O homem voltou-se para o interior do carroção, murmurando:
— Lena! Não te mexas, não fales nem saias daí aconteça o que acontecer e ouças o que ouvires. Entendes?
Do escuro carroção chegou uma afirmativa. O homem repetiu:
— Não te mexas. Cobre-te com a manta e não te mexas.
O carroção era velho, chiava, parecia que de um momento para o outro ia ficar em pedaços. Mas o condutor, que era jovem, manejava-o com habilidade, esquivando as pedras e os buracos do caminho, que abundavam muito.
O condutor, moreno e forte, cobria-se com um endurecido chapéu alto, e tinha um bigode negro, grande, ao estilo mexicano, ainda que não fosse mexicano, mas sim virginiano. Vestia uma camisa vermelha e usava dois revólveres. As suas feições, angulosas e duras, refletiam uma tremenda energia.
O caminho era estreito, muito difícil e o homem exigia dos cavalos o máximo esforço; por vezes parecia que as rodas não tocavam no solo.
Numa viragem, desprendeu-se do carroção a barrica da água, presa a um dos lados.
A barrica destroçou-se contra as pedras, com unia explosão surda, saltando água e tábuas pelos ares.
O homem nem sequer olhou, pois dedicava toda a sua atenção ao caminho. Com os dentes apertados, conseguiu passar um troço especialmente perigoso e chegou a um plano. Então viu o tronco derrubado no trilho. Uma grossa corda amarrada a ele indicava que fora derrubado intencionalmente. Das raízes descobertas ainda se desprendiam torrões.
O homem pôs-se de pé, fazendo um tremendo esforço para conter os cavalos e desviar-se ao mesmo tempo. Quando os animais iam tropeçar com o tronco detiveram--se, encabritando-se e relinchando.
O homem largou então as rédeas, para levar as mãos aos revólveres, pois sabia perfeitamente o que aquilo significava. Mas não chegou a tocar-lhes, pois atrás da copa da árvore derrubada surgiram quatro homens empunhando armas, revólveres e espingardas, apontando para ele. Um disse:
— Quieto, patife! Esqueceste que os cavalos podem sempre adiantar-se a um carroção. Mãos para cima!
O homem moreno obedeceu lentamente. Os que o tinham detido aproximaram-se, muito sorridentes.
— Agora vais devolver-nos tudo o' que nos roubaste com as tuas aldrabices: disseste-nos que farias chover com toda a certeza, desde que te pagássemos para que trouxesses a chuva. E só temos pó e mais pó. És um maldito charlatão gatuno!
O homem moreno replicou:
— Devolver-lhes-ei o vosso dinheiro. Todos nos podemos enganar. Se não estão satisfeitos com os meus serviços, eu...
— O dinheiro vamos buscá-lo nós próprios, patife! Não te seguimos só para isso. Quiseste enganar-nos, amigo, e em Maldonado não gostamos de ser comidos por parvos! Havemos de tirar o dinheiro do teu bolso depois de metermos meia dúzia de chumbos no pelo.
— Vão matar-me por uns míseros dólares? Cavalheiros, sejamos razoáveis...!
— Nós somos razoáveis! Avisámos-te, dissemos-te para não fazeres trafulhice. Tu aceitaste o nosso dinheiro, apesar de te termos dito que, se não fizesses chover, te mataríamos!
O homem moreno parecia horrorizado.
—Pensei que estavam a brincar. Asseguro-lhes que choverá. Os meus processos são garantidos. Um destes dias...!
— Desce do carroção, patife! Suamos cada centavo e nenhum tipo como tu nos rouba impunemente! Desce e põe-te de costas, se não queres ver chegar a morte. Dizem que ela tem má cara!
Os quatro homens não brincavam, não fanfarronavam, iam matar o desconhecido e este sabia-o perfeitamente. Naquelas paragens, a vida de um homem não valia muito, e valia ainda menos quando se tratava de um charlatão, viajando numa desconjuntada carroça e «trazendo a chuva», quando as pastagens estavam demasiado secas.
— Ouçam, tenho o vosso dinheiro e algum mais, deixem-me...
— Imbecil! O teu dinheiro, a tua carroça, os teus cavalos e tudo o mais será nosso depois de te matarmos! Volta-te!
O homem moreno obedeceu, apoiando as mãos na carroça. Os quatro assaltantes avançaram uns passos, apontando-lhe as armas. Era evidente que iam disparar. O homem moreno sabia-o, e por isso a sua resignação era apenas aparente.
A sua mão direita já tocava num pequeno cabo que pendia de lado do carroção. Agarrou-o e voltou-se com um salto, quando as quatro armas já disparavam. O cabo pertencia a um chicote de carroceiro, que estalou no ar com tanta força que se fez ouvir entre o troar dos tiros.
A longa tira de couro entrançado surpreendeu os quatro homens no momento em que apertavam os gatilhos. Moveram as mãos e os tiros perderam-se.
O homem moreno, que defendia a sua vida, voltou a agitar o chicote, para que a correia silvasse perto dos rostos dos quatro homens, que iam disparar novamente. Só um deles o fez. Os outros voltaram instintivamente a cara.
Depois do chicote, o homem empunhara um revólver. Ainda a correia silvava quando ele começou a disparar, armando com o polegar. Enquanto disparava, ia saltando para o lado e, a cada tiro, os homens caiam e gritavam, disparando por sua vez contra a fugidia figura do homem moreno, que por fim se deteve, quando já não tinha inimigos de pé.
Aproximou-se deles, com a arma preparada, mas já não era necessário disparar mais: estavam os quatro mortos. Voltou-se para o carroção, dizendo a meia voz:
— Lena! Estás bem? Responde-me, mas não saias daí. Não quero que te mostres.
