segunda-feira, 16 de maio de 2022

FBV159.04 O percurso da degradação de um homem cheio de ouro

 

Dick dormiu algumas horas e, quando acordou, encontrou-se com Stevens.

— Olá.

— Olá, Dick! Dormiste bem? 

— Como uma pedra. Já é noite, não? 

— Sim, e suponho que deves ter agora vontade de comer. Vou arranjar-te alguma coisa. 

— És muito amável. A propósito, onde está o meu irmão? 

— Foi a Misoula. Pediu-me para te avisar, quando acordasses. Espera-te no "Strafford Saloon". Já partiu há umas três horas. 

Stevens afastou-se por momentos e quando voltou trazia uma bandeja com pratos e comida. Dick, que tinha realmente fome, fez honras à refeição. Stevens sentou-se num cadeirão forrado de pele de cabra, e acendeu o cachimbo. 

— Como achaste o teu irmão, Dick? 

— Mudado. Com umas ideias que nada o favorecem, mas das quais parece não ser possível fazê-lo desistir. Nunca o conheci assim. 

— Penso que foi o oiro... — disse Stevens, pensativo. — Enlouquece as pessoas. 

— Não a ti, pelo que noto. 

— Não a mim, porque me dispus a dominar sempre as minhas emoções. Com dificuldade, por vezes. Também me agradaria ir a Misoula de quando em quando, para me divertir, mas compreendi que era aí que podia começar a resvalar... Decidi que o oiro não me destruiria... e cheguei a odiá-lo... Um ódio relativo, desde logo... 

— Mas conseguiste dominar-te... 

— Sim. O mais difícil foi ao princípio. Depois, a o ver o que se passava com o teu irmão, vi que tinha feito bem... 

— Que queres dizer? 

— Bem o viste... Procede absurdamente... Esbanja oiro às mancheias... e enforca quem lhe rouba um só pedaço de oiro... Veste como um saltimbanco, despreza os outros, desafia-os... tem dele mesmo uma ideia exagerada. Se alguém não lhe deita a mão, pode dar uma queda fatal. 

— Por mim, não estou seguro de conseguir refreá-lo, Lee... 

— Por que dizes isso? Ninguém melhor do que tu, que és irmão dele, lhe pode valer... 

— Não creio. Talvez se erguesse a si próprio... demasiadamente alto. Ainda esta tarde, logo que nos encontrámos, lhe disse umas quantas coisas, cheguei a declarar-lhe que voltaria amanhã mesmo para Olympia. Depois pensei que não devia fazer isso e resolvi ficar para o ajudar. Mas mais tarde... quando vínhamos para aqui e vimos um corpo de um tal Rush... 

— É um dos quatro que estão pendurados das arvores, entre Misoula e a mina... Quando Gilbert vê alguém a vaguear por aí, abre fogo... ou apanha o intruso e enforca-o. 

— Mas isso é horrível, Lee! 

— Disse-lho muitas vezes..., mas ele afirma que não há processo melhor do que dar o exemplo aos outros, que pensem prejudicar-nos. Espalhou enforcados em volta da mina. A lei não o impede..., mas eu discordo. Neguei-me sempre a fazer o mesmo... 

— O xerife deve detestá-lo, não?

— O xerife e muitos outros... Para te ser franco, Dick... direi mesmo que eu próprio estou longe de apreciar o teu irmão como antigamente. Daria de boa vontade o meu oiro para que ele voltasse a ser como era... 

— Gilbert pensa que tu ainda estás mais agarrado ao oiro... que é por isso que não sais daqui. 

— Que pense o que quiser. Chegámos a um ponto em que tive de prometer-lhe não interferir na sua maneira de viver. Não quer conselhos. Dick acabou de comer e acendeu um cigarro. 

— Como acabará isto, Lee? 

— Não sei, mas receio o pior. Teu irmão tem um inimigo perigoso... É John Merrill, um advogado que vive em Misoula... 

— Que há entre eles? 

