terça-feira, 13 de março de 2018

BIS160.00(Prefácio) A segunda partida do Destino

 Diana Norton cravou o seu olhar perscrutador no lindo rosto de sua filha Nora, sorrindo com certo ar de maliciosa satisfação.
Nora era o vivo retrato de sua mãe. Olhos semelhantes, grandes e rasgados. Nariz idêntico, um tanto arrebitado, e igual cabeleira, comprida e negra como o azeviche. Até a boca, de lábios ligeiramente cheios e com duas filas de dentes perfeitos, era semelhante à de sua mãe.
Apenas diferiam um pouco no carácter. Nora pertencia ao tipo comunicativo. Era alegre e distribuía prodigamente os seus sorrisos, sem restrições.
Diana, pelo contrário, mostrava-se sempre reservada.
E não eram poucas as vezes que as suas feições ostentavam um ricto amargo: um desengano, um desejo insatisfeito ou uma ânsia de vingança não cumprida.
Nora atirou o chapéu para cima de um dos cadeirões almofadados e aproximou-se de sua mãe. Beijou-lhe a face, que não havia perdido a frescura com o decorrer dos anos, e sentou-se no divã junto dela.
Encheu um copo de água contida no jarro de vidro que se encontrava sobre a mesinha, e recostou-se nos almofadões.
— Tenho de falar contigo — disse.
Diana olhou para a sua filha de soslaio, antes de responder:
— Imagino o que tens para dizer-me. Não é difícil adivinhá-lo. Estás apaixonada.
— Como conseguiste sabê-lo?
— Há coisas que saltam à vista. Fui jovem como tu e senti o mesmo que estás a sentir agora.
A mulher pôs-se séria de repente ao acabar de dizer isto. Nas suas lindas feições apareceu por instantes aquele estranho ricto amargo. Mas refez-se prontamente.
Quando voltou a fitar sua filha, o seu rosto havia adquirido a serena expressão de sempre.
— Eu conheço-o?
— Creio que não.
— Forasteiro?
— Sim. Conheci-o no ano passado em Las Vegas. Foi na festa do aniversário da tia Mathie.
— Algum abastado fazendeiro do Novo México?
— Não propriamente. Parece que seu pai possuiu extensas plantações na Virgínia.
— Isso quer dizer que já não as possui. A que se dedica?
— Pensa construir um rancho no Arizona e dedicar-se à criação de gado.
— Deves amá-lo muito para estares disposta a esperar que alcance a fortuna para te casares com ele. Antes de três ou quatro anos não poderá tirar qualquer lucro do rancho, a não ser que conte com o dinheiro suficiente para o montar com todos os requisitos.
— Não conta com dinheiro suficiente para isso. Tem algum, pouco, segundo parece, que seu pai conseguiu salvar da ruína.
— Ouve uma coisa, Nora, antes de continuarmos. As miragens não são fenómenos exclusivos do deserto. O coração também as tem. Por vezes, acreditamos estar muito seguras dos nossos sentimentos e depois, talvez demasiado tarde, compreendemos que...
— Compreendo perfeitamente o que vais dizer-me --interrompeu-a Nora. — Asseguro-te que não é o meu caso. Meditei longamente no problema.
— Bem — suspirou. — Podemos estudar com Wilkes o modo de concedermos a esse jovem qualquer quantia a título de empréstimo.
— Não a aceitaria.
— Orgulhoso?
— Não mais do que a maioria dos homens. É audaz, decidido. Só admitirá a prosperidade se esta for o resultado dos seus próprios esforços.
— Isso diz muito a seu favor. Mas continuo a. pensar que três ou quatro anos é demasiado tempo. Podem acontecer muitas coisas. Uma delas é que a ausência esfrie as vossas relações, o que não seria muito grave se fosses tu a primeira a desistir.
— Isso não acontecerá. Casar-nos-emos na próxima semana. Quero fazer a viagem com ele e ajudá-lo na parte mais difícil da missão que se propôs levar a cabo. Não gosto de encontrar tudo feito.
— Não estás preparada para. um trabalho de tal envergadura. E tu sabe-lo melhor do que ninguém.
—O que não significa que o não possa tentar.
Diana olhou para a sua filha de soslaio.
—Vejo que vai ser trabalho inútil tentar dissuadir-te — disse. — Bem; como se chama ele?
— Hal Cargan.
Diana levantou-se como se o assento estivesse em brasa.
— Disseste Hal Cargan?
— Sim. Que tens, mamã? Acaso o conheces?
— É possível que esteja enganada — disse, como se falasse consigo mesma, com o olhar perdido num ponto indefinido. — Mas é demasiada coincidência que o seu apelido seja Cargan e tenha vindo da Virgínia, onde possuiu extensas plantações. Sabes como o pai dele se chama?
— John.
Diana lançou um pequeno grito, avançando para a grande janela que dava para o alpendre da mansão.
— O que eu supunha. Não podia tratar-se de outro.
O Destino pregou-me uma má partida e empenha-se em repeti-la. Mas não o conseguirá. Não haverá força humana capaz de convencer-me. Esta segunda partida do Destino dar-me-á a satisfação da vingança. A minha filha desprezará o seu filho como ele me desprezou a mim. Conhecerá a humilhação do desengano e sofrerá pela sua impotência.
Nora dirigiu-se para junto de sua mãe, olhando com estranheza para o aspeto duro do seu rosto. Não percebia nada do que estava a dizer, mas algo lhe dizia que entre Hal Cargan e ela ia interpor-se uma barreira muito difícil de transpor.
