domingo, 18 de março de 2018

BIS160.05 O Salto do Anjo

Hal mergulhou com verdadeiro prazer nas águas do pequeno tanque natural. Demorou um bom bocado antes de fazer desaparecer da sua pele a capa formada pelo suor e pelo pó depois de marcha tão prolongada.
Uma das zonas perigosas havia ficado para trás e isso fazia-o olhar para o futuro com um semblante mais risonho. Com um pouco de sorte, poderiam atravessar as vizinhas montanhas sem contratempos e alcançar Prestou em dois dias.
Prestou ou Califórnia? Só Nora poderia responder a essa pergunta.
A parte mais difícil consistia em dissuadir Diana Norton do projetado casamento com Geat Butte. Claro que primeiro teriam de atravessar as montanhas. E nelas, David Hayden tinha a sua guarida. E entre David Hayden e ele existia uma velha conta por saldar...
— Hal! Sai daí... Nós também estamos a precisar de um bom banho.
Abandonou o fresco líquido e vestiu-se rapidamente. Em seguida, entreteve-se a procurar frutas silvestres para comer, enquanto as duas mulheres se banhavam.
Nora não tardou a apresentar-se diante dele. Vinha só e o jovem começou a adivinhar o que se passava no seu íntimo ao ver a expressão contristada do seu rosto.
— Tira a camisa, Hal. Quero ligar-te a ferida.
O jovem deixou a descoberto o seu poderoso tórax.
— Está com bom aspeto. Não tardará a cicatrizar — disse o jovem.
A rapariga oprimiu-lhe a carne à volta do orifício com a ponta dos dedos.
— Dói?
— Não.
— Desta vez tiveste sorte. Não há infeção.
Enquanto lhe ligava o ombro ferido com mãos hábeis, Hal olhou-a fixamente nos olhos antes de murmurar:
— Diz o que tens a dizer, Nora. Não te sintas embaraçada.
— Como sabes que tenho algo a dizer-te?
— Não é preciso ser-se um lince para o adivinhar.
 — E tu és um lince, claro.
— É a respeito do que aconteceu ontem no bosque, não é verdade, Nora?
— Sim. É a respeito disso que quero falar-te.
-- Disseste que me amavas. E agora vens retificar as palavras ditas. Vens dizer-me que se escaparam sem tu quereres. A tua mãe convenceu-te de que serás mais feliz ao lado de Great Butte. Ele tem um grande rancho e eu só tenho o dia e a noite. E há que olhar para o futuro. Não se vive de ilusões. E o estômago estando vazio não para de reclamar.
— Não é isso exatamente. Minha mão não influenciou em nada a minha decisão. Fiquei voluntariamente noiva de Butte sem coação de nenhuma espécie por parte de ninguém. Só te peço um pouco de compreensão, Hal. Sinto deveras que a minha atitude de ontem te cause um desgosto por ter de a retificar desta forma, mas não esteve nas minhas mãos evitá-la. Tínhamos corrido um sério perigo e estava transtornada. Num estado de semelhante anormalidade não tem nada de particular que dissesse' ou fizesse algo fora do normal. Mas agora, depois de ter tido tempo para pensar em tudo friamente...
—Não é preciso continuares, Nora. Eu responsabilizo-me por tudo. Pelas anormalidades de ontem e de hoje. Ao fim e ao cabo, talvez seja melhor assim.
— Alegro-me que encares assim o problema, Hal. Além disso, creio que Lola sofreria um grande desgosto se tu... Bom; vi como se beijavam naquela noite que passámos em casa de seu tio.
Hal sorriu ao dar-se conta de que a jovem fazia desesperados esforços para conter os soluços. Estava a mentir deliberadamente. Tudo aquilo era uma consequência lógica das maquinações de Diana Norton para impedir que o velho idílio revivesse. E a alusão a Lola era motivada pelos ciúmes.
— Vou fazer-te uma confissão, Nora. Sinto por Lola um grande apreço. E ela não vê outra coisa em mim que não seja um irmão. O que se passou naquela noite tinha sido de antemão combinado por nós. Queria despertar velhos ecos no teu coração por meio dos ciúmes. E foi tudo. Não me importa de dizer-to agora, já que todas as minhas esperanças foram por água abaixo.