A voz feminina respondeu que estava bem. O homem voltou para a boleia e pegou nas rédeas; com muito cuidado, rodeou a árvore derrubada, atravessou a clareira e voltou a entrar no trilho. Quando já estava longe do lugar do tiroteio, disse:
— Podes sair, Lena.
O toldo agitou-se e Lena apareceu, sentando-se junto do homem, que lhe sorria.
— Não te assustes, o perigo já passou. Esses homens não voltarão a incomodar-nos.
Lena olhou para ele com entusiasmo, dizendo:
— Não tive medo. Nunca tenho medo estando contigo!
O homem acariciou-lhe o cabelo, comovido.
— És um encanto, Lena.
Lena beijou-o na face. Lena tinha cinco anos, era loura, e mostrava os mesmos olhos escuros do pai, o homem que conduzia o carroção.
— Nunca nos separaremos, não é verdade, pai?
Matt Coleman voltou um pouco a cara, para responder.
— Algum dia teremos de nos separar, Lena, mas será por pouco tempo. Tu tens de ir à escola e transformar-te numa senhora, para poderes depois cuidar de mim quando eu me retirar do meu trabalho.
A criança começou a chorar.
— Então retira-te já. Há meninas que vivem em casa com os pais!
Matt Coleman baixou a cabeça.
— Sim, é verdade. Prometo-te que, em breve, também nós teremos uma casa. Mas bem viste o que aconteceu hoje; é preciso que nos separemos por pouco tempo, Lena. Não quero perder-te.
A criança chorava, encostada ao ombro do pai. Matt Coleman apertava os dentes. Sim, era necessário que a menina vivesse de outro modo. Não podia continuar a viver no carroção. Estava pouco menos que selvagem. «Uma das balas daqueles homens podia tê-la atingido. Furaram a lona do toldo. Não pode continuar aqui...»
A criança continuava a chorar, enquanto a carroça do homem «que trazia a chuva» se afastava de Maldonado.
*
Quando o velho carroção se deteve, Lena Coleman olhou com curiosidade para a ferraria, onde um homem alto e forte batia com o martelo num pedaço de ferro ao rubro branco.
Matt Coleman enrolou as rédeas no travão e a criança perguntou-lhe:
— Vais arranjar aqui o carroção, pai?
— Não, Lena. Espera aqui.
Matt Coleman entrou na ferraria. O ferreiro levantou a cabeça; ia perguntar-lhe qualquer coisa, quando o seu rosto se iluminou num sorriso.
— Matt! És tu!
O ferreiro largou as ferramentas e abraçou-se a Matt Coleman, que também sorria. Os dois homens olharam-se, voltaram a abraçar-se.
— Quantos anos, Matt! Que tem sido a tua vida?
—Houve um pouco de tudo, mais de mau que de bom. Depois te conto. O bom trago-o no carroção, Benjamin. Olha. Lena, a minha filha. A mãe morreu ao dá-la à luz.
O ferreiro sorriu para a criança, que descia do carro.
— Que linda menina! Matt, vamos para casa, quero que conheças a minha mulher! Por fim, casei-me, Matt, já vês, eu, que dizia...
—Eu sei, Benjamin, por isso vim ver-te de tão longe. Depois te explico. Lena, vem conhecer o Benjamin, o meu melhor amigo.
A menina aproximou-se timidamente.
Benjamin Andella, o ferreiro de Telluride, antigo companheiro de correrias de Matt Coleman, vivia por cima da ferraria. A mulher chamava-se Margaret e tinha duas filhas: Maria e Virgínia. Tinham quase a mesma idade de Lena Coleman, que a receberam encantadas.
A senhora Andella, que nunca recebia visitas naquela afastada povoação do Colorado, apressou-se a convidá-los para comer. Matt Coleman, que sabia ser agradável quando o queria, parecia a Margaret um cavalheiro extremamente educado. Que pena perder a sua esposa! Essa pobre menina sem mãe! Matt olhava para Lena, sorria-lhe.
A menina estava triste, pois o seu instinto avisava-a do perigo, do que mais temia. Naquela tarde, Matt Coleman falou com o seu amigo Benjamin e com a mulher, enquanto as crianças brincavam noutro quarto.
--- A minha vida é difícil, não tenho sorte, Benjamin, não possuo um verdadeiro lar. Tenho de viajar constantemente. Quando soube que te tinhas casado, que tinhas uma mulher como a Margaret, uma casa, pensei que... pensei que a minha Lena seria feliz com vocês...
Benjamin perguntou:
— Queres deixar aqui a tua filha?
— Sim, Benjamin. Quero que viva numa casa, que vá à escola, que tenha a companhia de outras crianças da sua idade. Juntei algum dinheiro para pagar o alojamento dela e enviar-te-ei uma quantia todos os meses. Peço-vos como um grande favor, por ela, pela Lena. Se continua a viver como uma ferazinha, perdê-la-ei.
Margaret Andella perguntou:
— Porque não procuras um trabalho fixo, porque não arranjas uma casa?
— Já o tentei, mas não é fácil. De qualquer modo, a Lena teria de ficar dias e dias sozinha em casa, e ela é muito pequena. Benjamin, vim do Texas para ver-te e pedir-te isto.
Benjamin Adella, o ferreiro de Telluride, sorriu bondosamente.
— Claro que a menina pode ficar. Tratá-la-emos como nossa filha. Não é assim, Margaret?
— Sim, Benjamin.
Matt abraçou-os, comovido. Depois pós-se triste.
— Quando a Lena souber... a despedida vai ser muito dura. Pobrezinha! Nunca se separou de mim! Margaret começou a chorar.
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