Lee tirou o cachimbo da boca e por momentos ficou a olhar um ponto no espaço, como a evocar recordações. 

— Conta-se em poucas palavras... — disse, por fim. — Quando Gilbert e eu chegámos a Misoula, tudo era simples. Gilbert é atraente e agradável...e conheceu nessa altura uma bela rapariga... Penso que logo começaram a gostar um do outro... 

— Que rapariga? 

— Elizabeth Marlowe, filha do juiz Geofrey Marlowe... Elizabeth é encantadora, muito simples, incapaz de se deixar deslumbrar... Tudo correu bem entre eles... até que descobrimos a mina e arrancámos as primeiras amostras... Feitas as análises, verificou-se que o filão era riquíssimo... e o teu irmão perdeu a cabeça. Depois, à medida que o oiro foi surgindo em quantidades cada vez maiores... Gilbert modificou-se muito... e entre ele e Elizabeth surgiram os primeiros desentendimentos... Ela gostava dele como era... não como se tornou... Começaram as ostentações, as festas, os esbanjamentos... e os cadáveres pendurados das árvores. Elizabeth sentia repugnância por ele, e assim lho disse certa vez, em publico, numa tarde em que Gilbert a abordou na rua. 

— Que fez Gilbert? 

— A pior das tolices... Insultou-a. A partir de então Elizabeth não pode vê-lo... embora ele a ame mais do que nunca. A situação endoidece-o... os desprezos dela enfurecem-no, mas nada diz... 

— Talvez se ele mudasse outra vez... 

— Sim, talvez que, se isso acontecesse, ela voltasse a querê-lo. Mas Gilbert está positivamente doido. Muitas vezes tentei dizer-lhe isso mesmo… mas é inútil. Basta falar nesse assunto, ou só no nome de Elizabeth, para que ele salte como se uma serpente o mordesse. 

— E que tem a ver com o caso esse tal Merrill? 

— Esse Merrill amava Elizabeth desde antes de nós virmos para aqui. É um homem de quarente e quatro anos bem parecido... mas astuto, cobarde e vingativo. Creio que faria qualquer coisa desde que com isso pudesse pendurar Gilbert numa dessas árvores... como Gilbert faz aos outros. 

— E o juiz Marlowe?

— O juiz é um homem estimado por toda agente, e com razão. Não creio que odeie Gilbert, mas é pai de Elizabeth e sente-se magoado. Tinha-o aceitado como futuro genro quando Gilbert era pobre e a situação atual desgosta-o profundamente. No entanto, estou convencido de que não se oporia a um reatamento de relações... se o teu irmão se portasse devidamente. Mas isso é impossível... Uma perspetiva triste e sombria... se não for mesmo trágica... 

— Não há dúvida... Que fazem com o oiro da mina, Lee? 

— Está depositado em diversos Bancos, sob a garantia do Estado. Não precisamos tê-lo aqui...Nunca estabelecemos quinhões... 

— Queres dizer que o oiro que meu irmão esbanja... pertence a ambos? Mas isso não é justo! 

— Isso é o menos, Dick. Ambos somos mais ricos do que nunca sonhamos... e se fosse eu a gastar e ele a economizar, Gilbert faria o que eu faço. O que importa é salvar teu irmão.

— A verdade é que nem sei por onde devo começar... Vou a Misoula, entretanto. Até logo, Lee. 

— Até logo, Dick, e boa sorte! 

Dick saiu... e durante o caminho foi apensar em tudo o que Lee Stevens lhe contara. 

Gilbert não só mudara quanto às suas maneiras, mas também quanto aos seus instintos. Nunca tinha mostrado tendências para matar... e agora revelava-se um carrasco. 

Dick avistou ao longe as luzes mortiças da povoação, que pareciam tornar mais espessa a treva em redor dele. E pensou que, algum dia, daquela treva, poderia vir um tiro que acabasse com a vida de Gilbert ... Muitos eram os que o odiavam... 


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