terça-feira, 25 de outubro de 2022

BRV014.02 O marido traído morre ao limpar a sua honra


O ginete desmontou lentamente do cavalo junto das arcadas que rodeavam o pátio do pequeno convento, banhado profundamente pela luz da lua. As coronhas de nácar dos seus revólveres e as partes metálicas lançaram reflexos acerados que chegaram a relampejar nas paredes brancas cheias de sombras.

Vestia completamente de negro, roupas caras e sedosas; e lenço que lhe rodeava o pescoço era também negro, tal como o chapéu de abas largas. Negras eram as luvas que trazia e negras as botas brilhantes com esporas de prata.

Com um gesto atou as rédeas do cavalo num poste de madeira e, inclinando para cima a aba do chapéu, olhou lentamente à sua volta. Apoiou a mão direita na coronha branca do revólver e começou a andar procurando fazer o menor ruído possível.

O cavalo quis segui-lo, mas, ao sentir as rédeas presas, parou conformando-se, mas soltou um ruidoso relincho que fez sorrir o homem mostrando, à luz da lua, uma dentadura extraordinariamente branca, perfeita.

— Está quieto e cala-te, «Quick». Vais acordar os reverendos.

O animal calou-se e os olhos do homem voltaram a percorrer as arcadas em busca de alguma sombra inoportuna. Antes que a pudesse ver, chegou até ele uma voz aflautada que soou como o rangido de uma porta.

— Quem é o senhor?

— Olá — saudou o cavaleiro, aproximando-se da sombra.

Era um frade de abundante cabelo, grisalho nas têmporas, e rosto bem barbeado. Devia ter mais de sessenta anos e inclinava-se ligeiramente para diante como se a cabeça lhe pesasse.

— Em que o posso ajudar?

— Não vim em busca de auxílio — respondeu o desconhecido. — Espero uma mulher.

— Uma mulher?... Aqui?

— Deve vir confessar-se.

— Foi ela quem disse isso?

— É cristã e acaba de pecar. E lógico, não é verdade?

O frade olhou o homem vestido de negro de alto a baixo. A fazenda do seu fato parecia seda e era nova. Ajustava-se-lhe ao corpo de uma maneira exagerada, pondo em relevo cada um dos seus músculos. Era bastante alto e parecia forte. O brilho dos seus olhos, tão negros como o fato, inquietou o bom frade. E o sorriso que se desenhou nos seus lábios finos fê-lo estremecer.

— Sim — respondeu, com dureza. — lógico que o pecador venha confessar-se... mas é muito tarde... não creio que venha esta noite.

— Pecou esta noite, padre — esclareceu o desconhecido, acentuando o seu sorriso.

— E para que a esperas?

— Quero que volte a pecar…

— És o diabo?

— Apenas o seu servo.

— Como te chamas?

— Não creio que me chegassem a batizar algum dia, mas sempre me chamaram Novack, Roger Novack.

— Creio que recordo o teu nome.

— Deve tê-lo ouvido em segredo de confissão.

— Nas confissões não se pronunciam nomes.

— Os pecados têm nome. Eu sou o pecado.

— Quem é ela?

— Talvez não a conheça. Nunca pecou até ontem.

— Não vem à missa?

— É possível. Suponho que sim.

— Então...

— Apenas sei que se chama Clara, que é muito bonita e que...

Deu uma pequena gargalhada. A lua iluminou completamente o seu rosto. Um rosto muito varonil, bem barbeado. Sobre o lábio superior tinha um bigode negro, muito fino, bem desenhado. Os seus lábios também eram finos e desapareciam quase quando sorria. Afastou a mão direita do revólver e agitou-a um momento no ar para exclamar:

— A si não se podem dizer certas coisas.

— Clara Brand?

— Sei que o marido se chama Brand.

—E Roger Novack... — murmurou a voz aflautada do frade. — É verdade que ouvi o seu nome, não em segredo de confissão... Quando Clara Brand se preparava para se confessar e me perguntava -se amar um homem assim chamado, estando casada com outro, era pecado.

— Perguntou isso? — o sorriso distendeu ainda mais os seus lábios. - Compreendia a gravidade dos seus sentimentos.

— E é pecado?

— É pecado.

— Formoso pecado, pois!

— E desagradável.

— Os senhores ensinam a amar — acusou o homem vestido de negro. — Por isso não pode ser pecado.

— O senhor ama Clara?

— Amo.

— E obriga-a a pecar?

— É o amor que me obriga.

— O amor ou o desejo?

Voltou a sorrir.

— O desejo, é verdade.

— Pois o desejo é pecado.

— Bem... é pecado — conformou-se o estranho encolhendo os ombros.

Olhou para a porta que dava acesso ao pátio e tirou um relógio de ouro do bolso do seu colete negro.

