quarta-feira, 26 de outubro de 2022

BRV014.03 Viagem para Oeste e encontro com um cavaleiro de negro


O comboio avançava lastimosamente, soprando, ou melhor resfolegando. A subida não era muito íngreme nem o peso muito excessivo; contudo, ameaçava parar, incapaz de manter o esforço que vinha realizando desde há três dias.

Assomada à janela, desejando sentir no rosto a carícia do ar, mas recebendo apenas lategadas de sal, Beatriz Block orava para que a máquina não parasse.

A paisagem era desoladora e tornava difícil imaginar a tragédia com um mínimo de filosofia. A paisagem resumia-se à extensa pradaria limitada pelo azul do céu no horizonte; a pradaria, a Leste limitada pelo próprio horizonte; deserto o Sul e desconhecido o Norte.

Nem uma miserável cabana surgia a quebrar a melancolia, nem um ser vivo, nem uma simples ave. Nada. Apenas calor, sol, um calor intenso, quase palpável, que por vezes chegava a adquirir as propriedades de uma cortina espessa.

Sentado junto da mesma janela onde ela se assomava, havia um homem de densa barba negra, calvo, gordo e atarracado. Mascava tabaco incessantemente e expelia uma saliva espessa que a princípio repugnava a Beatriz, mas depois passou a constituir motivo de diversão pois enquanto a saliva voava pelos ares, saía pela janela e chegava ao chão, convertia-se em puro pó de tabaco que o vento arrastava agitado pelo avanço do comboio.

Agora abria-se diante dela um vasto campo que, possivelmente, num tempo longínquo, fora verde, mas agora tinha a cor terrosa da pedra, com pedaços, inclusivamente, da própria cor da cinza. A aridez estendia-se por quilómetros e quilómetros até ao longe onde o sol impiedoso atingia cerca de sessenta graus.

Uma serpente, enrolada sobre si própria à sombra de uma rocha, levantou a cabeça num gesto moribundo à passagem do comboio e depois deixou-a cair, vencida, sobre o solo calcinado.

Quando o comboio entrou numa curva, Beatriz pôde ver um pedaço de carril levantado, sem dúvida por causa da dilatação, uns vinte centímetros trazendo atrás de si as pranchas em que assentava. Pensou que o comboio descarrilaria, mas apenas se produziu um ruído áspero quando as rodas passaram por sobre o carril e continuaram a avançar. Tomou mais confiança naquela máquina arquejante. Já não pensava que pudesse parar, esgotada...

Agora começava a recear que não pudesse parar nunca mais. Junto de uma longa depressão que, certamente, em tempos idos fora um ribeiro, viam-se os restos de uma cabana de adobe. A parte de madeira devia ter ardido, possivelmente por causa do calor intenso. Contudo, a visão animou um pouco Beatriz pois, pelo menos, era um sinal de vida naquelas paragens ásperas.

Chegaram por fim a um lugar onde se começava a ver alguma vegetação, onde a salva crescia formando manchas escuras no imenso vale que se mostrava ante os olhos dos passageiros.

Sobre o cume de um monte, distinguiu-se, subitamente, a silhueta de um cavaleiro. Estava demasiadamente longe até para se poderem perceber os seus gestos, mas Beatriz seguiu-o com a vista, sentindo uma estranha emoção no peito. Viu-o primeiro imóvel; depois galopando inclinado sobre o pescoço do seu corcel, na mesma direção que o comboio levava.

Passaram por um lugar onde havia cabanas e, em várias portas, os moradores saíam para ver passar o comboio. Beatriz reparou num tipo alto e forte, louro, que tinha uma enxada na mão direita e apoiava a esquerda no ombro de uma mulher, certamente sua esposa, de pequena estatura e loura também. Perto deles brincava uma criança de dois anos com uma vitela que mugia de cada vez que a criança lhe puxava violentamente pela cauda.

A máquina afrouxou o seu esforço e apitou três vezes seguidas soltando uma coluna branca de fumo. Possivelmente chegavam a uma estação, talvez Canute, no sudoeste de Fort Scott; pelo menos Beatriz tinha ouvido dizer isso aos seus companheiros de viagem.

Tal estação não existia. Era simplesmente uma paragem no meio da via de onde se viam seis ou sete casas distanciadas cinco a seis quilómetros entre si. Apenas desceu um passageiro, que era esperado por duas crianças e por uma mulher de idade indefinida, de cabelos louros e brancos, de faces coradas e pele tostada.