Nora ia para dizer algo, mas conteve-a a presença de sua mãe que acabava de surgir na clareira.
— Descansaremos um par de horas — disse o jovem com indiferença. — Procurem aproveitar bem o tempo porque nos espera uma dura jornada. Se as coisas nos correrem bem, dentro de três dias estaremos em Prescou. Mas ainda nos falta a parte mais difícil. A região que deixámos para trás é um paraíso comparada com aquela que nos espera. E os «apaches», ao lado de David Hayden e dos seus homens, não passam de umas crianças de peito.
Hal acabou de alcançar o cume da montanha e observou o horizonte.
Estremeceu ligeiramente ao receber em cheio uma rajada de vento gélido.
A seus pés estendia-se um pequeno vale, onde cresciam aqui e ali alguns abetos raquíticos.
Fez pala com as mãos para proteger os seus olhos dos ofuscantes raios de sol, quase a ocultar-se à distância, procurando na colina próxima algum ponto negro que lhe revelasse a existência de uma caverna.
As noites eram frias nas montanhas e podia significar um suicídio pernoitar ao ar livre.
Algumas depressões conservavam no seu seio a brancura da neve acumulada durante o Inverno anterior.
Por fim, julgou encontrar o que procurava e calculou a distância. Podiam chegar lá num par de horas. Talvez fosse demasiado depois da dura jornada que tinham vivido. Os cavalos estavam suados e fatigados, e as mulheres viam-se obrigadas a fazer esforços inauditos para se manterem sobre as selas.
Voltou-se para o lugar onde haviam ficado Diana e sua filha, fazendo-lhes sinais para que avançassem.
Diana vacilou de repente sobre o cavalo. Deslizou de lado, vencida pelo esgotamento, e caiu no solo.
Hal apressou-se a chegar junto dela. Entre Nora e ele ajudaram-na a erguer-se.
— Não posso mais — gemeu.
— Pois tem de poder — replicou o jovem. — Um último esforço e passaremos a noite abrigados. Há uma caverna na colina em frente.
— Poderíamos passar a noite aqui mesmo.
— Refazer-se-á do cansaço quando se encontrar no rancho de Butte. Se adormecêssemos aqui, o nosso sono prolongar-se-ia até ao dia do Juízo Final.
Montou-a sobre o cavalo, convidando-a a abraçar-se ao pescoço do animal. Em seguida, amarrou-a de forma a que não pudesse cair.
— Lamento muito — disse. — Mas é a única forma de chegar à caverna sem partir nenhum osso.
A caverna era profunda e baixa de tecto. Hal acendeu uma fogueira no interior e as mulheres não tardaram a adormecer, protegidas do frio pelo agradável calor espalhado pelas chamas.
Quando despertaram, o sol havia algum tempo que tinha surgido.
Nora levantou-se, assustada, ao ouvir detonar uma arma de fogo no exterior. Resmungou ao bater com a cabeça no duro tecto da caverna.
Deixou escapar um suspiro de alívio ao assomar e ver regressar o jovem com um coelho morto na mão direita.
— Assustei-me. Ouvi o tiro e julguei que tínhamos David Hayden em cima.
Cargan fitou-a de um modo um tanto enigmático ao responder:
— É possível que não decorra muito tempo antes de o termos em cima.
— O que te faz supô-lo?
— Vi restos de fogueiras ali em baixo. Uma dúzia de homens, pelo menos, deixaram as suas pegadas impressas à volta delas. Há restos de comida e isso leva-me a admitir que esses homens acamparam no vale há quando muito dois dias. Podem ser colonos ou simples viajantes. Mas não convém esquecer que David Hayden é dono e senhor desta região.
Nora sentiu-se sacudida da cabeça aos pés por um violento calafrio.
— Podemos voltar para trás e fazer um rodeio.
— Mas não o faremos.
— Se cairmos em poder desse bandido...
— Não vos acontecerá nada de grave.
—E a ti?
— Errar é humano, mas também é humano tentarmos retificar a nossa conduta. Tive ocasião de matar Hayden e não o fiz. Foi um erro. Quero, agora, retificá-lo.
