sexta-feira, 16 de março de 2018

BIS160.03 Um beijo na noite

Hal Cargan acabou de engolir o último bocado do seu frugal jantar. Em seguida, aspirou com deleite o aroma que se escapava da cafeteira de café colocada sobre as brasas da fogueira, antes de o deitar num púcaro de metal e de o beber em pequenos sorvos.
Ao acabar, lavou os utensílios de cozinha nas águas de uma nascente próxima, lançando-os em seguida descuidadamente para o interior do carromato. Sentou-se sobre a erva fresca, apoiando as costas no tronco ereto de um pinheiro. Acendeu um cigarro e começou a fumar pensativamente.
Sorriu na escuridão ao pensar em Nora. Era indubitável que a rapariga continuava a manter-se fiel à sua recordação.
Fez, de súbito, uma careta ao pensar em Diana Norton. Também era indubitável que esta continuava empenhada em que Nora o esquecesse e se casasse com o dono do «Cruz-D-30». Agora mais do que nunca. O que antes havia negado por uma questão de estúpido orgulho negava-o agora por motivos económicos. Aquele casamento era a única possibilidade de voltar a alcançar uma posição que havia perdido irremediavelmente.
Retesou o corpo quando o inconfundível grito de uma mulher assustada atravessou o silêncio da noite. Ergueu-se e sacou os «Colts». Os gritos voltaram a ouvir-se, desta vez mais próximos e proferidos por duas gargantas femininas. Os cavalos relincharam surdamente, intuindo a proximidade do perigo.
Hal iniciou a marcha a grandes passadas para o ponto de onde provinham os gritos. Acelerou a marcha ao perceber os surdos grunhidos dos adotes. Aquela forma peculiar de grunhir indicava que estavam a ponto de alcançar a sua presa.
A lua fez de súbito a sua aparição do lado do horizonte, iluminando a paisagem com a sua pálida luz espectral. Cargan dirigiu ao astro noturno uma cordial saudação, agradecendo-lhe, no seu foro intimo, a sua aparição tão oportuna.
Ao dobrar um recanto composto por uma formação de rochas de estranhas formas divisou as duas mulheres a correr diante de uma alcateia de coiotes, prestes a serem alcançadas por estes.
Esboçou um ligeiro sorriso ao perceber que se tratava de Nora e de sua mãe.
Das suas armas brotaram fogachos alaranjados, e uma chuva de chumbo caiu sobre as feras. O coiote que comandava a alcateia rolou pelo solo ao receber o primeiro impacto no cérebro. Quatro outros tiveram a mesma sorte, e os restantes, alguns deles feridos, refrearam a sua desordenada perseguição.
No preciso instante em que os coiotes iniciavam a retirada, Diana e sua filha, esgotadas pela corrida angustiosa, tropeçaram num tronco caldo, e tombaram juntas sobre um charco de barro pegajoso. Hal chegou junto delas e ajudou-as a levantarem-se. E teve de fazer um esforço para não soltar uma gargalhada ao vê-las cobertas de barro dos pés à cabeça.
— Que se passou, senhora Norton? — inquiriu. — Onde deixaram o carromato?
— Alugámos os serviços de um guia para nos conduzir a Prescou. Roubou-nos enquanto dormíamos e fugiu, deixando-nos sozinhas. Depois... Bom; já pode fazer uma pequena ideia do que se passou. Creio que se você não tivesse intervindo tão oportunamente teríamos acabado entre os dentes desses bichos sedentes de sangue. O carromato está além, junto de um bosquezinho.
— Terão de mudar de roupa. Estão numa lástima. Por um lado, foi bem feito por se empenharem em prescindir da minha presença. Ainda têm muito que aprender. Talvez isto lhes sirva de lição para o futuro. Enfim, acompanhá-las-ei até ao carromato.
Hal atrelou os cavalos enquanto as duas mulheres mudavam de roupa. Conduziu o carromato para junto do seu e convidou-as a retirarem-se para descansar.
— Depois do que se passou — disse Diana com um estremecimento —, parece-me que não vou poder dormir durante três semanas.
— De qualquer modo, tem de descansar. E pode fazê-lo tranquilamente. Eu velarei o seu sono.
— Não é só isso que me preocupa.
Hal interrogou-a com o olhar.
— Não temos nem um cêntimo — disse. — Esse bandido do Jake Peters levou-nos todo o dinheiro que nos restava.
O jovem apoiou um pé no estribo, adiantando o busto ao dizer:
— Não se preocupe por causa disso. Não é esse o maior inconveniente. Terão dinheiro de sobra quando Nora passar a ser a senhora Butte. No carromato têm provisões para uns quantos dias. E com o que obtiverem com a venda do carro terão o suficiente para cobrir as despesas até Prescou. Já sabem o que podem encontrar no caminho. «Apaches» e bandidos. Esse é o verdadeiro inconveniente. Se depois de saberem isto estão decididas a continuar para a frente, eu ofereço-me para guiá-las até Prescou. Caso contrário, logo que amanheça, conduzi-las-ei a Bridge City, se assim o desejarem. Um dia a mais ou a menos não me faz diferença. Pensem no assunto com calma e...