— Pode ir deitar-se, padre. A confissão não é necessária de momento.

— Vais-te embora?

Como resposta o frade ouviu uma gargalhada suave.

—É muito estranho — disse Novack. — Umas vezes trata-me por tu e outras vezes honra-me com o «você». Usa-os conforme os casos. Engano-me?

— Você engana-se em muitas coisas.

— Procura ofender-me?

— Não tenho revólver — respondeu o frade esboçando um sorriso que deixou o desconhecido perplexo. — Não era isso que procurava ver sobre o meu hábito? Disse-lhe a verdade.

— O senhor fala muito. Ainda quero falar mais. Quereria convencê-lo que se fosse daqui e levasse consigo um pecado que pode trazer consequências funestas.

— Que consequências? — inquiriu, ríspido.

— Para si, talvez, nenhumas. Para ela, muitas. Julián Brand sabe que assedia Clara e está disposto a evitá-lo seja como for.

— Facilitar-me-á o caminho.

— Qual caminho?

— O que conduz à mulher... que então será já viúva. Julián morrerá quando me enfrentar.

— Matá-lo-á por causa dela?

— Ela vale.

— E depois?

— Já não é pecado assediar uma viúva ou seduzi-la.

— E depois?

— Passa da meia-noite — respondeu o homem vestido de negro. — Deixei-a há mais de meia hora; já devia estar aqui. Talvez não se queira confessar.

— Não me responde?

— Qual era a sua pergunta?

— Depois o que acontecerá?

— Repetir-se-á o mesmo desta noite.

— Quantas noites?

Roger Novack encolheu os ombros.

— Uma, cem... não sei.

—E depois?

— Aborrece-me a sua pergunta.

— Responderei eu: depois deixá-la-á. E Clara sentir-se-á abandonada, sem marido e sem amante, desprezada, porque muitas vezes as pessoas não compreendem como é difícil evitar o pecado de amor. O senhor cavalgará para longe destes sítios humildes em busca de vales e montes, de céus abertos, procurando encontrar no seu caminho outra mulher para fazer tão desgraçada como Clara.

— O senhor é muito ríspido a falar, padre.

— E a segunda vez que protesta perante a verdade.

— Não gosto dessa verdade. Ainda mais: não acredito nela. O amor é igual para um homem e para uma mulher, ambos desejam saciá-lo e os dois acabam por se enfastiar. Se eu ficar satisfeito, satisfeita ficará ela também.

— Tínhamos concordado antes em que isso não é amor.

Roger tinha ainda o relógio de ouro na palma da mão enluvada. Deixou-o deslizar para o interior do bolso prendendo depois a corrente. Deixou cair os braços e olhou para o frade de frente.

— Vou-me embora. Ganhou, padre, mas só por hoje. Amanhã... Ninguém pode prever o amanhã, não é assim?

Afastou-se do frade, caminhando para o cavalo. De súbito deteve-se e inquiriu:

— Ouviu?

— Não. Que é?

— Cavalos.

— Não os oiço.

— Também eu não, agora. Mas juraria que ouvi. Eram pelo menos cinco.

— Clara?

— Não. Não era Clara.

Desligou as rédeas do cavalo e colocou-as sobre a sela. Apoiou o pé esquerdo no estribo para montar, mas deteve-se e ficou imóvel com as mãos apoiadas nas coronhas nacaradas dos revólveres. Os seus olhos brilharam inusitadamente sob a aba do chapéu para desaparecerem quase, logo depois, sob as pálpebras cerradas. O frade saiu da sombra, entrando no pátio.

— Que se passa?

— Aproxima-se alguém.

— Não ouço nada.

— Tome atenção... É a morte. Aproxima-se. É verdade que não a ouve?

O frade escutou, admirado. Depois perguntou:

— Julian?

— O cadáver de Julián — respondeu Roger.

— Que vais fazer?

— Matar.

— Não!

— Cale-se!

Uma sombra recortou-se no pátio prateado pela luz da lua. Roger levantou os olhos e viu um homem no terraço do edifício. Continuou imóvel. Por detrás dos grandes vasos, de onde brotavam roseiras trepadeiras que se alongavam pelas paredes da fachada pálida, alguma coisa se moveu. Não soube o que era, mas não teve dúvidas sobre a sua natureza.

— Afaste-se, padre. Até agora falou Deus... Compete ao diabo responder.

-- Não posso permitir...

— O que não pode é evitar. Já é tarde, padre, lamento.

Ao acabar de falar tirou o seu revólver e um raio de lua arrancou uma cintilação ao cano da arma. Roger afastou-se de um salto e foi abrigar-se nas sombras das arcadas. O bom frade já não podia fazer nada. Teve de ficar imóvel no meio do pátio, com os braços em cruz.