— Mas...
— É inútil, Nora. Sou tão difícil de dissuadir como tua mãe.
A jovem não insistiu. Sabia que seria inútil tudo quanto acrescentasse para convencer Hal da conveniência de se afastarem da perigosa rota. E, no fundo, não sabia discernir o que lhe produzia maior temor: se um encontro com Hayden ou com Geat Butte.
Atingiram a crista da colina, olhando com cuidado para o tortuoso caminho que se abria agora diante deles.
A colina morria num barranco de paredes direitas, que se prolongava para a esquerda até se perder de vista. O único caminho era constituído por uma estreita vereda natural de pouco mais de um metro de largura.
— Passei por aqui uma vez há uns dois anos. A meia milha daqui há uma fenda com umas duas jardas de largura que os cavalos podem saltar sem grande esforço. Depois, o caminho vai-se alargando a pouco e pouco e desemboca num amplo vale. Dali até Prescou será pouco menos que uma viagem de prazer.
Hal abriu a marcha, seguindo-se-lhe Nora. Diana cavalgava em último lugar. Atingiram a fenda que dividia o caminho em dois. As mulheres olharam com receio para a ampla fenda, cujo fundo, vinte metros mais abaixo, era formado por um aglomerado de rochedos. O cavalo do jovem saltou facilmente o obstáculo. Uma vez no outro lado, apressou-se a desmontar, ficando de pé exatamente na borda do precipício.
Nora conteve a respiração enquanto sentia voar o nobre animal pelos ares. Quando o cavalo apoiou as suas patas em terreno firme deixou escapar de uma s6 vez todo o ar que retivera nos pulmões.
Hal franziu o sobrolho ao ver o cavalo que Diana montava cabriolar indeciso.
— Segure as rédeas com mão firme — gritou-lhe.
Diana fez o que o jovem lhe ordenava, golpeando os quartos traseiros da sua montada com uma fina tira de couro. O cavalo arrancou de súbito, mais receoso do castigo do que do abismo que tinha de saltar. Nora lançou um grito de terror ao dar-se conta de
que os cascos traseiros do animal, mal calculado o salto, resvalavam na borda do abismo.
Hal enlaçou a mulher pelos braços no preciso instante em que o cavalo, com um relincho de pânico, desaparecia na fenda.
Diana permaneceu vários segundos suspensa no abismo, proferindo gritos de terror. Quando o jovem conseguiu ajudá-la a apoiar os pés em terreno firme, o seu rosto estava branco como um lençol. As duas mulheres abraçaram-se à beira de um ataque de histerismo.
— Será melhor dominarem os nervos — aconselhou-as Hal. — Foi um mau bocado, mas já passou.
— Podia ter morrido.
— Não há que pensar no que poderia ter acontecido, mas no que aconteceu. Os seus netos fitá-la-ão boquiabertos quando lhes contar a história.
Diana montou na garupa do cavalo do jovem, e recomeçaram a marcha. O trilho descia suavemente para o vale, formando um cotovelo uns metros antes do fim.
Ao dobrar o cotovelo, Hal fez menção de se voltar para as duas mulheres para lhes assinalar o amplo vale enfeitado de artemísias que se oferecia à sua vista. O seu gesto foi interrompido ao pousar as suas pupilas nos dois homens situados no ponto exato onde o estreito caminho desembocava no vale, que lhes apontavam enormes «Winchesters».
Hal avaliou rapidamente a situação, chegando à conclusão de que estavam à mercê dos desconhecidos. As balas das carabinas chegariam muito primeiro do que as suas mãos aos revólveres. E não podiam recuar. Ofereciam um alvo demasiado fácil e o lugar não apresentava o espaço suficiente para fazerem manobrar os cava-los e atingirem a proteção da parede no outro lado do cotovelo rochoso.
Continuou para a frente impavidamente, murmurando umas palavras tranquilizadoras para acalmar a excitação que a inesperada presença dos dois homens havia despertado em Diana e em sua filha.
-- Desça do cavalo e não faça o menor gesto suspeito — ameaçou um deles. — A sua vida responde por si, amigo.