— Está mais do que pensado — interrompeu-o Diana. — Seguimos para Prescou. Nem todos os «apaches» do mundo juntos me assustam. Nem esse tal David Hyden, fique sabendo.
—E eu?
— É o maior perigo que tenho de enfrentar — disse em tom mordaz. — Mas tentarei vencê-lo de qualquer maneira. Aceito os seus serviços de guia até Prescou. Boas noites, senhor Cargan
*
Hal estudou durante alguns momentos a densa massa de nuvens que se amontoavam à distância.
— Parece-me que vamos ter tormenta — murmurou, dirigindo-se às duas mulheres que ocupavam as boleias dos carros.
Diana conduzia a primeira, e Hal, a cavalo, mantinha-se a seu lado.
— Não creio que seja motivo para nos alarmarmos.
— Dir-me-á isso depois, quando a tempestade rebentar por cima das nossas cabeças. A região que atravessamos está muito acima do nível do mar. Na planície, os trovões parecem vir de muito longe. Mas aqui, tem-se a sensação de que se produzem a escassas polegadas das nossas cabeças.
O vento foi ficando mais violento a cada minuto que passava. O céu começou a adquirir um tom amarelado à medida que as nuvens ameaçadoras se foram aproximando.
Um forte cheiro a humidade atacou as fossas nasais dos viajantes segundos antes de começarem a cair sobre eles as primeiras gotas.
Hal ordenou a Diana que detivesse o carro e em seguida atou as rédeas do seu cavalo à parte traseira do carro-mato. Em seguida, saltou para o interior do carro e pela abertura posterior dirigiu a Nora um sorriso de alento antes de tomar conta das rédeas.
Diana passou para o segundo carromato e recomeçaram a marcha momentaneamente interrompida.
O vento cessou subitamente, produzindo-se um curto intervalo de profundo silêncio, perturbado apenas pelo ruído dos cascos dos cavalos e golpearem o solo e pelo estalar das rodas ao saltarem uma e outra vez sobre as pedras que semeavam o caminho.
A trégua durou uns escassos segundos. O ribombar de um trovão pareceu encher o céu, e o estrondoso som foi repetido pelo eco inúmeras vezes.
Aquilo foi o prelúdio do desencadear da tempestade. A chuva começou a cair em bátegas; as grossas gotas arrancavam sons monótonos dos encerados toldos das viaturas e os trovões sucediam-se sem interrupção, deixando doloridos os órgãos auditivos dos três viajantes.
Nora e sua mãe olhavam com o coração encolhido o continuo a ir e vir dos ziguezagueantes raios, alguns dos quais acabam por atingir zonas perigosamente próximas das viaturas.
O caminho havia-se convertido num copioso regato, dificultando a marcha dos carros. Hal franziu o nariz ao notar que penetravam num terreno mais brando do que aquele que haviam percorrido até então. Era infinitamente melhor se não houvesse o problema da chuva; mas se o dilúvio se prolongasse, por muito tempo, podiam ver-se atascados no barro.
Fechou os olhos, cego pela brilhante luz de um raio, que caiu sobre o tronco de um pinheiro na berma do caminho, uns metros à frente deles.
O tronco acusou o impacto com um estalido e tombou para a frente, obstruindo o caminho. Hal deteve a marcha dos cavalos, praguejando surdamente. Saltou do carromato para o solo, estudando o terreno de ambos os lados do caminho. Em seguida, correu para o carromato das duas mulheres.
— Não temos outro remédio senão esperar que passe a tormenta — disse. — Tentaremos então afastar o tronco derrubado pelo raio. A terra é demasiado branda de ambos os lados do caminho. As rodas afundar-se-iam até aos eixos se tentássemos passar agora.
— Você dirige a caravana, Hal — respondeu Diana, tentando aparentar uma serenidade que estava muito longe de sentir. — Limitar-nos-emos a obedecer às suas ordens.
A noite caiu-lhes em cima antes que acabasse o aguaceiro. Desse modo, o jovem optou por pernoitarem ali mesmo, deixando para o dia seguinte a tarefa de desimpedir o caminho do obstáculo que o obstruía.
Além do mais, a tensão nervosa produzida pela tempestade nas duas mulheres havia-as esgotado mais do que a penosa marcha do dia. Hal abriu umas latas de carne para o jantar, mas as mulheres mal tocaram na comida. A forte emoção passada havia-lhes tirado o apetite.