Beatriz foi testemunha aborrecida do abraço que uniu o homem e a mulher e depois uniu as duas crianças a seus pais. Decorridos alguns breves segundos, os pacotes que o passageiro levava estavam já abertos, espalhados pelo chão os papéis que os envolviam e o conteúdo nas mãos dos Interessados. Não havia mais ninguém na estação.

Quando a máquina silvou novamente anunciando a continuação da viagem, um cavaleiro passou junto das carruagens do comboio. Beatriz olhou-o com interesse e viu que os olhos do homem se cravavam nos dela com tanta intensidade que foi difícil para a mulher continuar a olhar sem pestanejar. Era um homem que se adivinhava alto, embora estivesse a cavalo; vestia completamente de negro, desde o chapéu de abas negras e do lenço de seda à volta do pescoço até às botas brilhantes, absolutamente limpas de pó e adornadas de esporas de prata de pequenas rosetas. Levava, pendentes das ancas estreitas, dois revólveres brilhantes de coronhas nacaradas. Era moreno, mas a sua tez não acusava os estragos que o sol costuma causar nas epidermes; era uma cor agradável, semelhante à da madeira de castanho. Um bigode fino, intensamente negro, bem recortado e penteado, adornava-lhe o lábio superior. Tirou o chapéu ao passar diante de Beatriz, sem tirar os olhos dela, e a rapariga correspondeu ao cumprimento do desconhecido inclinando a cabeça.

O comboio pôs-se em marcha e o cavaleiro atrasou-se. Viu-se mudar de rumo, na direção do Sul, para uma colina afastada que se confundia com algumas nuvens formadas pelo calor. Quando voltou a cabeça para olhar para a frente, o velho que mascava tabaco no lugar em frente dela murmurou:

— Parece um espantalho. Um homem que o acompanhava riu-se daquela salda. Beatriz disse:

— Acho-o muito interessante.

— Bah...

Junto dela sentava-se um sujeito alto e magro, já maduro, que passava a viagem a dormir, apoiando por vezes, involuntariamente, a cabeça no ombro da mulher que o afastava com um gesto violento que, todavia, não o despertava. Apesar de não ser gordo suava copiosamente e ao fim de três dias de viagem começara a deitar um cheiro verdadeiramente desagradável.

— A próxima é Wichita, não é? — perguntou.

— Creio que sim — respondeu o do tabaco, mostrando o assombro que lhe causava vê-lo acordado. — Este ramal é novo... Antigamente descia até ao Território índio (1). Talvez o tenham suprimido ou esteja avariado.

Disse isto com a boca cheia e cuspiu precipitadamente sem o conseguir com a mesma perfeição que sempre lograva e por isso salpicou o rosto de Beatriz que teve de fazer um esforço para não lhe responder com uma das suas já clássicas palavras tão pouco elegantes e tão pouco próprias do seu sexo.

Afastou o rosto da janela limpando-o com um lenço branco que adquiriu o tom da nicotina e depois cerrou os olhos para os aliviar do ardor que o fogo do ar trazia consigo. Permaneceu assim durante mais de uma hora. A certa altura os seus companheiros de viagem fizeram um comentário que se referia a ela, julgando que dormia.

 

(1) Mais tarde Oklahoma.

 

— Parece uma grande senhora — comentou um.

— Eu diria que parece outra coisa — respondeu outro.

— Que quer dizer?

-- Não sei... parece-me pelos gestos e pelo comportamento.

— É bonita, eh?

— E tem um corpo que... Quem será?

— Pergunte-lhe quando acordar.

— Onde irá?

— Talvez a esperem em Wichita.

Depois a conversa esmoreceu até se fazer silêncio completo, apenas quebrado pelo ruído estrondoso das rodas de ferro e pela salivação do homem que estava, em frente dela. Mais tarde ouviu um rumor afastado, como se fosse produzido por um milhão de cavalos. O ruído aproximava-se cada vez mais. Ouviram-se detonações muito afastadas, isoladas, mas os outros não pareceram ouvi-las. Houve uma altura em que pareceu que o ruído se afastava, mas subitamente aproximou-se intensamente.

— Que é isso? Búfalos?

— Já não há búfalos.

—Índios?

— Já não há índios por aqui.

— Ah, não? E os «creeks» o que são?

