Não empreenderam logo o caminho de Winona. Temendo que os «sioux» estivessem emboscados no mato, à sua espera, aguardaram que anoitecesse. Pat tremia, aterrorizado. Ainda não conseguira libertar-se do medo ocasionado pelos índios, e agora a selva, tenebrosa e impenetrável, parecia bloquear-lhes a passagem com a ameaça, invisível e constante das feras escondidas entre o mato.
Olhos fosforescentes na escuridão, pontos brilhantes na espessura. A selva, intrincada e perigosa, hostil e adusta, entoava um canto estranho e obsessor feito dos milhares de vozes dos seus habitantes.
— Tens medo, Pat? —perguntou John.
—Não, não tenho medo — mentiu, e tremia-lhe a voz ao falar.
John bateu-lhe carinhosamente nas costas.
—Vemos — disse. — Já escapámos do pior. Anda, levanta-te. Temos de nos pôr a andar.
— Sim — admitiu Pat — temos de ir.
John, de olhos e ouvidos alerta, ia abrindo caminho penosamente na espessura, com a sua longa faca de caça. Pat, a seu lado, tremia. Nenhum deles falava. Que poderiam dizer? Aliás deviam guardar silêncio. Os «sioux», as feras, quem sabe que perigos podia esperá-los em qualquer recanto do bosque?
— Espera — murmurou John de súbito, obrigando o irmão a parar.
—Que é?
—Cala-te!
John abriu o mato com cuidado. Parecera-lhe o resplendor de uma fogueira não muito longe dali. Pat disse:
—Ouves?
Ouvia, o monocórdico tantã dos tambores, os gritos selvagens dos «sioux». Estavam em festa.
O resplendor das fogueiras punha uma coloração avermelhada na selva. Algum dos nossos deve ter sido feito prisioneiro. E visionaram o desgraçado no poste de tortura, os índios gritando, saltando, espicaçando-lhe o peito desnudo, a cara, os braços, com a ponta das lanças. John voltou-se para o irmão e preveniu-o:
— Temos de dar uma grande volta.
Tudo era melhor do que expor-se a cair nas mãos dos «sioux».
Voltaram a caminhar. À sua retaguarda ficou o monótono retumbar dos tambores, a gritaria dos indígenas. Talvez também os gritos do prisioneiro ou dos prisioneiros.
John e Pat pareciam escutar, dentro de si, o angustioso e inútil queixume dos brancos torturados...
Eles, pelo contrário, seguiam livres. Livres!
Pat sorriu satisfeito. Pelo contrário, John franziu a testa e disse:
— Se pudesse iria salvá-los.
—Estás doido, John?
—Bem sei que não é possível. Os «sioux» acabavam por matar-nos ou fazer-nos prisioneiros também. São tantos!...
— Ah! Bom! — disse Pat já tranquilo.
Podia ter dado, a John, para dizer: «Vamos lá». Mas não o diria. Os «sioux» encontravam-se às centenas e eles eram apenas dois... Rodeando o acampamento dos «sioux», percorreram uma grande extensão de terreno. Os animais do bosque, acordados do seu sono pela passagem dos fugitivos, corriam à frente deles espantados e ruidosos. Pat assustava-se e perguntava:
—Que foi?
— Nada. Continua para a frente. Qualquer bicharoco.
— Deve ser isso... um bicharoco — repetia Pat. Mas nem todos os animais dormiam e fugiam espantados à sua passagem. Eram horas de caça para os ferozes moradores noturnos da selva. Acachapados na espessura, esperavam as suas vítimas.
John Barton cortava o mato com a faca. Às vezes tinha de abaixar-se e, por estar assim curvado, não viu o que se precipitava sobre ele...
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