— Isto não foi nada — sorriu, ao ver o desânimo de ambas. — Quando algum raio vos levar o colar ou os brincos é que é de começarem a recear a tormenta.
Repartiu rações de feno seco pelos cavalos e dispôs-se a retirar-se para descansar. Nora chamou-o.
— A tormenta já passou — disse. — Mas pode voltar a repetir-se o ocorrido ontem à noite. Sentir-nos-íamos mais tranquilas se tivéssemos uma arma à mão.
Hal pegou num dos seus «Colts», examinou-o durante breves segundos e estendeu-o à rapariga.
— Sabes manejá-lo?
— Claro que sei. Obrigada, Hal. Devolver-to-ei amanhã.
*
O jovem acordou com as primeiras luzes da alvorada. Lavou-se num riacho próximo e preparou o pequeno--almoço. Em seguida, com a ajuda dos cavalos de tiro, desimpediu o caminho, afastando o tronco para um lado. Bateu com os nós dos dedos, repetidas vezes, nas tábuas laterais do carromato, até que cessaram no interior os ruídos provenientes das respirações.
— O café já está servido -- disse em tom de brincadeira.
Diana e Nora saíram do carromato com os olhos sonolentos. Beberam o café que Hal havia preparado e dispuseram-se a ocupar os seus lugares para partirem. Nora foi buscar o pesado «Colt 45» e devolveu-o ao jovem. Franziu a testa quando viu Hall extrair projéteis do cinturão-cartucheira e introduzi-los no tambor da arma. O jovem carregou-a vagarosamente e voltou a guardá-lo no coldre.
— O revólver que me deixaste, Hal... estava descarregado? — perguntou com incredulidade.
— Claro. Não o examinaste?
O sangue afluiu às fontes da jovem.
— És um aldabrão — explicou. — Valer-nos-ia de muito se tivéssemos sido atacadas pelos coiotes.
— Não fiques aborrecida, Nora. Tinha as minhas razões para proceder assim. Imagina que alguém, um inocente viajante, ou um rural, por exemplo, passava por aqui e se lembrava de se aproximar para nos cumprimentar ou para nos pedir ajuda para qualquer coisa. Estou certo de que lhe terias desfechado um tiro. E não quero nem pensar no que aconteceria se eu me visse obrigado a despertar-vos bruscamente por qualquer motivo. A estas horas, estaria mais teso do que uma estaca. Sim, Nora; os nervos costumam pregar partidas deste género. E vós tendes os nervos mais alterados do que a conta.
--É possível que tenhas razão. Mas podias fazer as coisas de modo que não me ferisses no meu amor-próprio. Por que motivo não me disseste isso ontem à noite?
— Porque precisavas do contacto do revólver para poderes dormir tranquila. De outra forma, a preocupação não te haveria permitido conciliar o sono.
Nora não replicou; subiu para a boleia do carromato para empunhar as rédeas. Só quando o jovem no seu cavalo e se pôs à frente da pequena caravana, se permitiu esboçar um sorriso sem afastar o olhar das costas, amplas e direitas, do homem.
O andamento dos cavalos diminuiu sensivelmente, quando os animais atacaram a pronunciada ladeira. Havia horas que haviam abandonado o quase impercetível caminho seguido até então, e atravessavam agora um terreno árido, quase despido de vegetação, onde as viaturas saltavam de um modo alarmante ao atravessarem os profundos sulcos, produzindo um amálgama discordante de sons quando os utensílios de cozinha chocavam uma e outra vez nas tábuas e entre si.
— Se isto se prolongar por muito tempo, creio que acabarei por ficar louca — gritou Diana, para se fazer ouvir.
O jovem dirigiu-lhe um sorriso de ânimo. Assinalou--lhe em seguida o alto da ladeira, dizendo:
—Já falta pouco. O terreno é mais brando do outro lado. Atingiram o cimo da ladeira e detiveram-se a uma indicação de Hal.
O jovem convidou-as a descer, e apontou-lhes com um gesto largo para o fértil vale que se estendia a seus pés. No centro deste divisaram um edifício de dois pisos de estilo colonial espanhol, rodeado de um amplo pátio. Da cancela do pátio nascia um caminho que, atravessando o vale, ia perder-se em direção ao Sul.
— É a casa do mexicano Morales. Um bom albergue para os viajantes que atravessam estas regiões. E muito hospitaleiro. Boa comida e melhor cama. Esta noite poderão dormir em colchões de penas.
Ante as risonhas perspetivas anunciadas por Hal as duas mulheres cobraram novos ânimos. Assim, o resto do caminho até à casa do mexicano pareceu-lhes um simples passeio. Hal abriu a cancela do pátio, deixando as viaturas num ângulo do mesmo. Uma rapariga de uns vinte anos, de rosto moreno e dentes branquíssimos, com um cravo preso no alto da sua brilhante cabeleira, surgiu à porta da vivenda.