— Queres aclarar um pouco tudo isso que estás a dizer? — inquiriu.
Diana voltou-se para ela, segurando-a pelos braços. E quando começou a falar as palavras brotaram dos seus lábios com a secura de chicotadas.
— Não vou aclarar nada por agora. Algum dia o farei. Quando a recordação desse Hal Cargan não passar de uma longínqua reminiscência na tua memória. Começa já a lutar por esquecê-lo, porque não podes casar-te com ele. Antes preferia ver-te morta do que unida a esse homem.
A jovem olhou para sua mãe através das lágrimas que lhe embaciavam as pupilas. Doía-lhe o tom que sua mãe empregara para lho dizer. E mais ainda, doía-lhe o facto de ter de renunciar a Hal por algo que havia existido no passado entre John Cargan e sua mãe.
— Prepara as malas. Nora— prosseguiu Diana. —Dentro de uma hora partiremos para Las Vegas. Será a melhor forma de não voltares a ver esse homem.
Acompanhou a jovem ao seu quarto e colocou um par de malas sobre a cama.
— Prepara-te rapidamente. Não quero perder nem um minuto.
Saiu, não ligando aos soluços que começaram a acudir ao peito da jovem.
Mudou de roupa e deu ordem para que fosse preparada a carruagem para a viagem.
Olhou para o aprumado criado de cor que acabava de bater à porta do seu quarto e perguntou-lhe o que pretendia.
— Um cavalheiro pergunta pela senhora. Disse chamar-se John Cargan.
Diana alterou-se ligeiramente ao ouvir o nome. Mas refez-se com pasmosa rapidez.
Saiu para o vestíbulo, envolvendo num olhar pletórico de rancor o homem que tinha diante de si, que a cumprimentou com um leve sorriso.
John Cargan conservava aos cinquenta anos a presença varonil que o distinguira na sua juventude. O cabelo e o bigode eram agora completamente brancos, mas o seu rosto, apesar das rugas que o sulcavam, deixava transparecer a serenidade e a doçura de sempre. O traje
de vaqueiro, um tanto coçado, que vestia, não lhe tirava personalidade.
—Nora disse-te que ela e o meu filho?
— Sim. Há exatamente alguns minutos.
— Vim cá por causa disso. Calculo que te tenhas negado completamente e admitir e a consentir que esse noivado siga por diante. Já vês que continuo a conhecer--te bem apesar dos anos. Quis, por isso, fazer-te esta visita, antes que seja demasiado tarde. Tens nas tuas mãos a felicidade de dois seres inocentes. Se antepuseres o amor pela tua própria filha ao rancor e ao orgulho ofendido, Nora e Hal poderão lograr na vida o que nenhum de nós conseguiu.
— Tudo quanto disseres será inútil, John. Resolvi dar este passo e por nada deste mundo voltarei atrás. Esperei por uma coisa assim durante trinta anos. E agora que tenho esta oportunidade não vou deixá-la escapar.
—É a felicidade de tua filha o que está em jogo.
—Ë jovem e esquecerá.
— Tu não esqueceste em trinta anos. A ela acontecer-lhe-á a mesma coisa.
— Tanto se me dá. Estou decidida a isso.
—Pensa bem no que vais fazer. Não te deixes obcecar pela vingança. Pode acontecer que isto acabe por se voltar contra ti.
— Não me importa. Ninguém poderá arrebatar-me a
satisfação que possuo neste instante. Eu era uma humilde rapariga da Virgínia há coisa de trinta anos. E tu, o filho único de um dos mais ricos fazendeiros do Estado. Os teus pais não viam com bons olhos aquilo que consideravam uma loucura tua. E ameaçaram deserdar-te se te empenhasses em levar por diante o nosso noivado. Preferiste a segurança da herança a uma vida de privações ao lado da mulher que amavas.
John deixou pender a cabeça por alguns instantes. Quando a ergueu, havia uma sombra de nostalgia nas suas pupilas.
— Sim, Diana. Nisso tens razão. Fui um cobarde. E asseguro-te que paguei bem caro a minha cobardia.
— Ainda tens de a continuar a pagar. Tive de abandonar a Virgínia para evitar os olhares e as frases de ironia e de compaixão de toda a gente que me conhecia. Mas agora a situação mudou. Que pode o teu filho oferecer a Nora?
John Cargan esboçou um sorriso, cravando as suas pupilas nas de Diana antes de replicar:
—Não sou o mais indicado para te dizer que os bens materiais não são tudo na vida, embora nos empenhemos em considerá-lo assim. Seria uma hipocrisia da minha parte. Como o é da parte de todos os que o afirmam, pois, a verdade, a triste verdade, é que nos mordemos uns aos outros para aumentar a nossa fortuna. Bem; lamento-o por Hal e pela tua filha. Adeus, Diana.
A mulher viu-o partir. Não tentou detê-lo. Fechou os olhos para abafar os gritos da sua consciência e dispôs-se a preparar a sua própria bagagem para a viagem a Las Vegas. Uma única dúvida empanava o brilho da sua vingança. O não saber se Nora conseguiria apagar com o tempo a recordação de Hal. Porque ela, ao fim de trinta anos, havia sentido renascer no mais profundo do seu ser a sua velha paixão à vista do único homem que havia amado deveras na vida.

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