O primeiro tiro partiu da arma de Roger. Ressoou violentamente no silêncio da noite, violando a sagrada quietude do convento. Do terraço veio um gemido agónico, um grito... Um homem despenhou-se de cabeça, gritando ao cair. Esmagou-se contra o solo e ficou imóvel. Na mão direita tinha uma espingarda. Então surgiram chamas alaranjadas atrás dos altos vasos da porta de entrada e atrás de uma coluna das arcadas.

— Roger Novack! Venho matar-te! — gritou uma voz.

— Cumprimentos, Julián Brand — respondeu Roger, mudando de lugar.

— Não sairás vivo!

— Falas para o que já caiu?

— Maldito sejas cem vezes!

Julián estava oculto atrás da coluna. Assomou o seu revólver, mas uma bala incrustou-se na parede que o protegia e obrigou-o a ocultar-se maldizendo incoerentemente, cheio de ódio. Deu uma ordem aos que se ocultavam atrás das roseiras. Os dois obedeceram-lhe logo que puderam.

A ordem não se referia a Roger, naturalmente, e este disparou. Um dos homens recebeu a bala a meio do peito e caiu, abrindo os braços e soltando um grito, de bruços sobre a terra, ao comprido, chamando o companheiro que, precipitadamente, se foi ocultar, atirando-se ao chão atrás da parede baixa que rodeava o pátio.

O que se ocultava junto da porta passou a ocupar o posto do que havia caído atrás das roseiras. Empunhava uma carabina-revólver que engatilhou e levantou apontando para o lugar onde havia aparecido um ponto alaranjado, supondo que Novack se ocultava ali. Apertou o gatilho e esperou ouvir um grito que lhe confirmasse a excelência da pontaria. Respondeu-lhe outro tiro, feito aproximadamente a uns dois metros do lugar onde se havia produzido o anterior. Soltou a carabina e, teimosamente, esperou que o seu inimigo acusasse com um gemido o seu tiro. Perdeu-o de vista quando o olhar se lhe empanou e caiu por terra, de cara para baixo, morto já.

Julián voltou a praguejar palavras incoerentes. E agora, maldição, o padre Félix interpunha-se entre ele e o seu inimigo.

— Desvie-se, padre!

— Guardem as vossas armas e contenham o vosso ódio — pediu este.

— Tenho de o matar, padre — respondeu o marido traído.

— Não é essa a solução.

Julián sentia imensos desejos de chorar. O, padre Félix sabia que se ele desafogasse o seu ódio no pranto, Roger salvaria a vida.

— Afaste-se, padre.

— Depõe as armas, Julián. Roger queria ir-se embora.

— Não é verdade.

— É, sim. Julgas-me capaz de te mentir?

— Tratando-se de salvar uma vida...

— Quero salvar uma vida e uma alma, embora me interesse mais a última. Se tivesses chegado alguns minutos mais tarde, talvez a houvesse salvado.

Julián deixou cair a mão armada. No instante em que o fez soou um novo tiro e o homem que se ocultou atrás da coluna deu um salto e rolou pelo solo, revolvendo-se tragicamente e gritando de dor.

— Assassino! — gritou Julián Brand.

Respondeu-lhe uma gargalhada de Roger.

— Restam dois, Julián.

Julián tremeu, prenhe de ira.

— Não tem perdão... Não tem perdão...

Procurou com o olhar a sombra de Roger, mas não a encontrou. Fato negro não lhe facilitava a camuflagem pois embora estivesse na sombra, as paredes eram brancas. O seu fato faria contraste. Não o viu. Apenas o ouvia rir, rir... rir...

O que mais o feria era a ironia de que era objeto. Clara havia ficado no rancho, chorando o seu pecado reconhecido, o pecado que ela própria havia confessado. Tinha de matar Roger... tinha de o matar apesar do padre Félix.

Tinha de o matar...

Viu-o aparecer como se surgisse da terra. Imediatamente levantou o seu revólver, mas chegou tarde. Um relâmpago iluminou durante um instante o rosto do pátio e o seu último homem perdeu a vida ao tentar defender com um acto desesperado a honra do seu patrão.

Viu-o cair de cara para cima, com os braços em cruz e os olhos muito abertos. Podia vê-los dali. Voltou a procurar o seu inimigo que havia desaparecido novamente. Ouviu o seu riso sarcástico. Ouviu-o em vários sítios, refletido pelas paredes, multiplicado e disperso por entre as arcadas e colunas.

De súbito viu-o de pé sobre um gigantesco vaso de flores, com as pernas arqueadas, perfeitamente desenhadas pelas suas calças negras apertadas. As fivelas dos seus cinturões-cartucheira brilharam tal como os dois revólveres que empunhava à altura da cintura.