— Boas tardes, Lola — saudou Hal, tirando o chapéu. Lola deu um grito de alegria ao reconhecer o jovem e correu ao seu encontro. Hal enlaçou-a pela cintura, erguendo-a no ar ao mesmo tempo que girava sobre os tacões das suas altas botas de montar.
— Hal Cargan aqui — disse com alegria quando o jovem voltou a deixá-la no solo. — Como o velho Morales se alegraria se pudesse saudar-te neste momento. —O quê? Morales não está?
— Não. Foi ao México por uns dias para resolver uns assuntos de família. E não estará de regresso antes da próxima semana. Quanto tempo pensas permanecer entre nós?
— Apenas umas horas. Partiremos amanhã, com o nascer do sol. Lola fez um gracioso trejeito de desgosto.
— Isso não está certo. Há mais de um ano que não te víamos aqui. E mal acabas de chegar já estás a pensar em partir. Para onde dirige agora os seus passos o inquieto Hal Cargan?
— Para a Califórnia.
— A febre do oiro também se apoderou de ti?
— Não. Mas estive ali uma vez e sempre desejei voltar. possível que decida ficar por lá para sempre.
— O que tu precisas é de uma mulher que te faça assentar a cabeça.
Olhou de súbito para as duas mulheres que seguiam o diálogo e pôs-se séria de repente.
— Acaso a menina é sua esposa? — perguntou, dirigindo-se a Nora.
Hal riu com vontade.
— Tens demasiada imaginação, Lola. A menina Nora Norton é uma antiga conhecida. Seguimos a mesma direção e decidimos fazer a viagem juntos. Esta é Diana Norton, sua mãe. Lola é sobrinha do senhor Morales — acrescentou, dirigindo-se a elas. — Perdeu os seus pais em criança e Morales tomou conta dela. Um verdadeiro diabinho de saias.
As três mulheres saudaram-se com certa reserva; Nora não se eximiu mesmo em manifestar uma certa frieza. Lola convidou-os a entrar no edifício, dando familiarmente o braço a Hall. Ordenou a dois vaqueiros que tomassem conta dos animais e dispôs tudo para atender os convidados. Nora vestiu as suas melhores roupas para se apresentar na sala de jantar. E mais de uma vez mordeu os lábios de raiva ao ver que Hal não tinha olhos senão para a linda mexicana.
*
Nora revolveu-se inquieta no fofo leito. Um estranho desassossego impedia-a de conciliar o sono. Não se encontrava à vontade naquela casa. Já tinha saudades das noites passadas no carromato. O seu corpo ressentia-se da dureza do leito, mas o seu espirito permanecia tranquilo na medida em que ignorava então a existência da sobrinha de Morales.
Soergueu-se ao lembrar-se de súbito de que Hal lhe havia dito que lhe agradavam as mulheres morenas. E Lola era infinitamente mais morena do que ela. Fez um gesto vago, tentando afastar os seus absurdos pensamentos. Ela estava noiva de Getat Butte.
Voltou a vista para sua mãe, que dormia profundamente numa cama contígua à sua. Endireitou o corpo de súbito ao ouvir o dedilhar de uma viola no pátio. E sentiu uma estranha emoção ao ouvir elevar-se no ar a voz varonil de Hal, cantando em tom acariciador uma doce toada mexicana que falava de amor.
Levantou-se, lançando sobre os ombros desnudados um amplo xaile. Avançou lentamente para a varanda e abriu a janela de par em par. A lua nunca lhe pareceu tão bela como nesse momento. O seu olhar percorreu a imensa abóbada celeste cravejada de estrelas, enquanto se sentia transportada a um mundo desconhecido por efeitos da canção.
Saiu para a varanda presa de súbita decisão, desviando as pupilas para o local onde- Hal permanecia interpretando a melodia.
Teve a sensação de que o mundo desaparecia debaixo dos seus pés ao ver Hal abandonar a viola junto à parede e prender entre as suas as mãos de Lola, que assomara a uma das janelas do rés-do-chão.
O seu desengano subiu ao máximo quando Lola e Hal, ignorando a presença dela, uniram os seus lábios num beijo prolongado. Voltou a penetrar no aposento, fechando a janela de repelão. Diana acordou sobressaltada quando um dos vidros se partiu com estrépito devido à violência do golpe.
— Que aconteceu, Nora?
— Nada. Só que me sinto muito infeliz.
Diana encolheu levemente os ombros, sem compreender a estranha atitude de sua filha. Tão-pouco se preocupou em averiguar o que a motivara. Estava demasiado cansada para isso. Assim, limitou-se a dar meia volta sobre o colchão com um suspiro de alivio, sem reparar que Nora havia rompido em soluços.
 
 

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