quarta-feira, 7 de março de 2018

PAS856. A vida para o mais rápido

Era um homem alto.
Era um homem tão alto que dava a impressão de que o cavalo lhe ficava pequeno.
No entanto, o cavalo era um garanhão avermelhado, dos maiores que se tinham visto em Prestou, Idaho.
O cavaleiro deteve-o diante de um estabelecimento da Main Street, desceu com movimentos pausados e entrou. Era um armazém. Um homem estava atrás do balcão, a aviar duas libras de grão de bico a uma mulher alta e forte, que quase avultava tanto como o forasteiro.
— Bons dias.
As cabeças da mulher e do empregado voltaram-se para o recém-chegado. Houve um momento de silêncio. Depois, o forasteiro:
— Isto é Preston?
Olhar entre o empregado e a mulher. Foi ela quem respondeu:
— Claro que é Preston. Não viu a tabuleta no caminho ou não sabe ler?
— Não a vi. Só havia um buraco. Suponho que a tabuleta devia lá estar antes de alguém a arrancar.
O empregado resmungou qualquer coisa entre dentes, que ninguém entendeu. Por fim, murmurou:
— Devem ter sido os homens de Radford ou de Meers. Há certo tempo que se dedicam a essas coisas. — E ao notar que o forasteiro o fitava com intenso interesse, desviou a conversa e disse em tom friamente profissional:
— Desejava mais alguma coisa que a informação?
—Cartuchos de calibres trinta e oito, se não se importa de mos aviar — respondeu com ironia. O empregado olhou-o de soslaio e foi buscar os cartuchos.
 A mulher começou a aguardar o saco de grão de bico numa grande bolsa de lona que trazia no braço. Dissimuladamente, observava o homem. Viu três coisas dominantes na sua pessoa: uns olhos claros, metálicos e profundos, umas mãos compridas e ágeis, calçadas de luvas negras, e dois revólveres de calibre 38, muito baixos, metidos em coldres de couro negro e presos às coxas por correias muito finas de cor branca, O cinturão cartucheira tinha outros adornos, brancos também, e uma inicial por cima de cada um dos coldres.
A do lado esquerdo era um «K», a do lado direito um «C». Aquele cinturão devia ser uma boa presa para os caçadores de lembranças e de pistoleiros. Porque o forasteiro era um pistoleiro. Dos pés à cabeça. Isso notava-se logo. E a mulher estava habituada a ver pistoleiros diariamente. Perguntou:
— Qual dos dois o contratou?
— Como disse?
Ela abespinhou-se e franziu o sobrolho.
— Ouça, não se faça de novas. Sabe muito bem a que me refiro. Foi Radford ou Meers?
O homem pareceu sorrir debaixo da aba do chapéu.
— Garanto-lhe que não compreendo nada, minha senhora.
A sua voz tinha uma inflexão estranha. Uma pronúncia ligeiramente arrastada, lenta, cadenciada, doce como a fala das pessoas do Sul. Mas aquele homem não era do Sul. A mulher não poderia dizer porquê, mas não parecia texano nem de nenhum outro estado vizinho. Aquele homem parecia um índio das planícies vestido de vaqueiro. Eis a descrição exata.
Aquele homem era tão moreno, tão ágil, tão esbelto e felino como um índio. Como um «apache», ou um «comanche», ou um «sioux»... ou talvez um «cherokee». Perturbou-se o acudir-lhe semelhante ideia, ao recordar-se de que Radford tinha ao seu serviço um índio «cherokee tão implacável como um tigre sempre esfomeado. Se aquele homem era igual a Akasheeta  Kia--Klisaè, Preston ver-se-ia inundada de sangue mais depressa do que muitos imaginavam. Gaguejou:
— Tenho muito que fazer... Adeus.
E saiu a correr, seguida pelo olhar atónito dos forasteiros. O empregado voltou então com uma caixa de cartuchos que devia pesar bastante, a julgar pelo que lhe custava transportá-la, e pô-la em cima do balcão, enquanto observava o recém-chegado com olho crítico.
— Quantos quer?
— A caixa inteira.
O homem esteve a ponto de cair redondo.
— A... caixa inteira?