Quis disparar precipitadamente um tanto surpreendido pela repentina e suicida aparição. O brilho do metal dos revólveres desapareceu ofuscado pelos relâmpagos alaranjados que surgiram dos canos.

Julián soltou a arma ao mesmo tempo que se sentia impelido para trás, chocou contra a parede e ficou apoiado contra ela, especado, sentindo que a vida se lhe escapava do corpo.

— Ai de mim...

Deu vários passos para diante, com um grande esforço. Notava que um estranho véu, semelhante à mantilha de Clara, quando a beijava nos domingos, se interpunha diante dos seus olhos. Seguramente, era o véu da morte.

As pernas obedeciam-lhe insensivelmente. Não sentia o movimento que realizavam, mas o certo é que avançava, que abandonava as arcadas e pisava a areia do pátio, aproximando-se do seu matador. Não lhe doíam as feridas abertas no peito, nem os corpos ardentes das balas incrustadas na sua carne. Era já insensível à dor. Era, certamente, o torpor que a morte traz.

Roger havia saltado agilmente do vaso e estava a meio do pátio recebendo em cheio a carícia da lua que, impassível, contemplava a cena. Sorria. Havia metido no coldre o revólver direito, mas apontava contra o inimigo com o esquerdo.

— A...ssa...ssi...no.

Julián conseguiu articular a palavra. A resposta foi uma gargalhada odiosa. E depois o estalido do revólver do pistoleiro. Roger olhou à sua volta sem atentar no homem que se inclinava diante dele e caía para o chão onde ficava imóvel, de bruços. Viu o frade que o olhava de uma maneira estranha e aproximou-se dele guardando a arma. Tirou o chapéu, deixando a descoberto os seus cabelos negros, ondulados, brilhantes, longos e cuidadosamente penteados. Inclinou-se diante do frade e disse:

— Os meus respeitos às suas almas, já que os seus corpos não o mereciam.

— Que fizeste, Roger Novack? — inquiriu severamente frei Félix.

— Fazer Clara enviuvar. Não havíamos falado antes disto?

— És o próprio diabo, Roger Novack, mas um dia... um dia...

— Todos temos esse dia a que se refere, padre. O meu... — encolheu os ombros e pôs o chapéu com todo o cuidado, colocando o cordão de prender o queixo para trás.

Aproximou-se do seu cavalo que havia permanecido no mesmo sítio sem se espantar com as detonações e as balas que lhe tinham passado perto. Colocou o pé esquerdo no estribo e montou com um gesto elegante, muito de cavaleiro consumado.

— Lamento não poder perder tempo a tirar «isso» do pátio, padre; mas confio que os senhores o possam fazer. É um trabalho próprio do vosso ofício.

— Vai, Novack, e não voltes se não tiveres intenção de curar as feridas da tua alma. A tua vida já não tem salvação... A morte ronda-te de muito perto e, junto dela, o inferno; mas ainda estás a tempo de salvar a tua alma.

— Padre, tinha ganhado a partida. Eu retirava-me, mas eles não quiseram. Sinto-o por sua causa.

— O diabo guia o teu braço e disfarça-te de invencível, mas no dia em que ele te abandonar, nesse dia cairás e conhecerás os horrores da impotência anímica. Diante de ti abrir-se-ão as portas do inferno e arrepender-te-ás do que hoje fizeste e desejarás não haver matado pois o tempo que nisso gastaste podias tê-lo usado para te salvares. Tiveste duas ocasiões, duas oportunidades: uma para fazer o bem e outra para fazer o mal; deixaste o teu braço em liberdade e o diabo guiou-o. Deste-lhe um trunfo que um dia usará contra ti.

Roger despediu-se do frade sem o querer ouvir. Obsequiou-o com um sorriso cínico que uma vez mais lhe deu oportunidade de mostrar a brancura extraordinária dos seus dentes. Roçou as esporas de prata pelas ilhargas do animal, sem o magoar e afastou-se lentamente. Não desviou o animal quando passou por sobre os cadáveres. Se não os pisou foi porque o cavalo não quis.

— Os cavalos não têm alma, Roger Novack; mas repara neles e aprende — disse a voz do frade estranhamente próxima como se cavalgasse a mesma montada de Roger e lhe falasse ao ouvido.

Inclinou a cabeça para passar sob o portal e saiu para a rua. Esta era estreita e curta, formada por casas achatadas e pintadas de branco. Ao fim de uma das extremidades da rua via-se um oásis de pinheiros e abetos; na outra extremidade estendia-se a pradaria, verde, eterna e silenciosa. Os sinos do convento lançaram aos ares os seus sons metálicos que envolveram a pequena e imaculada povoação num murmúrio letal.

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