domingo, 30 de outubro de 2022

BRV014.07 Dissertação sobre os prazeres da pradaria


A sala de jantar do hotel, que também era restaurante público, era uma sala agradável onde havia umas quinze mesas servidas por duas raparigas louras que se viam e desejavam para atender todos os clientes, conseguindo, mercê da sua eficiência, dar por vezes a impressão de que seis raparigas absolutamente iguais serviam em mesas diferentes.

— A menina que toma? — perguntou uma delas inclinando-se diante de Beatriz.

— Qualquer coisa, tenho bastante apetite e tudo me agradará. Especialidade da casa... se tem alguma especialidade.

A rapariga afastou-se com um suave frufru do seu vestido comprido e Beatriz dirigiu um olhar aborrecido ao resto dos comensais.

Numa das mesas estava um velho barbudo com pinta de mineiro; sob a toalha viam-se as suas botas rotas, cheias de lama, que cheiravam mal. Comia com os dedos, produzindo um ruído infernal.

Noutra mesa um par de jovens em que a rapariga namoriscava descaradamente e o homem parecia aborrecer-se soberanamente sem notar os devaneios da sua pouco graciosa companheira.

Havia um caçador vestido de peles, alto e rude, que tinha a cabeça coberta, apesar de ali estar, com um gorro de peles de raposa. De vez em quando olhava furtivamente a mulher.

Um comerciante, noutra mesa, elegantemente vestido, muito sério, olhava também para Beatriz cada vez que levava alguma coisa à boca.

A porta de vidro abriu-se no preciso instante em que uma das gêmeas servia à mulher uma sopa de carne e verduras. Beatriz admirou-se de notar que a rapariga soltara um suspiro. Foi então que viu o homem vestido de negro.

Roger Novack tirou o chapéu pendurando-o num bengaleiro encostado à parede e olhou para a cozinha. Depois procurou uma mesa com o olhar. O prato correu o risco de se entornar sobre a mesa e, possivelmente, sobre o vestido de Beatriz que o evitou perguntando:

— Que tens, pequena?

— Oh, perdão!

— E a que propósito vem esse suspiro?

— A propósito de nada, menina.

Corou ao falar. Era uma rapariga que, naturalmente, ainda não teria dezoito anos; não era muito graciosa, mas a juventude dava-lhe um maravilhoso encanto.

— Eu também sou mulher... podes dizer-me. Conhece-lo?

— Sim... sempre vem aqui. L amigo da mamã. Há algum tempo que não vinha a Wichita.

— Eu diria que estás enamorada dele. Olha-lo de uma maneira.

— É que é muito bonito.

— E muito velho para ti. Deve ter mais do dobro da tua idade.

— Não importa.

— Importa. Deves procurar um rapaz da tua idade.

— Mas ele agrada-me muito. Conheço-o desde os catorze anos. Ele vinha muitas vezes a Wichita, sempre de passagem. E creio... creio que me apaixonei por ele. Minha irmã também. Não é verdade que é muito bonito?

— Sim. Muito.

— A si também lhe agrada?

Beatriz não respondeu. Talvez a rapariga se aborrecesse se, dizendo-lhe a verdade, lhe tivesse respondido afirmativamente. Mas sim, agradava-lhe. E agradava-lhe de uma maneira estranha, inquietante. Nunca havia sentido nada de semelhante por nenhum homem.

Podia resistir a todas as tentativas de sedução do rude Michael Erdman mas sabia que não podia resistir à proximidade de Roger Novack. Roger viu-a e os seus lábios distenderam-se num sorriso franco que lhe iluminou o rosto varonil.

Aproximou-se dela com um alegre tilintar de esporas. Beatriz olhou-o quando se aproximava reparando nos músculos das suas coxas que se marcavam nitidamente sob as calças apertadas, nas ancas extraordinariamente estreitas nas quais parecia impossível que os cinturões-cartucheiras não resvalassem; na sua cintura que não se notaria se não fosse o cinturão; no seu peito, nos seus braços, na sua cara... no seu sorriso.

Beatriz sentiu vontade de bater no peito para conter as pancadas do seu coração. Era uma estupidez que ela, na sua idade, depois de ter conhecido tantos e tantos homens, depois de ter conhecido o amor, de ter, inclusivamente, troçado dele e dominado à sua vontade, se comportasse agora como uma colegial, como uma daquelas gêmeas.

Reconhecia, contudo, que os seus sentimentos diferiam dos das duas gémeas, dos de uma colegial e, possivelmente, dos da desgraçada mulher, irmã do homem que Roger havia matado naquela manhã.

— Bons dias — cumprimentou Roger detendo-se e fazendo uma galante inclinação diante dela.

— Bons dias? — quis ironizar a mulher pois havia já algum tempo que escurecera.

Roger continuou impávido como se não tivesse cometido uma «gaffe».

— Desde que chegou a esta miserável cidade, Kansas não conhece a noite. As estrelas deixaram de brilhar perdendo-se na insignificância da sua eternidade e o sol derrama fogo irado, ciumento e indignado quando nasce ou se põe, verificando que já não exerce nenhum poder sobre a terra.

— Muito original — respondeu Beatriz. — Deve-se às patas do seu cavalo que se encontre aqui?