— Os «creeks» não se atrevem a atravessar o território dos «semínolas».

— Pois, e os «seminolas» o que são?

— Os «semínolas» não chegam tão acima. Não atravessam a fronteira de Kansas.

A conversa tão estúpida era sustentada entre o tipo do tabaco e o tipo magro que parecia haver esgotado todo o sono que tinha no corpo. Beatriz teve vontade de intervir para lhes dar uma lição de história ou geografia, mas continuou com os olhos fechados ouvindo o ruído produzido pelos numerosos cascos que batiam o solo e as detonações das armas de fogo.

Subitamente, a máquina deteve o seu avanço, travando estrondosamente num ruído angustioso que fez ranger os dentes a todos os passageiros.

— Um, assalto! — gritou alguém.

Talvez fossem dois que gritaram.

— Bolas! — respondeu o magro.

Beatriz abriu os olhos e, de momento, não viu nada embora soubesse o que acontecia por ouvir os que se assomavam às janelas do outro lado do comboio. Não se impacientou e esperou tranquila, assomada à janela.

Adiante da máquina apareceram várias reses que atravessavam a via, seguindo o seu caminho, impelidas pelos tiros que as obrigavam a apressar a corrida. Atrás destas apareceram outras e outras; depois surgiram dois cavaleiros: um manejava o revólver que disparava para o ar e o outro um chicote que fazia estalar longe dos lombos dos animais e que produzia um som tão potente como um tiro.

Beatriz teria gostado de contar as reses, mas compreendeu que isso era praticamente impossível.

— Não são menos de mil — disse uma voz. — Não há direito que parem o comboio por causa disso. Os búfalos eram os búfalos, mas as vacas...

— Devem ser de Michael Erdman.

— E quem é Michael Erdman para fazer parar o comboio

— Ele não o parou. Simplesmente fez a vacada atravessar a via e o maquinista travou para evitar qualquer acidente.

Haviam aparecido mais reses e mais cavaleiros pelo outro lado do comboio, o lado visível para Beatriz que contemplava o pó espesso que levantavam e que, misturando-se com as nuvenzitas azuladas que saíam dos revólveres, subia ao céu eclipsando um tanto a luminosidade brutal do sol.

Um jovem cavaleiro corria entre os animais, obrigando-os a avançar incessantemente, gritando de vez em quando e golpeando-lhes as cabeças e os dorsos com o laço sem o largar.

De súbito uma novilha revolveu-se e uma das suas hastes cravou-se na anca do cavalo que montava, o qual lançou um relincho e se ergueu sobre as patas traseiras. Foi um movimento rápido que apanhou o cavaleiro desprevenido e o obrigou a fazer um esforço para não cair, mas outro animal investiu, sendo empurrado pelos que o seguiam e fez perder o equilíbrio ao cavalo que fez uma estranha cabriola com as patas dianteiras ainda levantadas e o cavaleiro caiu de costas entre o mar de chifres.

Ao grito desesperado que soltou responderam várias detonações, as reses afastaram-se espantadas e surgiu um cavaleiro muito mais corpulento que o que havia caído, que se introduziu entre os animais atravessando a manada como um meteoro.

Quando saiu levava sobre a garupa o jovem que havia caído.

Beatriz esperou ser testemunha de uma tragédia. Mas quando o cavalo carregado com os dois cavaleiros passou diante da sua carruagem viu que ambos riam divertidos; um deles, o mais corpulento, suando copiosamente; outro, suando e sangrando.

O resto das reses já havia passado e a máquina silvou anunciando que retomava a marcha. Beatriz sentiu desejos de descer do comboio para continuar a presenciar a condução das reses, mas, naturalmente, conformou-se com a decisão do maquinista, limitando-se a seguir os dois cavaleiros com a vista, sobretudo o mais corpulento, que era louro, quase gigantesco.

— São os dois irmãos Erdman — disse alguém.

Quando cavaleiros c reses se perderam na distância, a mulher recostou-se melhor no lugar e fechou os olhos para os aliviar da luminosidade do sol refletida no terreno. Passaram várias horas antes de se anunciar a chegada a Wichita.

Beatriz, que havia adormecido, acordou no momento preciso em que a máquina reduzia a velocidade e anunciava aos ventos, com o seu silvo, a chegada à cidade. Voltou a assomar-se à janela. O espetáculo que se lhe ofereceu já era diferente do que a tinha acompanhado durante toda a viagem.