Hal cumpriu ao pé da letra o que lhe ordenavam. E deixou que lhe tirassem as armas sem opor resistência. Se estivesse sozinho não se teria entregado sem luta. Mas a presença das duas mulheres constituía um poderoso freio para os seus impulsos.
— Somos uns pacíficos viajantes — disse Diana, com um fio de voz. — Pode saber-se o que significa isto?
— Significa que David Hayden quer dar-lhes as boas--vindas. É o rei destas montanhas e ninguém as pode atravessar sem pagar a contribuição imposta para se circular livremente nelas.
Nora empalideceu intensamente ao ouvir pronunciar o nome do bandido. Dirigiu ao jovem um olhar de profunda inquietação, que lhe correspondeu com um sorriso de ânimo. A noticia também havia afetado Diana Norton, embora esta se esforçasse por o dissimular.
— Volte a subir para o cavalo, compadre — convidou-o o bandido. — Vão ter a honra de entrar nos domínios de Hayden.
Caminharam durante algum tempo pelo vale, voltando a entrar nas montanhas por uma estreita garganta situada um par de quilómetros ao Norte do trilho.
A garganta alargava-se à medida 'que iam avançando, acabando por desembocar num terreno árido que formava uma série de desníveis, rodeado por pequenos planaltos de terra vermelha.
Deixaram para trás o acidentado terreno e passaram a trilhar uma infinidade de caminhos altos rodeados de escarpas. Subiram por uma apertada passagem cujas paredes eram formadas por duas rochas de colossais proporções e, ao saírem do corredor rochoso, ofereceu-se aos seus olhos uma paisagem de singular beleza.
A seus pés, rodeado de uma cadeia de picos eretos, havia um vale de exuberante vegetação. No centro deste, algumas dezenas de casas de adobe e de troncos, dispostas simetricamente, formavam uma autêntica povoação. O esconderijo de David Hayden!
Desceram ao fundo do vale por uma vereda tortuosa. As ruas da povoação dos bandidos eram um fervedouro de garotos que brincavam e corriam de um lado para o outro, lançando para o ar as suas vozes e risos agudos. Várias mulheres, algumas de singular beleza, assomavam às janelas ou apareciam nos vãos das portas para observarem curiosamente a comitiva que chegava.
-- Boa caçada, «Corvo» — gritou um homenzarrão de rosto patibular, dirigindo-se ao bandido que cavalgava à cabeça. — A rapariga é digna de um rei, embora a velha não valha um chavo.
Diana fulminou-o com o olhar. Desmontaram defronte de uma casinha de paredes caiadas, situada no extremo Sul do povoado. «Corvo» abriu a porta, convidando-os a entrar com um gesto de irónica cortesia.
David Hayden era quase tão alto como Hal, embora menos largo de ombros. O bigodinho que cobria o seu lábio superior contribuía para emprestar um certo atrativo às suas feições. Só nas suas pupilas, negras como o cabelo ondulado, podia entrever-se a dureza de carácter do chefe dos bandidos.
— Cacei-os quando acabavam de atravessar o «Caminho Interrompido» — explicou «Corvo». — Que fazemos com eles?
Hayden bebeu um longo trago do uísque que enchia o copo que tinha na mão direita, abandonando o cómodo sofá onde permanecia recostado. Nora, por momentos, teve a sensação de se encontrar despida ante o inquisitivo olhar do bandido.
— Uma linda pombinha — disse, sorrindo para a jovem, que baixou os olhos para o solo. Diana quase não mereceu a sua atenção.
De súbito, deu um salto ao reconhecer Hal Cargan.
— Com mil diabos! — trovejou. — Mas este tipo é nada mais nada menos que o meu velho amigo Hal Cargan. Rapazes, recompensar-vos-ei esplendidamente por esta captura. Andei dois anos a estudar o modo de poder encontrar o fanfarrão do Hal para poder desforrar-me... e este vem parar às minhas mãos da maneira mais inesperada. Caçado como um incauto coelhito.
Riu de um modo estentóreo, mostrando duas filas de dentes branquíssimos.
— Sabes muito bem que os teus homens não teriam podido caçar-me tão facilmente se eu não estivesse acompanhado por estas duas senhoras. Não quis envolver-me numa luta e pôr em perigo as suas vidas. De outro modo, nem «Corvo» nem o seu compadre estariam diante de ti nestes instantes.