— Sim. — Uma chispa irónica brilhou nas pupilas claras do homem. — Vou praticar um pouco o tiro ao alvo, sabe?
— Já... já com... compreendo.
Começou a embrulhar nervosamente a caixa num papel grosso, que saiu pequeno de mais. Pôs outro, que também não chegou. Acabou por se atrapalhar com os papéis. O forasteiro riu brevemente.
— Deixe. Levo-a assim.
Pagou com uma nota nova, que o empregado examinou várias vezes, como se quisesse convencer-se de que era autêntica e de que não estava manchada de sangue. Ao dar-lhe o troco, as luvas negras do forasteiro roçaram as mãos do outro. O empregado estremeceu como se tivesse tocado uma serpente piton.
— Adeus.
— A... deus.
Saiu com a caixa debaixo do braço, como se nao pesasse nada. Já no passeio, prendeu-a aos alforjes do cavalo e começou a caminhar pelo meio da rua com o animal pela brida, a olhar para um lado e para outro.
Preston era uma povoação vulgar. Nem grande nem pequena. Talvez tivesse cinco mil habitantes. Passava por possuir um par de «ranchos» de certa importância e os seus pastos não eram maus de todo. Quando a linha de caminho de ferro a alcançasse, começaria a crescer. Isso era sabido por quase todos os habitantes da região. E ao pensar nisto, no rosto do forasteiro desenhou-se um breve sorriso.
Claro que toda a gente o sabia. Sobretudo certo trio de irmãos que andava fazendo das suas por ali havia vários meses. Sentia vontade de se encontrar com eles. Parou diante da fachada escandalosamente vistosa de um «saloon» e passou as rédeas do cavalo pela barra horizontal. Subiu o passeio em duas passadas e entrou no estabelecimento. Penumbra. Depois da luz crua do sol que inundava a rua, aquela penumbra era agradável. Aproximou-se do balcão.
— Cerveja.
O «barman» examinou-o com a mesma preventiva curiosidade que a mulher e o moço do armazém. Tal como eles, viu um homem muito alto.
Um homem altíssimo e magro, esbelto, com aspeto de ser ágil, de mãos compridas enluvadas, dois revólveres enormes muito baixos, olhos claros, rosto magro, ancas estreitas.
Notou que aquele rosto necessitava urgentemente de uma boa barbeadela e que as roupas do recém-chegado estavam cobertas de pó.
-- De muito longe?
O forasteiro ergueu o rosto. Apenas durante um momento, mas foi o suficiente para que o outro se sentisse totalmente indefeso diante do seu olhar.
— Da Florida — disse simplesmente.
Como se fosse um passeio, quando se tratava de mil e trezentas milhas em linha recta.
— Quantos anos levou, amigo?
— O caminho de ferro existe para alguma coisa, digo eu.
Mesmo assim, o caminho de ferro não chegava a toda a parte. Eram vários meses de viagem através de chuvas, ventos, neves, calores... Porquê?
Perguntou-lho:
— Porquê?
O forasteiro sorriu.
— Isso é comigo.
E era.
O «barman» disse qualquer coisa em voz ininteligível e começou a arrumar uma prateleira que não precisava de ser arrumada: Um silêncio. Dez minutos.
De súbito, começaram a acontecer coisas. Naquele «saloon» não aconteciam coisas havia várias semanas. porque só era frequentado pelos homens de Meers, que nunca lutavam entre si.
Mas aquele dia ia ser diferente na história de Preston, e o primeiro sinal foi que no «saloon» sucederam algumas coisas estranhas. A primeira, que o forasteiro mudou o copo da mão direita para a esquerda, como se pressentisse só ele sabia o quê. O seu rosto ficou tenso debaixo da aba do chapéu e mostrou os dentes num sorriso de lobo.
Um minuto.
O guarda-vento abriu-se para dar passagem a um homem.
Aquele homem era o «cherokee» Akasheeta Kis-Klisay, o primeiro pistoleiro de Radford.
Jamais, desde que o «saloon» se instalara, o haviam pisado homens de Radford. Fora Meers quem o montara com o seu próprio dinheiro, para que os seus homens se divertissem nos fins de semana sem perigo de se envolverem em tiroteio com os de Radford, que frequentavam o outro «saloon» da cidade. E agora aquele índio, chefe dos pistoleiros do mesmo Radford, entrava ali.