A vista havia várias casas, quase todas tinham granja e nessas granjas não faltavam o clássico porco atado por uma pata a uma árvore para que não pudesse fugir, mas pudesse alimentar-se tranquilamente.

A estação era um edifício alongado de mais de cinquenta metros de comprimento, provido de um alto e largo alpendre que chegava perto das próprias carruagens do comboio. Antes de chegar à estação Beatriz notou um cavaleiro que entrava na povoação. Vestia completamente de negro e levava o chapéu pendente da nuca. Pareceu-lhe conhecê-lo e recordou-o como o homem que a saudara em Canute. Pareceu-lhe que também ele a via, pois levantou uma das mãos num gesto, indubitavelmente, de saudação.

Apanhou as duas malas que levava consigo e desceu do comboio esperando que algum carregador aparecesse para a ajudar, mas isso não aconteceu. Teve de ser ela a carregá-las e a entrar no edifício da estação. Um indivíduo alto e espigado, que vestia sobrecasaca e calças pretas às riscas brancas, aproximou-se dela.

— Deseja hotel, menina?

Falou inclinando-se exageradamente diante dela com uma profunda reverência. Depois endireitou-se esperando a resposta.

— Estarei só dois dias, pois quero apanhar o comboio que vai até Santa Fé.

— Dois dias são suficientes para que possa conhecer a excelência do nosso serviço.

Soltou um agudo assobio e imediatamente apareceu um rapaz, gordo e atarracado, cem por cento mexicano, que apanhou as suas malas e, carregando-as com uma facilidade assombrosa, começou a andar seguido pelo homem da sobrecasaca e por Beatriz.

Recebeu-a o sol de Main Street que acariciou bruscamente o seu corpo enchendo-o instantaneamente de um suor pegajoso e incómodo. Não se via ninguém na rua, à exceção de um velho sentado numa cadeira junto da porta de um «saloon».

Atravessaram a rua até ao outro passeio, aproveitando a sombra e seguiram o seu caminho sobre as tábuas rangentes do passeio, estaladas e sujas.

Um cavaleiro apareceu subitamente por uma ruela. Era o cavaleiro negro. Levava o chapéu posto, afundado até junto I. das sobrancelhas. As patas do seu cavalo, negro também, pisavam cuidadosamente o solo como se tentasse evitar a inevitável nuvenzita de pó.

Os olhos de ambos cruzaram-se. Beatriz sorriu involuntariamente e o cavaleiro levou dois dedos até à aba do chapéu para a cumprimentar. Seguiam caminhos opostos e, portanto, tinham de se cruzar. O cavaleiro parou junto dela e disse:

— As patas do meu cavalo devo a graça de poder ver outra vez o rosto mais formoso que o sol do Oeste beijou.

Beatriz correspondeu com um sorriso de agradecimento ente e disse:

— É estranho. Já o vi três vezes. Está em todos os lugares ao mesmo tempo?

— Onde estiver uma mulher formosa aí estou eu... e onde eu estou estão o amor e a morte.

— Muito enigmático.

— Não tanto como os seus olhos.

— Que têm os meus olhos?

— Ainda não conheço o seu enigma, mas espero descobri-lo... com sua licença.

O da sobrecasaca notou que a hóspede não o seguia e retrocedeu. Beatriz voltou a cabeça e continuou a caminhar esperando ouvir os cascos do cavalo negro a afastar-se, mas não ouviu. Sentiu cravados na sua nuca os olhos do cavaleiro e sentiu um desejo enorme de se voltar, mas não o fez. Também não se voltou ao entrar no hotel.

Na pequena sala onde entrou havia um pequeno balcão atrás do qual dormia um homem de nariz avermelhado, um pouco acima do qual tinha presa uma pala. O da sobrecasaca ia acordá-lo dando um soco sobre a madeira, mas Beatriz conteve-o.

— Quem é esse homem?

— O encarregado da receção... pura formalidade.

— Refiro-me àquele cavaleiro de negro.

— Novack?

— Como disse?

— Roger Novack. Um aventureiro.

— Ah!

Beatriz calou-se e então os acontecimentos seguiram o seu curso normal. Um punho bateu sobre o balcão, rececionista despertou e abriu o livro de registos onde ficaram escritos, muito mal escritos, o nome e apelido de mulher.

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