Hayden riu com mais força do que antes.
— Continuas a ser o mesmo fanfarrão de sempre.
— E verdade, Hayden. Sou um fanfarrão. Mas já uma vez te demonstrei que as minhas fanfarronadas não são pura fantasia.
Hayden ficou sério de repente a ouvir a alusão. A derrota que Hal lhe infligira tempos atrás era um espinho cravado no rude coração do bandido.
— Deixaremos o nosso assunto para mais tarde —disse, contendo-se com dificuldade. — Aonde se dirigiam através das montanhas?
— A Prescou — replicou Diana, que havia recuperado parte do seu habitual aprumo. — E será melhor para você que nos deixe partir sem demora. Nora... a minha filha, está noiva de Geat Butte. Suponho que já deve ter ouvido falar dele. E o rancheiro mais poderoso do Arizona. Quando souber do ocorrido, removerá o céu e a terra até lhe dar o que merece.
Os olhos de Hayden brilharam de malícia.
— Claro que conheço Geat Butte. E parece-me que é muito pouco o que devemos um ao outro.
— Que pretende insinuar?
— Deixo a resposta à sua escolha. Quanto ao resto, Butte saberá bem depressa o que aconteceu. Eu mesmo me encarregarei de lho comunicar. Tem razão ao dizer que é o rancheiro mais poderoso do Arizona. Por isso, será uma ninharia para ele os vinte mil dólares que terá de desembolsar para poder ter junto de si a sua linda noiva e a sua futura sogra.
— Você é um bandido! — rugiu Diana.
— Naturalmente. Não vou negá-lo.
Voltou-se para o jovem e perguntou-lhe:
— Desde quando Hal Cargan se dedica a exercer a profissão de guia?
— Desde nunca. Tudo se deve a uma circunstância fortuita.
— E verdade — interveio Nora, serena. — O senhor Cargan seguia uma rota diferente da nossa. Se se comprometeu a acompanhar-nos foi por uma questão de cavalheirismo. E nós estamos em dívida para com ele. A liberdade de Cargan deve ir incluída nesses vinte mil dólares.
Hayden fitou-a com uma expressão turva.
— Isso é uma conta à parte. Nem por todo o oiro do mundo me privaria do prazer de fazer morder o pó, a Hal Cargan com as minhas próprias mãos. Tu, «Corvo», ficas encarregado de as conduzir a casa de Berta. Que não lhes falte nada durante o tempo que tenham de permanecer entre nós. Não é preciso preocupares-te com Cargan. Ele mesmo encontrará onde passar as noites. Os três podem circular livremente pela povoação e pelo vale. — E voltando-se para o jovem, advertiu-o: — Já podes fazer uma ideia do que isso significa. Não há possibilidade de fuga. Todas as saídas estão estreitamente vigiadas. Precisarias de asas como os pássaros para sair daqui. Voltarei a falar contigo amanhã. Antes de te devolver... «aquilo», tens de fazer um trabalhinho para mim. David Hayden é assim, rapaz.
Hal despertou com as primeiras luzes do alvorecer. Espreguiçou-se ruidosamente, abandonando o montão de palha que lhe havia servido de leito.
Saiu para o exterior, sacudindo a roupa para a limpar dos resíduos de palha a ela aderidos. Pôs o chapéu e começou a andar com todo o à-vontade por uma das ruas da povoação. Fez de conta que não via a jovem de cabeleira loira que lhe sorriu do saguão de uma casa de adobe e prosseguiu o seu caminho.
A porta da casa de Hayden estava fechada e Hal bateu até ouvir os insultos que brotaram do interior. O próprio David Hayden veio abrir, ameaçando-o com um revólver.
— Que diabo queres...? — Interrompeu-se ao reconhecer o jovem. — Julguei que era um dos meus homens.
— Tens muito maus modos, David — sorriu o jovem, penetrando na habitação.
— Que bicho te mordeu? — inquiriu o bandido.