— Por vezes sou como as flores, olho para o lugar donde vem a luz. Como as mariposas, que correm cegas.

— Mantenho a minha opinião de que é muito original. Nunca ninguém lhe tinha dito?

— É ser original admirar a beleza? Ser um fervoroso admirador da beleza que Deus espalhou sobre a terra?

— Nunca fala a sério?

— Porque me fala com ironia? Embora adorar uma deusa seja uma ação humana e ao mesmo tempo divina, é ao mesmo tempo escravidão, e a escravidão fere.

— E de que é escravo?

— Da sua formosura.

— A quantas disse o mesmo?

— A mil mulheres o diria se mil mulheres existissem com a sua formosura. Mas os olhos cansam-se das trevas e os lábios tornam-se lânguidos por não poderem pronunciar as palavras de amor que o coração anseia por expressar.

— Em que escola estudou, que fala tão bem?

— A vida é a escola mais dura para o homem sem amor. Só o meu cavalo pôde escutar palavras de carinho quando, perdido na imensidade da pradaria, o animava a alcançar o céu e a permitir-me apanhar uma estrela. Hoje conduziu-me até aqui e os meus olhos veem a luz, os meus lábios movem-se impulsionados pelo coração e apodera-se de todo o meu ser uma ânsia imensa de amar, de respirar, de viver.

Beatriz sentia-se divertida. Sabia que o homem fingia, porque aquilo não podia ser verdade... Não, não era ridículo. Imaginou-se por um instante galopando à garupa do cavalo negro, apoiada no peito de Roger, devorando milhares de pradaria sob os cascos do cavalo, saboreando uma vida nova, não imaginada, romântica, uma vez que ela nunca permitira romantismos na sua vida.

Nunca tinha ouvido uma frase bonita. A espécie de mulher que era e tinha sido só era capaz de atrair homens de moral duvidosa. E recordou que nunca havia sentido nos seus lábios a caricia de um beijo furtivo sob a luz da lua; que nunca umas mãos suaves a haviam acariciado com doçura. Só tinha conhecido abraços apaixonados, bruscos, beijos desesperados, acendidos do desejo... de um desejo que ela não sentia e a que não podia corresponder.

— Sente-se, se quer — disse.

Roger olhou-a fixamente com os seus profundos olhos negros que queimavam.

— Talvez seja urna graça maravilhosa poder sentar-me na sua mesa, mas o coração, ambicioso e cheio de caprichos, deseja muito mais. O sonho acaricia a ideia de que possa compartilhar da minha mesa.

— Qual é a sua mesa?

— A pradaria.

— Não está mal. E que se come ali?

— Todos os sentidos se concentram naqueles que podem sentir a beleza e o corpo satura-se de encanto. Mas ainda assim...

— Mas ainda assim... O quê?

— Existem apetites menos grosseiros e que a natureza agradece mais que se satisfaçam.

— Por exemplo?

— Ver a luz.

— De noite e na pradaria?

— Não existe melhor luminosidade que aquela que se reflete na pradaria silenciosa numa noite formosa como esta.

— Que outro apetite existe?

— O da liberdade.

— Como se come?

— Olhando e respirando.

—E mais?

— A tranquilidade, esse maravilhoso sossego impossível de encontrar noutro lugar.

— Há mais?

— Há o amor.

—Ah!

— Conhece o amor?

— Não.

— É um fogo que se ateia num corpo e se sente ferido pelo frio exterior. Por esse frio que há agora nos seus olhos, que me fere se os contemplo e, apesar de tudo não posso deixar de os olhar ainda que me matem.

— Que mais há na pradaria?

— Nada.

— Nada? É muito pouco.

— Dentro de alguns dias, possivelmente, unir-se-á a Michael Erdman pelo casamento.

— Como sabe?

— O coração, se é capaz de amar, é capaz de ver e ouvir.

— Espia-me?

— Desde que a vi no comboio vive em mim

— E que relação tem o meu casamento com...

— Conhecerá o homem convertido em marido, conhecerá a riqueza, o poderio; conhecerá o imenso prazer que causa a dor de ser mãe... mas o que eu lhe ofereço não o terá.

—A pradaria?

— A pradaria que nos desejará.

—A lua?

— A lua que nos iluminará.

— O silêncio?

— O silêncio exterior.

— O amor?

— O verdadeiro amor.

— Como é o verdadeiro amor?

— Como a luz que não pode ocultar-se porque ao fazê-lo deixa de ser amor, porque se expande abertamente, porque nos envolve e nos enche de calor.

— O senhor parece ter amado.

— Sou um amante do amor.

A sopa arrefecia. As duas gêmeas olhavam-nos. Os homens das outras mesas pareciam dececionados Beatriz disse subitamente:

— Fez-me sentir desejos de conhecer a sua pradaria, a sua lua e o seu silêncio.

Levantaram-se os dois. Pouco depois partiam montando o «Quick» que parecia galopar alegremente, consciente da preciosa carga que levava. Satisfeito da felicidade que dava ao seu dono. E Beatriz deixava-se levar, também consciente do que fazia... mas consciente de que se ia despenhar por um precipício.

 

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