O «barman» apressou-se a esconder-se atrás do balcão. Os quatro ou cinco pacíficos e neutrais clientes que havia àquela hora correram a pôr-se fora da linha de tiro. O forasteiro continuou de costas para a porta, com o copo na mão esquerda... sem afastar a vista do espelho que lhe devolvia a imagem do índio.
— Olá, Akasheeta. Estás mais magro desde a última vez que te vi em Tallahasse.
— Olá, Ken. Não esperava que me encontrasses.
— Bem vês que sim.
-- A Florida é muito longe.
— Devias saber que para nós não há fronteiras.
O índio avançou outro passo. De novo soou a campainha. O forasteiro virou-se então e ficou de frente para Akasheeta, sem largar o copo, com a mão direita apoiada ao cinturão. Sorria. De forma tão fria e gelada como poderia sorrir a morte. Akasheeta disse:
— Envergonho-me de ti, «Beeteia».
O rosto do forasteiro contraiu-se.
— Não me chamo «Beeteia».
— Houve um tempo em que te chamavas assim.
— Bem sei. Mas agora sou Ken Clayton.
Custou-lhe dizer isto. Criara-se entre os «cherokees». 'raives fosse isso que lhe emprestava a sua aparência tão semelhante à de um índio. Os «cherokees» tinham feito dele um perfeito seguidor de pistas e chamavam-lhe «Beeteia». Mas agora nada disso contava.
Agora era Ken Clayton e não podia ter em conta que a familiar e alta figura de Akasheeta Kis-Klisay fora em tempos seu irmão de sangue. Viera para outra coisa.
— Akasheeta, mataste Benjamin Thorn. Lembras-te?
— Sim.
— Porque o mataste?
— Tínhamos de acabar assim.
Um silêncio. Olharam-se fixamente durante uns segundos. Uns segundos apenas.
— Akasheeta Kis-Klisay, vim buscar-te.
— Bem sei, Ken Clayton. Mas não me levarás. Pelo menos não me levarás... vivo. Foste meu irmão de sangue. És o único que tem o direito de me matar. Fá-lo.
O rosto de Ken Clayton contraiu-se. Tornou-se cinzento debaixo da aba do chapéu. Pousou lentamente o copo de cerveja no balcão.
—Não te poderia entregar à forca ainda que quisesse, Akasheeta. Seja. A vida para o mais rápido.
A atmosfera pareceu carregar-se de eletricidade. Durante três segundos exatos as duas figuras permaneceram em completa imobilidade, observando-se. E, de súbito, puseram-se em movimento simultaneamente.
Akasheeta deu um salto para trás. A campainha tilintou baixinho. O revólver pareceu brotar da mão do índio, negro e mortífero. Antes que pudesse, sequer, visar a alta figura de Ken Clayton, os dois «38» deste entraram em ação.
Ninguém soube entender o motivo daquela meteórica velocidade.
Akasheeta era o pistoleiro mais rápido de Preston. Contudo, isso não lhe serviu de nada. Silêncio. O fumo da pólvora dirigia-se lentamente para a porta, arrastado por uma brisa ligeira.
Ken Clayton meteu os revólveres nos coldres com lentidão. Sentia uma tremenda dor física ao ver aquela figura estendida a seus pés. Amaldiçoou naquele momento o impulso que o levara a tornar-se amigo de Benjamin Thorn, a fazer parte dos seus.
Ajoelhou-se junto do cadáver.
Afagou as faces do morto com o rosto rígido como o de um índio, mas sofrendo como se o coração se lhe estivesse a desfazer ao compreender que uma parte de si mesmo morrera também com Akasheeta.
— Lamento, irmão.
Lamentava-o, mas já não podia fazer nada. Ou talvez sim. Os três Scott que andavam pela região tinham arrastado Akasheeta para o caminho de pistoleiro. Se não os tivesse conhecido, Akasheeta -estaria agora nos seus pântanos «cherokees», em vez de morto num «saloon» de Preston. Ergueu-se do chão. Os Scott estavam sentenciados desde aquele instante.

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