— Tenho a impressão de que foram todos os bichos do mundo. Há dois dias que não comemos outras coisas que não sejam frutas silvestres, e o meu estômago reclama algo de mais sólido. Como suponho que não deve fazer parte dos teus planos fazer-me morder o pó por meio da fome, convidei-me para almoçar contigo.
Hayden fitou-o, perplexo. Em seguida, sorriu e convidou-o a sentar-se.
— Diabo de Cargan — disse, colocando diante dele vários pratos• de apetitosas iguarias. —E uma pena que tu e eu tenhamos de ser inimigos. Na verdade, faz-me falta na quadrilha um homem com a tua têmpera. Todos os que tenho não passam de uma manada de borregos.
— Talvez tenhas razão — respondeu, comendo com voracidade. — Mas é melhor não pensares nisso. Não me atrai o oficio de bandido. Gosto das gravatas de seda, não das de cânhamo.
Hayden fez um gesto no ar.
— Não me lembres isso. Pões-me nervoso. De qualquer forma, não penso acabar assim.
— Vais matar-me a sangue frio? — perguntou, de súbito, o jovem.
— Devia fazê-lo. No entanto, conceder-te-ei uma oportunidade. Quero vencer-te em igualdade de condições. Quero que sintas a: humilhação da derrota, como ma fizeste sentir a mim, antes de te despachar para sempre deste mundo.
— Nesse caso, podes afirmar que não acabarás com uma gravata de cânhamo, servindo de adorno a um pinheiro manso. Terás uma morte rápida. Prometo enfiar-te um balázio no coração para que não sofras.
— És um fanfarrão, Hal Cargan.
— Somos dois fanfarrões, David Hayden. E já te venci uma vez.
— Da próxima vez que nos enfrentemos ficaremos em paz. Ficarás em paz com toda a gente, melhor dizendo — disse, sorrindo.
Hayden dirigiu-se para a saída, voltando-se já com a mão no puxador da porta.
— Vou buscar as damas — disse. — Espera-me aqui.
Quero mostrar-te uma coisa antes que partas para realizar a missão de que te vou incumbir. Não te incomodes a procurar qualquer arma dentro desta casa porque não a encontrarás.
— Obrigado pelo aviso, Hayden, mas a verdade é que não pensava fazê-lo.
Hayden não tardou a estar de regresso, acompanhado das duas mulheres. Tanto Nora como sua mãe tinham impressas nos seus rostos as marcas de uma noite de insónia. Os olhos da jovem estavam avermelhados pelo pranto. Hal pôs-se em pé quando elas entraram, dirigindo-lhes um sorriso animoso. O bandido colocou sobre a mesa vários papéis em branco, um tinteiro e uma pena.
— Sente-se, Nora — convidou-a. — Domine os seus nervos e escreva uma carta ao seu noivo. Diga-lhe que se encontra em meu poder e que exijo vinte mil dólares em troca do seu resgate.
Hal Cargan levará a sua mensagem a Butte. Ele mesmo se encarregará de trazer o dinheiro deixá-las-ei partir sem mais demoras.
— Que garantias temos nós de que cumprirá a sua palavra.
O jovem assentiu com a cabeça.
— E verdade, senhora Norton. Hayden é um bandido, mas também é um homem de palavra.
— A parte isso, pode dizer a seu noivo todas as meiguices que achar oportunas — ironizou o bandido.
Nora escreveu umas breves linhas com mão febril, assinado a curta missiva no fim. O bandido leu o que a rapariga escrevera e deu a sua aquiescência com um grunhido.
— Está bem — disse. — Não há dúvida de que diz tudo com poucas palavras.
Lacrou a lacónica mensagem e entregou-a ao jovem, que se apressou a guardá-la no bolso da camisa.
— Agora, Cargan, vais dar um passeio comigo. «Corvo» acompanhar-nos-á. Já deve ter preparado os cavalos.
Durante bastante tempo os três homens cavalgaram em silêncio até ao extremo ocidental do vale. Os cavalos que Hal e o chefe dos bandidos montavam iam a par e «Corvo» cavalgava uns metros mais atrás. O jovem sorriu ao olhar de soslaio para este e verificar que empunhava um revólver na mão direita, sem afastar o olhar das suas costas.
— Eu no teu lugar não me teria dado ao incómodo de me fazer acompanhar por um esbirro — disse, sorrindo.
— Pois eu no meu lugar, sim. Conheço-te o suficiente para não me fiar em ti.
— É uma honra saber-me temido por um chefe de bandidos.
— Não é temor, Cargan. É...
— Medo.
— O diabo que te carregue, Hal! Consegues sempre fazer-me perder as estribeiras.
Desmontaram a uma indicação de Hayden junto a um pequeno bosque de pinheiros. Atravessaram este a pé e o bandido mostrou ao rapaz o panorama que se estendia para lá do vale que lhe servia de guarida. O vale acabava bruscamente num barranco cortado a pique, de mais de vinte metros de altura.
Em baixo, borbulhavam as águas de um subterrâneo que surgia impetuoso das entranhas da terra, indo perder-se numa passagem estreita formada por duas paredes eretas que se elevavam uns quantos metros acima do vale. Na parede da esquerda existia uma cornija que se prolongava por alguns metros até se perder de vista numa parte em que a parede fazia uma curva.
— Este é o único ponto do vale isento de vigilância —disse Hayden. — O único lugar por onde se pode escapar com um pouco... ou melhor, com uma grande dose de sorte. Três prisioneiros tentaram até agora a aventura. O que chegou mais longe não passou de metade da distância que vai daqui ao lugar onde a cornija se perde de vista. Os três foram arrastados pelas turbulentas águas do rio que corre lã em baixo. Os meus homens chamam a esta passagem o «Salto do Anjo». A cornija prolonga-se um par de jardas no outro lado do cotovelo e desemboca num trilho que corre entre as rochas até ao cimo da escarpa.
— Está tudo muito bem, Hayden. A paisagem torna-se bela, quanto mais não seja pelo seu selvagismo. O que não consigo compreender é o motivo i3or que te ocorreu a ideia de ma mostrares.
— Só para que compreendas que não há fuga possível. As paredes que circundam o vale são praticamente inacessíveis. E os únicos pontos de saída estão estreitamente vigiados pelos meus homens. Apenas esta parte oferece uma remota possibilidade de fuga.
— Não penso fugir, David — respondeu calmamente. — Se esse pensamento te preocupa verdadeiramente, podes afastá-lo da tua mente. Só tentaria escapar das tuas garras se o pudesses fazer na companhia das duas mulheres.
Voltaram para a povoação.
--- Porque me escolheste precisamente a mim para levar a mensagem a Butte? — perguntou Hal, depois de um curto silêncio.
— Porque tu o farás infinitamente melhor do que qualquer dos meus homens. 2s um cavalheiro, Cargan. Não te faltarão palavras para persuadir Butte de que a única forma de resgatar a sua noiva é entregar o dinheiro.
— É uma razão, mas não muito forte. E se eu decidisse não voltar ou, inclusivamente, afastar-me daqui com os vinte mil dólares de Butte?
— Sei que não o farás. Tens muito coração, rapaz. Conheço-te bem e sei que voltarás. De outro modo, não me atreveria a confiar-te a missão.
— Creio que tens razão. Podes ter a certeza de que voltarei. Por desgraça tua, Hayden.
O bandido soltou uma alegre gargalhada. Hal acrescentou:
— Talvez decida dar uma volta pelo quartel dos rurais. Dariam qualquer coisa para conhecer a localização deste vale.
— Tão-pouco farás isso.
— Em que te fundamentas agora para o afirmares de uma forma tão rotunda?
-- No facto de tu próprio teres reconhecido diante de Nora e de sua mãe que eu sou um homem de palavra. E eu prometo-te solenemente que se fizeres isso que acabas de insinuar as primeiras balas a saírem do meu revólver irão alojar-se nos corações das duas mulheres.
Hal deixou vaguear pelos seus lábios algo que pretendia que fosse um sorriso.
— Está bem. Ganhas desta vez, Hayden. Mas fica a saber que serei eu quem rirá no fim. Chegará a minha vez. E quando chegar esse momento, reza, se é que o sabes fazer, porque irás reunir-te com os três homens que quiserem escapar pelo «Salto do Anjo».

Sem comentários:

Enviar um comentário